Dossiê | A violência como ordem

Dossiê | A violência como ordem
Polícia Militar do Estado de SP: a força policial é distribuída conforme interesses políticos (Foto Eduardo Saraiva, A2IMG/Arte Andreia Freire)

 

A intervenção federal e militar no estado do Rio de Janeiro, efetivada pela Presidência da República logo depois do Carnaval, é só a face mais visível do estado de violência em que o Brasil está mergulhado. A brutalidade cotidiana, no entanto, afeta cada grupo de população de modos distintos, tornando também explícito quais são as vidas mais ou menos vulneráveis num contexto em que a força policial é distribuída conforme interesses políticos. Para a população residente em favelas e periferias, intervenções militares são mais um mecanismo de aprofundar a violência de todos os dias. Para a população carcerária, vale o poderio das facções armadas, cuja guerra interna mantém sob condições brutais a vida nas cadeias brasileiras. Para a população assustada, com medo de crimes e assaltos, os tanques nas ruas são o melhor exemplo do que diz o filósofo francês Jacques Rancière: “A política é a polícia”. Nesse caso, a política é o enfraquecimento cotidiano dos instrumentos democráticos em prol das diversas formas de violência institucional.

A lógica da guerra, reforçada pelas imagens dos tanques militares nas ruas, é uma das chaves para pensar os mecanismos de poder por meio dos quais opera a política de segurança pública brasileira, que localiza o território inimigo nos espaços de favela. É a fim de pensar sobre as perdas e danos desse cenário que o dossiê apresenta cinco artigos. No primeiro, o filósofo e professor da Unifesp, Edson Teles, discute o problema da construção subjetiva de um inimigo a ser combatido, mostrando que essa política tem alvos muito específicos: um jovem negro ou pardo tem 147% mais chances de ser assassinado do que um branco ou amarelo. Em seguida, dois artigos seguem a trilha do racismo institucional para mostrar como a violência contra a população negra sobressai na rotina de assassinatos. Primeiro, Gabriel Rocha Gaspar, Maria Fernanda Novo e Vanessa Oliveira argumentam que o aumento da população carcerária é resultado desta política racista, “que decide quem vai para a cadeia e quem vai para a universidade; quem é obrigado à anulação civil e quem tem o direito de legislar em causa própria”. Depois, é a vez de se emocionar com o depoimento de Thainã de Medeiros, morador do Complexo do Alemão, conjunto de favelas do Rio de Janeiro que tem sido alvo permanente de políticas arbitrárias contra a população. Diz ele: “O inimigo foi escolhido e vive nas favelas. Dessa forma colocamos os sujeitos ‘matáveis’ de um lado e os ‘protegidos’ de outro”.

Para quem vive do lado matável, a realidade é a polícia como ameaça constante, ou o que a antropóloga Adriana Vianna chama, em seu artigo, de “necrogovernança”, termo que usa para se referir ao amplo raio de destruição que a ação policial – e agora militar – deixa na vida das pessoas, além das mortes que produzem. Em 2017, as polícias do Rio mataram 1124 pessoas, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública. Nesse contexto, há um grupo específico que merece atenção no dossiê, as mães cujos filhos foram assassinados pela polícia. São essas mulheres, observa Adriana Vianna, que falam sobre seus filhos mortos e desarticulam a lógica do discurso oficial dos “mortos em confronto” ou das “balas perdidas”. Dão nome, história e afeto aos seus filhos mortos, fazendo do processo de luto o trabalho de resistência contra a permanente arbitrariedade da violência. O dossiê encerra com uma reflexão proposta no artigo de Vinicius Santiago e Carla Rodrigues sobre a função política do luto, recuperando, na filósofa Judith Butler, o problema da distribuição desigual do luto público. Há vidas que, quando perdidas, nem sequer são lamentadas e é justamente sobre tais vidas que a política como violência recai de modo mais direto. É contra essa violência discriminada sentida nos processos crescentes de militarização e policiamento da vida cotidiana, cujo alvo são vidas muito específicas, que esse conjunto de artigos se apresenta.


Carla Rodrigues é doutora em Filosofia pela PUC e professora do Departamento de Filosofia da UFRJ

Vinicius Santiago é doutorando em Relações Internacionais pela PUC-Rio e membro da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência do Estado do Rio de Janeiro


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