Arcas de Babel: Laura Erber traduz Henri Michaux

Arcas de Babel: Laura Erber traduz Henri Michaux

 

 

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.

Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta 44ª edição, a escritora, artista e pesquisadora Laura Erber traduz e apresenta uma série de poemas de Henri Michaux, um dos poetas franceses mais importantes do século 20, ainda pouco traduzido no Brasil.

Desde 2020, Laura Erber é pesquisadora visitante do Department of English, Germanic and Romance Studies, na Universidade de Copenhague e professora visitante da Universidade Católica Portuguesa. Dirige a Zazie Edições, editora independente, voltada para a divulgação de textos teórico-críticos em português, em sistema de open access. Publicou diversos livros de poesia, entre eles, Os corpos e os dias (Editora de Cultura, 2008), A Retornada (Relicário, 2017), Theadoro Theodor (Quelônio, 2018), e o romance Esquilos de Pavlov (Alfaguara). Colabora em jornais e suplementos culturais brasileiros tais como Folha de S.Paulo e Suplemento Pernambuco. Publicou ainda as coletâneas de ensaios Ghérasim Luca (EdUERJ, 2012) e O artista improdutivo (Editora Âyiné, Brasil, 2021). Como artista realizou exposições em diversos museus e centros de arte no Brasil e no exterior, tais como Fundação Miró, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Skyve Ny Kunstmuseum, Grand Palais de Paris, Centro Cultural Banco do Brasil e Centre International d’art du paysage Île de Vassivière, na França. Vive e trabalha em Copenhague.

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Henri Michaux e a poesia dos começos

por Laura Erber

Henri Michaux (Namur, 1899–Paris, 1984) foi um poeta e artista atraído pela energia dos começos: começo do homem, começo de um pensamento, o começo da escrita, onde um traço começa, o brotar de palavras juntas. Deixou-se fascinar pelas origens não como depositárias de um saber mais verdadeiro, mas como um dispositivo contra a estabilização das histórias, do sentido e da forma. Por isso talvez tenha batizado um de seus primeiros conjuntos de poemas de “Fábulas das origens”.

Não se trata tanto de uma obsessão pelas origens como fontes de um saber tradicional perdido, muito ao contrário, sua arte, fosse escrita ou visual, perseguia nas origens estados lavrares e proteiformes da existência, entendendo a criação como fenômeno que se bifurca e envolve mais acaso que destino.

Nascido em 1889 na cidade belga de Namur e naturalizado francês quando adulto, Michaux é o autor de uma das mais fecundas obras do século 20. Ainda pouco traduzido e publicado no Brasil, foi um poeta dedicado também às artes visuais e a diversos experimentos na intersecção entre drogas e literatura. Uma herança familiar permitiu-lhe realizar imensas viagens; conheceu a China, a Malásia, a Indonésia, o Japão, a Índia e a América Latina, tendo inclusive visitado o Brasil em 1939. Embora essas viagens tenham marcado sua escrita, não se encaixava totalmente no éthos modernista dos escritores viajantes, tampouco abdicava de seu mau humor, movido por um misto de curiosidade e irritação, que assumiu em seus escritos como poucos autores de sua geração, rendendo visadas críticas nem benevolentes, nem autoindulgentes.

Assumir a liberdade da fabulação literária implicou para Michaux criar alianças com a infância e com a pré-história; ele se interessou igualmente pela força das imagens contidas nas descrições etnográficas. Reelaborou a etnografia a partir de uma embocadura poética, que, longe de torná-la mais amena e palatável, intensificava a crueza de gestos e ações, sem julgá-los. Assim descreveu povos e hábitos que ele mesmo inventava ao escrever.

Foi o interesse de Michaux pelos começos que me levou a interrogar o próprio começo da trajetória do poeta na literatura. Curiosamente, ele, que tanto soube extrair dos começos e das origens, não devotou grande interesse aos textos que escreveu antes de Quem eu fui, seu primeiro livro, publicado em 1927, quando ainda era um autor belga. Essa fascinante contradição motivou um projeto de tradução de seus primeiros textos. A convite de Miguel Conde, que na época dirigia uma formidável coleção de textos marginais de autoras e autores modernos, selecionei alguns dos mais significativos escritos dessa primeira fase para traduzir; infelizmente a coleção foi interrompida e não levamos adiante o projeto de publicação. Aqui apresento uma seleção de poemas do Michaux dos começos, aos quais volta e meia ainda retorno.

A natureza contrátil e crua dos poemas que seguem ajuda a enfatizar o caráter rude e incomodamente cômico das situações descritas, barra um pouco também nosso ímpeto de interpretação. Como se nos retirasse as armas do julgamento crítico para nos apresentar, pela primeira vez, a violência das relações humanas e a fagulha das descobertas fundamentais.

Os poemas abaixo fazem parte do conjunto de 27 textos que compõem Fables des origines. Nas obras completas de Michaux, organizadas por Raymond Bellour e editadas pela Gallimard, esse conjunto comparece entre os Primeiros escritos, produzidos entre 1922 e 1926.

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Origem do fogo

Dwa caminha pela planície
Um coelho se revela.
Dwa joga uma pedra no coelho.
A pedra cai numa pedra.
As pedras produzem um som vivo e…Pf…
AFagulha atinge a relva ressecada.
A planície arde.
………………………..Eis a origem do Fogo.

 

Origine du feu

Dwa marche dans la plaine
Un lapin s’encourt.
Dwa lance une pierre au lapin.
La pierre tombe sur une pierre.
Les pierres font un bruit vif et… Pf…
L’Étincelle va à l’herbe dessechée.
La plaine flambe.
………………………..
Voilà l’orgine du Feu.

 

Origem do fogo

Um tronco de árvore foi derrubado por um raio.
Agora ficou seco e duro.
Dwa, correndo, choca-se com o tronco e cai.
Dwa se aborrece com o tronco, que quebra, golpeia,
se enfurece, esfrega os pedaços uns nos outros…
Pf… — uma chama irrompe.
……………………….. . . . . . . Eis a origem do Fogo.

 

Origine du feu

Um tronc d’arbre a été renversé par la foudre.
Il est maintenant sec et dur.
Dwa, en courant, se heurte au tronc et tombe,
Dwa se fâche contre le bois, le casse, le frappe,
enrage, râcle les morceaux les uns contre les
autres…
Pf… — une flemme s’élève.
……………………….. . . . . . .
Voilà l’origine du Feu.

 

Amor

“Se você me ama, o que me dá?”
Ele lhe dá seu cavalo veloz.
“Se você me ama, o que me dá?”
Ele lhe dá sua casa;
Em seguida, dá todas as suas riquezas, e ela ainda não o ama.
Ele pega o machado com a mão direita, estende o braço; decepa a própria mão esquerda na linha do punho; ele a separa e entrega a ela.
Me segura, diz ele, pelo braço, agora que já nem posso te amar sem a tua ajuda.
E imediatamente ela o ama.
Mas logo vem o sangue, o desespero, e o rio que os sorve num só redemoinho.

 

Amour

« Si tu m’aimes, que me donnes-tu? »
Il lui donne son cheval rapide.
« Si tu m’aimes, que me donnes-tu? »
Il lui donne sa maison ;
Puis, il donne toutes ses richesses, et toujours, elle ne l’aime pas.
Alors, il prend sa hache, de la main droite, avance le bras ;
sa main gauche, il se la coupe au poignet; il la met à part et la lui donne.
Prends-moi, dit-il, dans le bras, maintenant que je ne puis même plus t’aimer sans ton aide.
Aussitôt, elle l’aime.
Mais, bientôt, vient le sang, le désespoir, et le fleuve qui les
Boit dans un seul remous.

 

Deus, a providência

Deus sabe fazer qualquer coisa. Daí o seu tédio.
Daí que ele deu falta de um ser que só soubesse fazer pouca coisa.
É a causa da criação.
Ele fez as pedras. Mas depois de rolarem até o fundo das ravinas, não fizeram mais nada.
Deus se entedia.
Depois ele fez a água. Mas a água corria sempre para baixo.
Deus se entedia.
Depois, fez as árvores, mas todas se elevaram em direção ao sol.
Deus se entedia.
Então Deus destaca um grande naco de si, costura uma pele por cima e o joga na terra. E é o homem.
E o homem revira a terra, as pedras, a água e as árvores.
Deus olha. É bom ver alguém fazer alguma coisa.
Às vezes ele mesmo sacode a terra, lança uma montanha contra outra, assopra o mar. Os homens correm, se debatem.
E Deus olha. É bom ver alguém fazer alguma coisa.

 

Dieu, la providence

Dieu sait faire toute chose. De là son ennui.
De là qu’il voulut d’un être qui ne saurait faire que peu de chose.
C’est la cause de la création.
Il fit les pierres. Mais quand elles eurent roulé au fond des ravins, elles ne firent plus rien.
Dieu s’ennuie.
Puis, il fit les arbres, mais ils s’élevaient tous vers le soleil.
Dieu s’ennuie.
Alors Dieu détache un gros morceau de soi, le coud dans une peau et le jette sur la terre. Et c’est l’homme.
Et l’homme bouleverse la terre, les pierres, l’eau et les arbres.
Dieu regarde. C’est bon voir quelqu’un faire quelque chose.
Parfois lui-même secoue la terre, jette une montagne contre une autre, souffle sur la mer. Les hommes courent, se débattent.
Et Dieu regarde. C’est bon voir quelqu’un faire quelque chose.

 

A origem da antropofagia

Ndwa e Dwabi, seu filho pequeno, e um caldeirão de carne e gordura fervendo na caverna.
Ndwa vai embora.
Nwabi e o caldeirão na caverna.
Nwabi brinca, cai no caldeirão.
O caldeirão se agita com força.
Depois não se agita mais.

À noite.

Ndwa retorna.
Enfia a mão no caldeirão.
“Achei que tivesse fatiado toda a carne.” Ele corta um pedaço. Ele começa a comer. “É bastante bom.” Que pedaço é esse?
Era uma nádega de seu filho.
Não diz nada, vai até a cabana de Kwa, pega as crianças, cozinha-as e come-as. —
Depois disso, falou-se.
Todo mundo sabe agora como o homem é bom de se comer.

 

L’origine de l’anthropophagie

Ndwa et Dwabi son petit enfant, et un pot de viande et de
graisse bouillante dans la caverne.
Ndwa s’en va.
Ndwabi et le pot dans la caverne.
Ndwabi joue, tombe dans le pot.
Le pot remue fort.
Puis le pot ne remue plus.

Au soir.

Ndwa revient.
Il met la main dans le pot.
« Je croyais avoir découpé toute la viande. » Il découpe un morceau.
Il se met à manger. « C’est bien bon. »
Quel est ce morceau?
C’était une fesse de son fils.
Il net dit rien, va dans la hutte de Kwa, prend les elefants,
les cuit et les mange. –
Depuis on a parlé.
Tout le monde sait maintenant combien l’homme est bon à
manger.

 

A coléra come o homem

Ndwa sai para caçar.
Ndwabi, o filhinho de Ndwa, na caverna.
Ele tenta caminhar com os próprios pés.
Há uma banana no chão.
Ele escorrega e se agarra à orelha do cachorro.
O cachorro dá um salto, derruba Dwabi, entorna o pote fechado, e a carne do antílope que estava lá dentro cai no chão.
As formigas, no chão, comem a carne do antílope.
Dwa regressa. Ele vê o que foi feito das coisas.
Ele parte a cabeça de Ndwabi e o come.
“Assim tá bom”, diz ele.

 

La colère mange l’homme

Ndwa part à la chasse.
Ndwabi, le petit enfant de Ndwa, dans la caverne.
Il essaie de marcher sur ses pieds.
Une banane est par terre.
Il glisse, s’ accrcohe à l’ oreille du chien.
Le chien fait um bond, renverse Dwabi, renverse le pot
fermé, et la viande d’antilope qui était dedans tombe par terre.
Les fourmis, par terre, mangent la viande de l’antilope.
Dwa revient. Il voit les choses comme ells sont devenues.
Il casse la tête de Ndwabi e le mange.
« C’est bien comme ça », dit-il.

 


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