Arcas de Babel: Marília Garcia traduz Kenneth Koch
Marília Garcia traduz poemas de Kenneth Koch (Foto: Renato Parada e Divulgação)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Na edição de hoje a poeta, tradutora e editora Marília Garcia traduz a poesia de Kenneth Koch, que também comenta num ensaio introdutório.
Marília Garcia publicou, entre outros, os livros de poesia Engano geográfico (7letras, 2012), Câmera lenta (Companhia das letras, 2017, Prêmio Oceanos de Literatura) e Parque das ruínas (Luna Parque, 2018).
***
Os primeiros versos que li de Kenneth Koch, em uma antologia The Best American poetry, nunca mais saíram da minha cabeça, e nem da minha poesia:
“Num poema um verso pode esconder outro verso,
Como num cruzamento, um trem pode esconder outro trem
Isto é, se você está esperando para atravessar
Os trilhos, espere ao menos um momento depois que
O primeiro trem tiver passado. Também ao ler
Espere até você ter lido a linha seguinte –
Só então é seguro prosseguir a leitura. […]”
Os versos ou linhas do poema como trens em um cruzamento (ou como algumas situações da vida, tal como o poema desdobra adiante); a forma de trazer o gesto de leitura para dentro do próprio poema; o tom coloquial que vai conduzindo o leitor; a digressão que começa a partir de objetos, de observações do cotidiano; e o pensamento que vai se deslocando pelos versos.
Às vezes é preciso esperar um pouco, não reagir, não prosseguir a leitura, deixar o trem seguinte passar para poder entender aonde esta linguagem pode nos levar. Este poema, espécie de arte poética, foi o primeiro de Koch que traduzi, depois passei aos outros deste mesmo livro One train, de 1994 (o poema do trem foi publicado na revista Inimigo Rumor 20, 2008, e outros saíram na Modo de usar & co., eles podem ser lidos aqui)
Kenneth Koch (pronuncia-se “Coke”) nasceu em Cincinnati, Ohio, em 1925, estudou em Harvard, onde conheceu John Ashbery que o apresentou a Frank O’Hara e James Schuyler. Nos anos 1950, já em Nova York, eles se aproximaram de alguns pintores ligados ao expressionismo abstrato (Pollock, Kline, de Kooning) e, pouco a pouco, em diálogo direto com a pintura, formaram o grupo “Escola de Nova York”, que englobava outras artes e teve ainda outras gerações de poetas (como Ron Padget), além de ter sido bastante influente para a poesia americana (é devedor dela, por exemplo, o grupo da L=A=N=G=U=A=G=E). O’Hara e Ashbery são os mais conhecidos, não só por aqui como também por lá, mas talvez seja preciso esperar um pouquinho, dar aquela pausa em um cruzamento de trens antes de prosseguir para ver o que vem adiante. Pode ser que apareça a poesia de Koch, por exemplo. Seja como for, apesar de serem bastante diferentes entre si, os quatro poetas guardam forte relação com a pintura da época (Koch diz num poema-homenagem a Apollinaire, “A time Zone”, que via os pintores dos anos 50 trabalhando e queria fazer aquilo com a linguagem verbal), trazem muitas vezes um tom coloquial, com piscadelas para a poesia francesa ou pop art, e um caráter experimental. Koch publicou duas dezenas de livros de poesia, escreveu contos, peças de teatro e uma ópera, e trabalhou também usando formas fixas. Além de poeta, foi professor na Columbia University e deu aulas de escrita para crianças, tendo publicado alguns livros na área (como o Wishes, lies and Dreams, teaching children to write poetry).
Os dois poemas abaixo fazem parte do livro One train, já mencionado, de 1994. O primeiro, “Energia na Suécia”, procura nomear esta potência (da juventude?) que ele chama de “energia” e que, segundo o texto, poderia ser usada para a escrita.
Já o segundo, dividido em 20 partes, traz um “novo guia” para situações e lugares inesperados, que com humor e surpresa vai mostrando, em uma espécie de sight-seeing, um pouco da “cidade kochiana” – Marília Garcia
***
Energia na Suécia
Naqueles dias
Eu tinha tanta energia dentro de mim e ao meu redor
Que eu podia usar e depois guardar, como as roupas
que alguém compra apenas para esquiar
Mas acaba usando todos os dias
Pois todos os dias são como esquiar –
Acho que eu era assim aos 23 anos.
Ver aquelas seis jovens no barco – eu estava indo esquiar
Elas disseram, Somos todas de Mineápolis. Foi em Estocolmo.
A mistura de um visual feminino americano com sueco-americano era como ir esquiar
Apesar de não ter nenhum motivo específico naquela época para colocar a minha energia naquele encontro
Ainda assim ela estava ali, era minha, como um gigante que consegue ter o controle de seus nervos
No caso de precisar, ou como um pescador tem ao seu alcance varas e anzóis e iscas, e um professor tem todos os seus livros
Ou como um aquecedor de água tem o gás
Sendo ele usado ou não – eu tinha toda aquela energia.
É sério, vocês são todas de Mineápolis? perguntei, quase explodindo com a pressão.
Sim, uma delas, a segunda mais bonita, respondeu. Viemos passar alguns dias aqui.
Durante oito ou dez anos volta e meia eu lembrava desse
momento. Me pareceu que eu deveria ter feito alguma coisa na época,
Ter usado toda aquela energia. Fazer amor é uma maneira de usá-la e escrever é outra.
Talvez ambas sejam superestimadas, pois a relação é muito clara.
Mas provavelmente este é o destino humano e não vou contra ele aqui.
Às vezes as pessoas existem e a energia não, às vezes a energia existe mas as pessoas não.
Quando os deuses concedem os dois, um homem não pode reclamar.
Um novo guia
É preciso um guia para todas as situações e lugares…
Le Vicomte de Cyrillac
Vocês estão vendo esta linha telegráfica no fundo do vale
cujo traçado retilíneo recorta a floresta que fica na montanha adiante
Todos os postes ali são de ferro.
Blaise Cendrars, Feuilles de route
1.
Vejam esta fábrica de Champagne
Fica em Épernay
Nela produzem um vinho branco seco cheio de bolhinhas
(feito em um conjunto de quinze prédios brancos pontiagudos – galpões)
Borges disse que os espelhos e a cópula são “abomináveis”
Porque multiplicam a espessura de realidade
Esta fábrica de champagne, além de multiplicar, transforma a realidade
Sem ela, o champagne Épernay não existiria.
2.
Vejam este lobo
Mais leve que um carro,
Só que mais pesado que um carrinho de bebê.
Ele é bastante convincente.
Cada manifestação do lobo é toda feita na forma clássica de um lobo.
Ele está totalmente parado.
Ele não está “ocupado demais para falar com você”
Ou “no telefone” ou “liga mais tarde”.
Pode ser que algum dia os lobos não existam mais.
É que o progresso não tem sido muito favorável aos lobos.
Enquanto isso, existe este aqui.
3
Vejam esta ópera.
As pessoas se movimentam de forma confusa.
São mal dirigidas.
Mas como cantam bem!
A partir da reação do público, dá para dizer que cantam muito bem.
A reação daquele homem é uma explosão de diamantes.
Aquela mulher muito magra caiu num desmaio.
Quatro noites atrás um homem morreu aqui
A ópera parou quatro jovens trouxeram a maca e carregaram o homem
Me contaram que quando chegaram ao saguão o médico disse que ele estava morto.
Veja o público agora. Está cheio de vida.
4
Vejam este camelo.
Um homem não habituado a camelos tenta montar nele.
O condutor do camelo ordena que o camelo se curve
sobre os joelhos da frente, e ele o faz.
O homem monta nele. O camelo sai galopando.
Para conseguir este emprego, o homem deve mostrar que sabe andar de camelo. Ele fracassa.
Talvez tenha outra chance – se decidirem que este camelo está machucado.
O pior que pode acontecer é ele não conseguir o trabalho. Será cortado.
Agora o camelo se agacha na areia,
Manso, saudável e lento, sem machucados.
Se o camelo estivesse machucado, seria abatido.
Como nos velhos tempos.
5
A arquitetura roxa se espalha pelo alto do templo budista e depois transforma em diversos tons de verde, amarelo e rosa esculpidos em faixas.
Vejam o jovem monge num hábito de seda amarelo e laranja – ele começa um longo dia de orações subindo os quatrocentos e cinquenta degraus do templo.
Reis e demônios e budas gravados em vermelho azul branco roxo olham de cima enquanto ele sobe e depois olham para ele de frente mas nunca olham de baixo
Afinal estão bem lá no alto e suas cabeças não foram construídas de modo a poderem se inclinar
6
Vejam esta laranja.
Ela foi “feita” por aquela laranjeira logo ali.
Aquela laranjeira parece sorrir
Enquanto balança de leve, só um pouquinho, no vento andaluz.
Se ela balançasse um pouco mais, as laranjas poderiam começar a cair.
Poderiam.
7
Vejam este arco.
Faz parte de uma construção que tem mais de 700 anos.
Provavelmente o homem que o construiu trabalhou com pedra a vida inteira.
Às vezes ele tinha um dia de folga – e a pedra não saía de sua cabeça.
Ele tinha ideias para linhas, padrões e ângulos.
Agora essas ideias já não existem.
A arte é bem diferente.
E as coisas nas quais acreditamos de verdade não têm nada de arte.
8
A mulher está debaixo de um lençol e o homem usa uma máscara branca.
O homem retira o coração da mulher
E coloca outro no lugar. Ele se inclina para ouvir –
O novo coração está batendo! Ele diz para a ferida se fechar.
Tira a máscara e vai para outro quarto.
A mulher permanece ali. Tem boas chances de sobreviver.
9
Vejam esta antiga torre em Lisboa – agora é museu dedicado ao ladrilho azul português que se chama azulejo.
Cada ladrilho tem um padrão de linhas azuis,
Algumas grossas outras menos, algumas curvadas outras retas, há mais curvadas do que retas
Na maioria deles, tem uma figura e, em alguns deles, na verdade em boa parte deles, palavras.
Um conta a história de Orfeu.
Há uma jovem
Apontando uma bengala na direção de uma paisagem alegórica –
Um rio, uma ponte e um carneiro. Debaixo da imagem, vem escrito
As coisas que prosperam prosperam melhor em nossa casa.
Este outro ladrilho (dizem que há oitenta
Mil ladrilhos, não dá para descrever tudo)
Tem um enorme peixe com escamas azuis-e-brancas. Debaixo dele, a frase,
com letras azul-escuras, em Latim, Piscis nunquam dormet: o
Peixe (ou este peixe) nunca dorme.
10
Vocês estão vendo este ator, no palco, ele está ensaiando seu papel em uma peça
De Shakespeare, Um conto de inverno. Está usando jeans e uma velha camiseta branca.
O figurino da peça ainda não está pronto. Ele faz o papel de Florizel. Ele está falando
Versos decassílabos sem rima. Ali à esquerda dele uma moça, Perdita.
Ela também se veste à vontade – camiseta e jeans.
O cabelo castanho preso atrás da cabeça em um coque.
11
Vejam esta Grécia.
Ela não chega nem perto de ser como a Grécia antiga
Nem mesmo os prédios antigos:
Vejam este homem, dono de um feliz desejo,
andando com esta mulher num parque público de Atenas.
Os rostos dos dois não seriam os mesmos no séc. V a.C.
Nada seria igual.
12
Vejam esta mulher.
A raça humana precisou de milhões de anos para alguém ficar como ela:
Uma senhora de vestido vermelho sentada vendo televisão.
Vejam as mãos dela.
Estão um pouco ressecadas, mas ela é saudável.
Tem oitenta e dois anos.
Na televisão, um navio passando. Agora dão um close no cais, onde
Um garotinho brinca com um cachorro. A mulher ri.
13
Vejam as nuvens.
Devem ser a coisa que eu mais olho de todas
Sem ver nada.
Talvez aconteça o mesmo com muitas outras coisas
Mas com as nuvens isso é mais óbvio.
A lancha atravessa o céu refletido no rio.
Vejam o longo rastro de nuvens que fica para trás.
14
Vejam esta festa.
As pessoas estão alegres, usam máscaras.
Há vários tipos de máscaras – máscara de cachorro, máscara de cavalo, máscara de sereia, máscara de um ovo gigante –
Mesmo de máscara, muitas pessoas estão bebendo.
Para levar a bebida à boca, elas levantam a máscara.
Quando levantadas, as máscaras parecem chapéus.
15
Calle de los Espasmos
Esta é a Rua dos Espasmos, batizada com o nome de um dos sintomas da febre transmitida por mosquitos que moram no final da rua, na altura em que ela se transforma em um caminho perto da montanha, rodeado pela selva, e conduz até uma cachoeira e às vezes também até a febre.
Poucas pessoas pegam a doença e poucas sabem porque a rua se chama Rua dos Espamos. Agora ela é identificada com uma placa: Calle de los Espasmos. A casa em que mora esta mulher fica a um quilômetro daqui, a região não é perigosa.
16
Vejam este corrimão.
As pessoas passam as mãos nele ao descerem.
Muitas muitas muitas muitas mãos. Muitas muitas muitas muitas vezes.
Ficou conhecido como “Corrimão das mãos femininas”. Dizem que dá para sentir a maciez de mãos femininas quando se encosta nele.
Na verdade o que se sente é a maciez do mármore
Gasto por tantos toques de mão.
Vejam a placa que colocaram ali: Corrimão das mãos femininas. Para preservar esse monumento, cada pessoa deve tocar nele apenas uma vez.
Vejam o jovem ali tocando nele duas depois três vezes.
O que aconteceria se um guarda o pegasse.
As pessoas ficam com medo de o corrimão desaparecer se for tocado demais – não existirá mais a ilusão de tocar as mãos macias de mulheres usando vestidos decotados e descendo na direção de seus amigos e amantes.
Esta sensação desaparecerá do mundo.
17
Vejam esta linda rua
Por onde passavam cavalos
muitos séculos atrás. Era uma rua suja.
Agora é uma rua de pedras
Coberta com alcatrão.
As pegadas dos cavalos não estão mais visíveis.
Nada é visível. Sim,
Agora uma moto e um carro passam.
18
Vejam o meu amigo.
Ele está dizendo Você sabia que tenho sessenta e três anos?
Ele tem um rosto lindo cheio de rugas mas o rosto ainda domina completamente as rugas. O processo de ganhar rugas ainda é controlado pelo rosto.
Você está muito bem, digo para ele.
Ele sorri.
Um dia o rosto dele ficará todo dominado pelas rugas, assim como o lago no Jardim de Luxemburgo no outono em um dia com muito vento.
Mas mesmo assim, quando chegar este dia, as feições de que tanto gosto no rosto dele ainda serão visíveis.
19
Este templo egípcio tem 5 mil anos de idade.
Vejam o leão e vejam o babuíno. Ambos em um molde de esfinge.
Vejam o padrão das notas nesta partitura.
Vejam esta conhecida beldade de agora setenta anos. Ela diz
Está tudo bem até os setenta quando ainda temos atrativos sexuais. Mas depois disso –
Vejam os arautos da tempestade – ou da primavera? – pássaros,
Pássaros são como pensamentos que o céu tem depois de decidir
O que fazer, e hoje eles voam com violência.
Vejam este pano
Espalhado pelo teto, através do qual começam a cair as gotas de chuva.
Vejam a íris verde nos olhos deste flamingo peruano.
Vejam o cascalho por este caminho. Vejam a manga cinza deste senhor tricotada de forma irregular.
20
Vejam esta mulher.
O homem ao lado dela não acredita que ela possa ter alguma relação com ele.
E ela não têm. Ela dobra a esquina.
Mas ele vai atrás dela.
Depois de centenas de passos, ele tem a coragem de dizer: oi.
Você é linda. Posso caminhar um pouco ao seu lado?
Ela concorda com a cabeça, sorrindo. Ela não entende o que ele diz porque ele não está falando espanhol,
única língua que ela entende.
O homem diz, em inglês, Acabei de chegar a Barcelona.
Ela sorri, sem entender nada, exceto “Barcelona”.
Duas mulheres e três homens passam por eles, conversando em catalão.