As mães, seus mortos e nossas vidas

As mães, seus mortos e nossas vidas
Protesto das Mães de Maio na Praça da Sé em 2015; no detalhe, Ricardo Silva Nascimento, morto pela PM em SP, em 2017 (Arte Andreia Freire/Foto Rafael Bonifácio)

 

No rastro das dinâmicas perversas que vêm ceifando vidas de homens, mulheres, jovens e crianças em todo o país, tem se aguçado também a percepção da brutalidade e da desigualdade que as atravessam. Dados trazidos por levantamentos como o Atlas da Violência de 2017, lançado pelo Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, não deixam dúvidas sobre alguns desses fatores: sua magnitude (mais de 59 mil homicídios no país em 2015); além de as vítimas serem majoritariamente negras (71 em cada 100), a desproporção entre assassinatos de homens e mulheres negros e brancos vem crescendo nos últimos anos. Por fim, o fato de que, entre jovens de 15 a 29 anos, esse número chegou a mais de 31 mil homicídios em 2015.

O universo das mortes violentas tem ainda um recorte especialmente significativo, o da responsabilidade e participação das instituições policiais em suas diferentes configurações e formas de ação nessas mortes, tema central deste dossiê. Refletir sobre isso implica, entre outras coisas, discutir o papel desempenhado por agências, práticas e representações estatais na gestão da vida e da morte, bem como no governo de territórios físicos e existenciais. Diferentes atores têm denunciado não apenas a permanência e o crescimento das mortes por ações policiais, mas também os custos de viver sob a constante pressão da militarização e da discricionariedade.

No Rio de Janeiro, a campanha Caveirão Não, lançada em fins de 2017 por um conjunto de movimentos sociais e organizações de direitos humanos, busca chamar atenção para o amplo raio de destruição que tais formas de ação policial deixam na vida das pessoas, destacando o quanto as operações policiais realizadas nas favelas valem-se de aparatos de guerra e combate. Para além das mortes que produzem – em 2017 as polícias do Rio mataram 1124 pessoas, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública –, há as escolas e os postos de saúde fechados, a impossibilidade de deslocamento, a suspensão da vida, as situações de medo e angústia. Ao reeditar ação semelhante que havia sido realizada em 2006, a campanha fala-nos da continuidade e do agravamento desses modos de gestão da vida em um cenário no qual a morte parece estar sempre à espreita. Conta-nos, assim, do que poderíamos chamar de uma “necrogovernança” tecida nas rotinas policiais, judiciárias, hospitalares e escolares capaz de deslocar morbidamente a conhecida fórmula foucaultiana do “fazer viver / deixar morrer” para um “fazer morrer alguns” e “deixar morrer outros (e outras) tanto(a)s”.

Caminhos importantes para refletir criticamente e atuar politicamente têm sido abertos há tempos por movimentos sociais que buscam enfatizar o caráter coletivo e sistemático dessas modalidades de governo pela destruição. Compreendê-los a partir de bandeiras como extermínio da juventude negra ou, mais profundamente, como fazendo parte do genocídio negro é um veio contundente que permite sublinhar que a cisão entre pessoas, espaços e relações consideradas relevantes em termos estatais é antes de tudo racial e colonial. Os argumentos que sustentam essas formulações vão muito além dos números assombrosos de que dispomos e remetem aos processos históricos de desumanização de pessoas e povos que fazem parte de nossa construção como país e/ou nação.

Entre as formas de articulação política contemporânea que buscam questionar tais processos e sua materialização concreta em pessoas e espaços – notadamente em jovens, homens e mulheres negros, moradores de favelas e periferias –, há uma que parece mobilizar com especial densidade o alcance relacional que cada uma dessas ações de controle e destruição tem. Quem já esteve presente em atos públicos de protesto pelo assassinato de pessoas por policiais ou por outros agentes de Estado se deparou com mulheres que falam de tais mortes a partir de um lugar único: o de mães. Pode haver também irmãs, esposas, irmãos em tais atos, mas significativamente são as mães que ficam mais fortemente em nossas memórias e que acabam, em geral, englobando todos os demais familiares. Elas falam em nome de si mesmas, de seus filhos, de suas companheiras de caminhada, de outros jovens mortos e de jovens que, mesmo estando vivos, podem ser mortos a qualquer instante. São figuras morais únicas, capazes não apenas de mobilizar o registro da perda insuportável e indizível de seus filhos, mas de entretecer o absurdo de suas mortes às políticas de extermínio, encarceramento e brutalização em que foram capturados.

Para além dos atos públicos, elas têm produzido imagens, reflexões e articulações que devem e precisam ser cada vez mais reconhecidas. Reunidas em coletivos como a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, do Rio de Janeiro, nascida do evento brutal da Chacina do Borel, em 2004; o Movimento Mães de Maio, de São Paulo, surgido em reação à matança promovida pelas forças policiais em maio de 2006; as Mães de Manguinhos, constituídas após as execuções cometidas pela UPP a partir de 2013; entre outros, elas vêm se consolidando cada vez mais como atores políticos fundamentais. Em maio de 2017, elas realizaram o II Encontro Nacional de Familiares Vítimas do Terrorismo de Estado, no Rio de Janeiro – no ano anterior, o primeiro encontro desse tipo foi realizado em São Paulo, marcando também os dez anos dos crimes de maio –, permitindo o estreitamento de laços entre mulheres não apenas do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas também de outros estados, como a Bahia e o Ceará e de outros países, como no caso de militantes do Black Lives Matter, dos EUA.

Visitar as páginas virtuais desses movimentos e coletivos, ler os livros que vêm publicando ou os documentários de que participam são apenas alguns dos caminhos para ter noção, ainda que à distância, da grandeza do enfrentamento político que travam e do modo como nos levam a pensar – e a sentir –, de outra forma, o terror cotidiano do Estado. Ou, refazendo a frase, nos levam a compreender o Estado como experiência última de terror. Nesse sentido, não me cabe aqui reproduzir palidamente o que elas vêm colocando com suas próprias vozes, corpos, afetos e inteligência e que está, como disse antes, ao alcance de alguns cliques, de uma leitura ou da presença e apoio concreto em suas ações. Na medida do possível, o que gostaria de sublinhar é algo da complexidade dessa maternidade política que elas trazem à cena e que se aproxima estrategicamente de outras que se tornaram já bastante conhecidas, sem, porém, se confundir com elas.

Em carta produzida no I Encontro da Rede Nacional de Familiares, elas afirmam: “Nós somos Mães. Nós somos Mães Negras, Mães Indígenas, Mães Trabalhadoras, Mães Pobres, Mães de Favelas, Mães Periféricas: Nós somos Mães Guerreiras! Nós somos Mães Sem-Teto, Mães Sem-Terra, Mães Donas de Casas e de Barracos, Empregadas ou Desempregadas, Mães de Secundaristas em Luta, Mães de Poetas e Mães Poetisas, Mães de Presidiários e Mães no Cárcere: Nós somos Mães Quilombolas!”. E seguem agregando, entre outras, as identificações/fusões com as “Mães Africanas, Mães das Favelas Brasileiras, Mães dos Estudantes Desaparecidos de Ayotzinapa (México), Black Mothers das #BlackLivesMatter dos EUA, Mães das Vítimas do Estado Colombiano, Madres e Abuelas de Plaza de Mayo da Ditadura Argentina, Mães da Faixa de Gaza (Palestina), Mães dos Rappers Presos em Angola, Mães da Paz e da Guerra de Libertação do Povo Curdo, Mães Latinas, Mães Asiáticas, Mães Norte-Nordestinas, Mães Retirantes, Mães Refugiadas: Nós somos Mães Sem-Fronteiras!”.

Ao mobilizar a maternidade como componente central de sua participação na cena política e das possibilidades de solidariedades ativas entre mulheres, coletivos e causas, elas apresentam-se como figuras antes de tudo compostas: são mães entre outras mães (mas não entre quaisquer mães); são parte de uma díade estreita e inseparável com seus filhos e, finalmente, são as que podem mover-se com mais propriedade entre o singular de cada perda e seu sentido coletivo, esse necessariamente político e socialmente marcado.

É na linguagem da conexão profunda por elas acionada que talvez possamos acessar o avesso desse “necrogovernar” presente nas ações de terror estatal. Ao cotidiano do matar e do deixar morrer se opõe a presença da maternidade não apenas como valor moral, mas também como articulação política, estética e afetiva que se desdobra nas vozes que são simultaneamente delas e de seus mortos. Elas falam “sobre” eles, dizendo o que gostavam de comer, seus sonhos, as lembranças, o que vestiam quando saíram de casa pela última vez, os netos que lhes dariam um dia. Ao fazê-lo, elas os fazem vivos no trabalho profundo do luto que aqui nos atinge tanto no plano da compaixão pessoal, como no da responsabilidade política. Não são “mortos em confronto”, não são “balas perdidas”. São Thiago, Johnatha, Rogério, Rafael, Paulo, Ana Paula, Andreu, Hugo, Davi, Alef, Cristian e tantos outros, cada qual evocado em seu nome, cada qual tendo pedaços de sua história recitados por elas.

Mas também falam “por” eles. “Os Nossos Mortos têm Voz. Os Nossos Mortos têm Mães”, repetem. Sua definição do “estar na luta” está eivada de referências a essa obrigação de ser a voz do outro, de produzir-se compositamente através de nova dimensão da maternidade, só revelada após a morte dos filhos e a partir da peregrinação por instituições estatais diversas em busca de escuta, apuração, responsabilização. Se, ao falarem deles, elas retecem uma vida que está sendo desfeita pela morte e pelo modo como essa morte é enquadrada pelas agências estatais, pelas mídias dominantes e pela indiferença geral, ao falar “por” eles, elas evocam o lugar político que lhes é devido. Não são quaisquer mortos, são os seus, porque outros não seriam mortos dessa forma. Há aqui, portanto, uma operação materna que também secciona, distingue e acusa a desigualdade, cobrando posicionamento, produzindo voz.

E, por fim, elas falam “com” eles. Em sonhos, em premonições, mas também através das doenças que se inscrevem em seus corpos materializando uma vez mais as danosas relações entre o fazer e o deixar morrer. Ao falar com eles, elas nos apontam a força dessa presença fantasmática que às vezes as consola, às vezes as atormenta pela saudade, pelo sentimento de injustiça. É nessa fala conjunta, ecoada e que não pode ser plenamente explicada ou dissecada que encontramos, creio, a marca mais pungente do alcance coletivo da política de destruição em que estamos metidos. Os corpos atingidos e registrados em chocantes dados quantitativos são, afinal, corpos morais, múltiplos, plenos da presença do outro. Não há mortos individuais aqui. E, por isso, não há mortos que possam ser completamente sepultados. Esse assombrar contínuo não se encerra em suas mães, mas está imiscuído na vida de todos nós.


Adriana Vianna é doutora em Antropologia Social pela UFRJ e professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ

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