Estante CULT: Robert Musil, Liv Strömquist, Kazuo Ishiguro

Estante CULT: Robert Musil, Liv Strömquist, Kazuo Ishiguro
O escritor austríaco Robert Musil, autor de 'Uniões' e 'O homem sem qualidades' (Foto: Reprodução)

 

O lançamento de uma obra inédita no Brasil, Uniões, e a chegada às livrarias da quarta edição de um clássico, O homem sem qualidades, reforçam o convite para que os leitores do século 21 conheçam a obra de Robert Musil (1880-1942). Nascido em Klagenfurt, Áustria, o escritor fez seus estudos secundários no colégio militar de Mährisch-Weisskirchen (Hranice, hoje, na República Checa), que o inspirou a escrever, em 1906, O jovem Törless. Apesar de ter estudado engenharia, Musil doutorou-se em filosofia em 1908. Na Primeira Guerra, integrou o exército austríaco e após o conflito trabalhou para o Ministério das Relações Exteriores do país. A partir de 1923 passa a se dedicar exclusivamente à literatura, desempenhando as funções de crítico teatral, romancista e ensaísta. Em 1931, transfere-se para Berlim, mas dois anos depois, com o advento do nazismo, retorna a Viena. Em 1938, após a anexação da Áustria e em consequência da proibição de seus livros pelo regime nazista, emigra para Genebra, Suíça, onde passa os últimos anos de sua vida ao lado da mulher, Martha Marcovaldi.

Uniões reúne duas novelas: “A perfeição do amor” e “A tentação da quieta Verônica”, protagonizadas por duas mulheres sobre cujos corpos, sensações e pensamentos o narrador vaga e divaga, tecendo duas histórias intensamente dramáticas e fragmentadas, marcadas pelo signo da mais absoluta radicalidade. Traduzida e comentada por Kathrin Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, a obra – que em certa medida remete à atmosfera de introspecção das narrativas de Clarice Lispector – pode ter muito a dizer sobre os conflitos de gênero que vêm caracterizando os tempos atuais.

Com tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth, O homem sem qualidades é considerado desde sua primeira edição em língua alemã um dos romances mais importantes do século 20. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, o matemático Ulrich retorna a Viena e convive com os mais diversos tipos humanos em sua tentativa de encontrar um sentido para a vida e a realidade. Filiada à tradição do romance de ideias, a obra mostra a derrocada dos valores que estiveram em vigência até o início do século que assistiu a dois conflitos de proporções mundiais e viu também serem reduzidas as influências do continente europeu em relação aos rumos políticos e econômicos do planeta.

Chamando a atenção para o fato de que uma tradução mais exata do título seria “O homem indefinido”, Otto Maria Carpeaux afirma: “Musil foi um dos mais espirituosos estilistas em língua alemã, aforista de primeira ordem, e em outros trechos de evocativa força poética. Parece-se, um pouco, com Proust, cujo tema é algo semelhante. Mas Musil é mais intelectualista: não procura lembrar o temps perdu, mas explica a perda”. O escritor trabalhou em O homem sem qualidades por cerca de quinze anos, mas não pôde ver a última parte publicada, tendo esta ficado aos cuidados de Martha, sua mulher – o que confere à empreitada a característica de uma obra-prima inacabada.

Com ambos os livros, o leitor brasileiro poderá usufruir de dois belos espécimes da literatura de língua alemã de repercussão universal. Robert Musil pertence à mesma geração de Hofmannsthal, Rilke, Kafka, Broch, Krauss, Schönberg, Alban Berg, Kokoschka, Freud e Wittgenstein – todos eles testemunhas da dissolução do velho Império Austro-Húngaro e representantes, em maior ou menor medida, do senso tipicamente austríaco da autoironia.

A vitalidade de uma tradição

Volta às livrarias, após 50 anos do lançamento de sua primeira edição no Brasil, um clássico dos estudos teatrais contemporâneos: O teatro do absurdo, de Martin Esslin. Ainda que seja discutível reunir dramaturgias tão díspares como as de Samuel Beckett, Arthur Adamov, Eugène Ionesco, Jean Genet e Harold Pinter sob o mesmo termo classificatório, é inegável a envergadura do trabalho de Esslin, que se propõe a examinar com argutas sensibilidade e erudição as peças de teatro surgidas após o fim da Segunda Guerra, cujos temas centrais giram em torno da solidão e da perplexidade do homem diante dos tormentos da vida moderna. Para além dos capítulos específicos sobre cada dramaturgo – que escrutinam diligentemente as principais criações de cada um deles, repercutindo um tipo de análise panorâmica sem soar superficial cada vez mais rara na crítica contemporânea –, o volume traz ainda dois ensaios essenciais: “A tradição do Absurdo” e “O significado do Absurdo”, que identificam na filosofia, no mito, na religião, na literatura e na história das diversas artes, como o circo, por exemplo, muitas das fontes com as quais o teatro do absurdo trabalha, reconfigurando-as em novas combinações, individualmente variadas. A tradução é de Barbara Heliodora, atualizada por José Roberto O’Shea.

Psiquismo e expressão do sofrimento

“Socializamos sujeitos, entre outras coisas, ao fazer com que eles internalizem modos de inscrever seus sofrimentos, seus ‘desvios’ e descontentamentos em quadros clínicos socialmente reconhecidos”, afirma o texto introdutório de Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico, assinado por Vladimir Safatle, um dos organizadores da obra ao lado de Christian Dunker e Nelson da Silva Junior. Fruto de trabalho coletivo inédito desenvolvido no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, o livro reúne, além dos textos de autoria dos próprios organizadores, oito capítulos, assinados por alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado do Instituto de Psicologia e do Departamento de Filosofia da mesma universidade, que se propõem a desenvolver uma minuciosa análise não somente de categorias clínicas mobilizadas para dar conta de patologias sociais, como narcisismo, paranoia e esquizofrenia, por exemplo, como também de categorias sociais construídas para descrever modalidades de sofrimento, como anomia e fetichismo. A proposta é articular crítica e clínica, a fim de demonstrar o paradoxo que há entre o funcionamento normal das sociedades capitalistas e os modos de gestão das patologias que acometem seus indivíduos.

Abc da invisibilidade

“Para o meu bisavô, disseram que ele deveria ser um bom escravo, que a abolição logo viria. Para o meu avô, prometeram que, se ele trabalhasse bastante, teria condições de vida. Para o meu pai, disseram que, depois do ginásio, viria a CLT. Para mim, foi o ensino superior. Mas mesmo graduado, sou parado pela polícia e não tenho emprego. Até quando vamos acreditar nas promessas?”, assim termina a coluna da escritora e cientista social Bianca Santana nesta edição da CULT, reproduzindo o depoimento recente de um militante do movimento negro, cuja desesperançada perplexidade ecoa o que os cinquenta verbetes que compõem o Dicionário da escravidão e liberdade, organizado por Lilia M. Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, atestam: o modo como a escravidão, extinta há 130 anos, enraizou-se perversamente em nosso cotidiano. Com o objetivo de constituir um dicionário temático, a obra apresenta verbetes bastante alentados escritos por especialistas, que examinam criticamente histórias, eventos, temas, processos e personagens ligados tanto ao período da escravidão como ao da pós-emancipação, no qual a desigualdade, a discriminação e a exclusão persistem. Uma obra a ser lida pelas lentes do presente, de modo que o passado ao qual ela se refere jamais repouse impassível no espírito do leitor.

Que mistérios tem Clarice?

O enigma Clarice Lispector está presente em Clarice não somente na epígrafe do livro de Roger Mello, ilustrado por Felipe Cavalcanti – “… certos silêncios fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte”, como também dá nome à própria obra, constituindo um símbolo condensado que se desdobra em vários sentidos ao longo da leitura. A citação clariciana foi retirada da crônica “Nos primeiros começos de Brasília”, publicada no Jornal do Brasil em 20/6/1970. A mesma cidade em que nasceu o escritor e onde a narrativa ocorre, nas décadas de 1960 e 1970, quando a capital do país vivia a sombria condição de centro irradiador de uma ditadura militar. É lá que vivem Clarice e seu primo Tarso. Além do nome da menina abandonada pelos pais que protagoniza a história – ele talvez por ser simpatizante ao regime; ela possivelmente por ser-lhe uma ferrenha opositora –, Clarice também é o nome da escritora cujos livros o pai esconde para a mãe. Sobre esconder, ocultar, fazer desaparecer, então, é que trata o livro – que em inspirado jogo de metalinguagem adverte para o perigo que livros representam, embora igualmente realce a espécie de fonte da vida que eles constituem. Em tempos de aversão à leitura e à democracia, nada mais atual.

Retrato do artista quando velho

Ambientado no Japão nos anos imediatamente posteriores à rendição do país na Segunda Guerra Mundial, Um artista do mundo flutuante, de Kazuo Ishiguro (prêmio Nobel de Literatura de 2017), trata da história de um homem que, já idoso, faz um acerto de contas com seu passado, reexaminando os valores que nortearam sua vida até ali. Segundo livro do escritor – autor também de Não me abandone jamais (2005) e Os vestígios do dia (1989), adaptado para o cinema por James Ivory, em 1993 –, o romance constitui uma reflexão sobre a velhice, a potencialidade da arte e as artimanhas de uma consciência que procura driblar a culpa, mas fracassa diante dela – alinhavadas por um inadiável encontro com a passagem do tempo. Oscilando entre a fluidez da memória das coisas que não voltam mais, captada pelo último Ibsen em Quando despertarmos de entre os mortos, e o retesamento de amargas lembranças que retornam de outrora para assustar o personagem no mundo contemporâneo, registrado, por exemplo, com muita agudeza em As benevolentes, de Jonathan Littell, a obra converte as reminiscências do passado em uma potente advertência para o futuro.

Fruto e origem

O título original do livro da quadrinista sueca Liv Strömquist resume-se a O fruto do conhecimento. Em português, entretanto, a metáfora foi substituída por um torneio frasal: A origem do mundo: uma história cultural da vagina ou a vulva versus o patriarcado. Apoiada já no início da obra por uma provocante “lista de homens que se interessaram um pouco demais por aquilo que se costuma chamar de ‘genitália feminina’” e fazendo uso de um humor ora levemente irônico, ora acentuadamente mordaz, a autora mostra por meio de seus textos e desenhos as mais variadas tentativas de padronizar, reprimir e até mesmo castrar o sexo feminino ao longo da história, percurso que a leva a partir da Idade da Pedra, passar pela mitologia hindu, pela vida social da Grécia Antiga e pelos modos de representação alegórica das lendas e fábulas medievais para chegar à modernidade de Sigmund Freud e Jean-Paul Sartre, desdobrada na pós-modernidade do escritor Stieg Larsson e do rapper Dogge Doggelito, seus conterrâneos. Radical em sua franqueza e coloquialidade, a obra – cujo título em português, cumpre notar, evoca a famosa tela pintada por Gustave Courbet  – indaga o porquê de as sociedades alimentarem uma relação tão conflituosa e problemática – hostil, até – com a vagina através dos séculos.


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