Subjetivação da violência

Subjetivação da violência
Na omissão de um sistema prisional ou nas ações homicidas nas periferias, a violência institucional do Estado prolifera (Divulgação/Arte Andreia Freire)

 

A nossa proposição é a de que a continuidade, a permanência e a sofisticação dos modos de violência poderiam ser sintetizados, na experiência brasileira, em um regime produtivista dominante: a subjetivação do outro, o inimigo da sociedade. Essa produção reúne, entre suas efetividades e discursos, as principais estratégias de uma lógica autoritária de governo.

Muito se ouve, se fala e se sente acerca da violência. O ódio se encontra disseminado como se não fosse possível habitar o mesmo espaço do outro que pensa e age diferente. A violência institucional do Estado prolifera, seja na omissão de um sistema prisional, como nas mortes em massa no início de 2017, seja nas ações homicidas das polícias militares nas periferias e lutas de resistência. Contudo, as práticas sociais agressivas, punitivistas e de linchamento não se resumem à tradicional oposição Estado versus sociedade. Nas comunidades, nos bairros, nos transportes públicos ronda o fantasma da “sensação de violência” e todas as reações por ele suscitadas.

As causas desses fenômenos nos parecem múltiplas, talvez tanto quanto o são suas ocorrências. Bem como são históricas e tradicionais. Sofrem mais do dinamismo da continuidade das formas políticas e sociais do que da sinergia das rupturas. Quero dizer que não há nessas práticas grandes novidades, mas se trata antes de seus incrementos. Assim, apesar das várias facetas sob as quais poderíamos analisar a violência estrutural, há certos mecanismos e estratégias que se repetem.

A violência do Estado

Cerca de 60 mil pessoas são assassinadas no país a cada ano. Algo absurdo ao se acrescentar toda sorte de violência física e psicológica. Há que se considerar o histórico de grave desigualdade social, que só vem se acentuando – apesar da diminuição do número de pessoas em situação miserável, o abismo entre pobres e ricos aumentou, com o crescimento da concentração de riquezas nas mãos de poucos.

Contudo, há uma violência que se destaca nas estatísticas. É a cometida por agentes de segurança pública, justamente aqueles que deveriam ou poderiam atuar no sentido de diminuir a atual condição alarmante. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo, produzindo óbitos muitas vezes sem a mínima preocupação com a legalidade de seus atos. São inúmeros os casos de assassinatos não computados. De modo semelhante aos procedimentos da ditadura militar (1964-1985), parte desses crimes é acobertada e, por vezes, com a cena do crime adulterada e o falseamento das narrativas.

Vejamos o exemplo do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, que faz a computação de dados sobre mortes violentas intencionais registradas no sistema de saúde. Há, como forma de registro, as categorias Y35-Y36 do SIM sobre informações de “intervenções legais e operações de guerra”. Ter no Brasil uma base de registros oficiais para “operações de guerra” denota o quão bélica se encontra a sociedade. Talvez ainda mais grave seja o registro de “0” ocorrência sobre a violência policial, em alguns anos ou em alguns estados da Federação. Ocorre, portanto, uma subnotificação da violência de Estado.

Segundo o Atlas da Violência de 2016, um jovem negro ou pardo tem 147% mais chances de ser assassinado do que um branco ou amarelo. O país democrático, em seu cotidiano, tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria das vítimas é de mulheres negras. Segundo pesquisa de 2015 da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8%.

Houve tentativas de algum controle da violência estatal. Exemplo disso foi a criação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, de 2013. Com cinquenta por cento mais um de seus membros formados por representantes da sociedade e o restante de seus membros pertencentes ao governo federal, tal iniciativa falhou em implementar ações concretas de contenção da tortura. O maior problema foi a ação corporativa dos representantes estatais, conforme denunciou a Pastoral Carcerária ao se retirar do Comitê em 2016. Apesar dos esforços, a forma violenta de sociabilidade configura-se no senso comum e no cotidiano como a normalidade.

O quadro da violência indica como vítimas endêmicas jovens negros e pobres nas periferias, bem como mulheres, em especial a mulher negra. Esta é a principal estrutura da violência: o binômio racismo e machismo. É a síntese de uma sociedade bélica, ainda que astuta o suficiente para se declarar respeitosa das diferenças e racialmente democrática. Se somarmos o fato de que o futuro breve das gerações de jovens será de graves dificuldades no acesso aos direitos trabalhistas, previdência social cada vez menos abrangente e mundo do trabalho precário, a violência poderia ser nomeada de genocídio.

A designação de genocídio para o que ocorre no cotidiano da sociabilidade brasileira pode parecer, à primeira vista, um exagero emotivo e desproporcional. Afinal, o brasileiro nasceu e cresceu sob a ideia de que nessas terras se experimenta uma sociedade conciliatória e cordial. O que vem ocorrendo, especialmente com a população negra, desde sempre, mas agora com o incremento das novas máquinas políticas – suas tecnologias e estratégias de controle –, é o desenvolvimento de um genocídio institucional e sistêmico. Justamente por seus aspectos cotidianos e discursivos se efetiva de modo insidioso e, para alguns, invisível, apesar de ser tão evidente.

A função sistêmica da segurança pública

Se a normalidade é a violência, como os indivíduos em situação precária podem experimentar uma autodefinição de suas existências? Enfrentar a desigualdade social é a condição básica e necessária para se repensar o quadro de violência. Nega-se às vítimas o direito de autodefesa – se o fizerem, serão classificados como vândalos e desordeiros, elementos patológicos diante do normal e da ordem.

Desse modo, ao operar certa forma de governo da população, a violência torna-se um mecanismo fundamental de manutenção das formas de controle e dominação, bem como  um dispositivo de bloqueio e anulação das potências de resistência dos coletivos atingidos. A lei, a ordem e a normalidade social “acolhem” todos em seu aconchego “democrático” e nacional. Desde que não iniciem processos de ruptura ou criação de outras experimentações fora das regras.

Há regimes de subjetivação em torno da segurança que produzem o medo e a necessidade de medidas “fortes”. Reduzir a idade penal para conter a presença dos adolescentes no crime; encarceramento em massa da população com aumento das penas; aquisição de armamentos novos e mais eficazes para as polícias; investimento em tecnologia de vigilância da população; criação de batalhão de agentes treinados para impedir manifestações de rua; uso das Forças Armadas em patrulhamento de espaços civis precarizados.

Nesse contexto, a produção de eficientes máquinas de controle social legitima políticas de uso da força na segurança pública e alimenta uma violência desmedida e histórica por parte de agentes do Estado. Ano após ano, em continuidade à lógica de combate ao inimigo interno institucionalizada durante a ditadura, o Estado de direito não tem obtido resultados positivos na diminuição da violência. É quase esquizofrênico, mas quanto mais o Estado é violento, mais o quadro social se apresenta como de crise produzida pela violência urbana e mais ainda se autoriza o investimento na capacidade institucional de uso da violência.

Do ponto de vista da eficácia do atual sistema de segurança pública, é mais importante uma situação de violência urbana do que de relações harmoniosas e de respeito aos direitos. Para o controle social, se faz necessária a disseminação de subjetividades violentas, seja qual for o alvo (podendo ser até mesmo o próprio Estado e a ordem), para se manter o discurso da necessidade de controle e militarização.

Haveria a disseminação do terror mobilizando uma opinião pública com a sensação de vulnerabilidade e alimentando o jogo do medo. Nesse contexto, pouco importa se as polícias têm a imagem de eficientes ou de serem completamente desestruturadas. O efeito que se pretende é o de mostrar à população que a força aplicada será necessariamente acima da legalidade. A lei funcionaria somente como um parâmetro de medida da violência. Com a combinação do jogo do medo e a percepção de uma força acima das leis, o sistema de segurança pública demonstra que o aparato constitucional é insuficiente para proteger os cidadãos, demandando o acionamento do autoritário e violento para conter o “outro” perigoso.

O discurso bélico e a produção do outro

O Estado de direito, inaugurado sob a herança de um regime ditatorial profundamente violento, nasceu sem processos contundentes de ruptura. Isto sustentou um modo de operação da violência por meio da produção de subjetividades aptas e suscetíveis à violência, porosas às formas fundamentais do ódio ao outro.

No Brasil pós-ditadura nasceu certa democracia cuja legitimação central adveio do discurso acerca de uma história de violações. Incorporou-se a esperança de se desfazer do passado indesejado com políticas de diminuição dos sofrimentos sociais. A Constituição de 1988 seria a promessa das novas práticas e da produção de sujeitos universais – mulher, índio, idoso, adolescente, quilombola, trabalhador – cujas naturezas eram a própria história de vitimizações contínuas. A lei, legitimada na fundamentação futura de uma outra vida, seria a redenção para esses sujeitos.

Contudo, com a narrativa de construção do estado de direito, soberano, centralizado, formado pelos “brasileiros”, subjaz franco e atuante, ainda que silencioso e rasteiro, o discurso do conflito, do inimigo. Os vivas à democracia, à Constituição, às leis e à ordem convivem com o ódio ao outro via o racismo agressivo, o preconceito contra o nordestino, as homo, trans e lesbo fobias, o machismo, o genocídio dos índios, a desqualificação do pobre.

Produz-se o cidadão de bem, pacífico, trabalhador (ou proprietário) e ordeiro, em oposição ao vagabundo, vândalo, louco, drogado, arruaceiro, o indivíduo fora das bordas autorizadas pela ordem. Considerando-se esse outro como estranho, estrangeiro, aquele que não é “nós”. É como se ele fosse um ser contaminado, contagioso, estranho ao corpo social.

A produção do outro e a continuidade histórica da violência se deve, em grande medida, à persistência e ao incremento do racismo, do machismo, do etnocídio. Parece que qualquer saída para o problema passa pelo desmonte radical da estrutura racista e machista, alicerce dos regimes de subjetivação da violência.


Edson Teles é doutor em Filosofia pela USP, professor do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp e membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura

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