Feridas de uma herança dolorosa

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Feridas de uma herança dolorosa
(Arte Andreia Freire / Foto Du Amorim)

 

Em um país como o Brasil, cujas estruturas sociais são profundamente marcadas por uma lógica escravocrata, a violência de Estado é um elemento caro para pensarmos tanto as trajetórias percorridas no passado quanto os caminhos possíveis a serem trilhados a partir do presente. Em um país onde a violência institucional foi condição de possibilidade para as fundações de nossas estruturas sociais e políticas, relembrar os efeitos perversos e cruéis de uma série de violações é uma forma de atuação política que retoma o passado a fim de transformar o presente, recupera a história de violência e extermínios que fizeram parte do nosso corpo social a fim de mostrar como a violência de Estado não só fez parte do passado nacional, como ainda faz parte da vida cotidiana. Segundo a filósofa Jeanne Marie Gagnebin em Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, é preciso construir uma elaboração coletiva do passado, uma política de rememoração na qual a violência de nosso passado não seja esquecida e seja encarada como uma herança dolorosa sentida por nossa sociedade no presente.

As dimensões da violência do Estado brasileiro se desdobram das mais variadas formas, desde o exercício excessivo do aparato policial militar na dinâmica dos espaços urbanos, que expõe certas populações mais à morte do que outras, até a violência institucional exercida nas inúmeras manobras e estratégias políticas do Congresso Nacional, cuja orientação religiosa, sexista e racista tem tentado esvaziar os direitos políticos historicamente conquistados. As populações que mais sofrem a violência de Estado no Brasil hoje continuam sendo as mesmas há décadas. O Brasil foi colonizado a partir do extermínio dos indígenas, da tomada de suas terras, e da escravidão de negros africanos. Mais de quinhentos anos depois, a população quilombola, favelada, indígena, os moradores de rua, o público LGBT, as mulheres continuam sendo alvos preferenciais da violência institucional no Brasil, cujas estruturas de poder resistem a mudar.

O passado brasileiro é marcado pela colonização e pela escravidão, de modo que a violência institucional que recai sobre a população e as inúmeras mortes provocadas pelo Estado são vistas mais como episódios da história nacional do que como uma herança dolorosa que promoveu feridas no tecido social sentidas até os dias de hoje. Como defendeu Walter Benjamin em sua sétima tese de Sobre o conceito de História, “Todo monumento de cultura é um monumento de barbárie”. Dessa forma, a cultura e a história nacional brasileira foram construídas sobre os escombros de um passado perverso, empilhado sobre um amontoado de corpos mortos deixados pelo caminho do que chamaríamos o avanço da civilização. No atual cenário, rememorar é elaborar o passado coletivo e reconhecer a barbárie. Rememorar é, como no movimento do anjo da história da nona tese de Benjamin, olhar para o passado e ver uma catástrofe única, acumulando ruína sobre ruína e, no entanto, tenta deter-se, acordar os mortos e juntar os fragmentos. Talvez estejamos vivendo um momento histórico no qual o anjo da história está mais uma vez sendo impelido pela tempestade em direção ao futuro, com o rosto dirigido ao passado, olhos escancarados, boca dilatada e asas abertas, tentando acordar os mortos.

Acordar os mortos do passado não é outra coisa senão trazer esses mortos à memória, mantê-los vivos em nosso imaginário social coletivo. O trabalho de luto poderia nos levar a um modo de relacionamento com o passado a fim de construir um presente menos marcado pela produção em massa de mortes pela violência de Estado. Em Quadros de guerra, quando a vida é passível de luto?, a filósofa Judith Butler faz uma interessante análise acerca do luto público como uma questão política. Para a autora, é uma política de luto que faz com que algumas vidas sejam consideradas valiosas e, portanto, quando perdidas, passíveis de serem enlutadas, enquanto outras vidas são tidas como desimportantes e, caso venham a ser perdidas, não são passíveis de luto. Para Butler, essa gramática na qual a população é dividida entre as pessoas por quem lamentamos e aquelas por quem não lamentamos exigiria uma política do luto público, cuja função seria reconhecer que aquela vida foi uma vida perdida e que, portanto, era considerada uma vida digna de ser vivida. Nos casos em que algumas vidas quando perdidas nem sequer são lamentadas publicamente pela sociedade significa que a perda daquela vida não foi sentida, pois aquela vida nunca fora reconhecida como uma vida passível de ser lamentada quando perdida. O luto seria um mecanismo não apenas de reconhecer a perda, mas antes do reconhecimento de que há ali uma vida vivível.

O diagnóstico teórico-político de Butler nos revela que o que há em jogo é uma distribuição desigual do luto público, no sentido de que algumas vidas parecem merecer viver mais que outras e, dessa forma, algumas vidas têm valor social e político e outras não. A distribuição desigual do luto público torna-se, na sociedade brasileira, um dos mecanismos pelos quais se aciona a violência de Estado em suas múltiplas formas de poder. Diante de um cenário no qual as instituições policiais – cuja prerrogativa seria a de proteção da população – estão entre as que mais expõem certos segmentos sociais à violência e à morte, operando uma lógica de segurança pública não com o outro, mas apesar do outro, a distribuição desigual do luto público participa de uma política de extermínio.

Vale lembrar aqui alguns episódios emblemáticos recentes nos quais tal mecanismo como forma de poder do Estado se faz presente. Em 28 de novembro de 2015, cinco jovens foram assassinados por policiais militares no que ficou conhecida como “chacina de Costa Barros”, Zona Norte do Rio de Janeiro. Os jovens estavam dentro de um carro andando pelo bairro de mesmo nome comemorando o primeiro emprego de Roberto, uma das cinco vítimas assassinadas. Na volta da lanchonete, foram abordados por uma viatura com quatro policiais que alegavam aguardar a chegada de traficantes que tinham roubado a carga de um caminhão nas redondezas. Os policiais dispararam 111 tiros em direção ao carro que levava os cinco jovens. Todos morreram.

Um ano depois, em 29 de novembro de 2016, o avião que transportava, entre muitas pessoas, a equipe da Chapecoense que viajava para disputar a primeira partida da final da Copa Sul-Americana em Medelín, caiu nas proximidades do aeroporto da cidade colombiana. Cerca de 70 pessoas morreram no que ficou conhecido como um episódio trágico daquele ano. Autoridades públicas anunciaram, em nome de suas instituições políticas competentes, notas de solidariedade e luto aos mortos nessa tragédia. O presidente Michel Temer decretou luto oficial de três dias; o Superior Tribunal Federal, na voz da ministra Cármen Lúcia, prestou solidariedade às vítimas; o ministro do Esporte, Leonardo Picciani, e o presidente do Senado, Renan Calheiros, também prestaram solidariedade às vítimas.

Em 12 de julho de 2017, um morador de rua e catador de materiais recicláveis, Ricardo, negro, de 39 anos, foi assassinado por um policial militar no bairro de Pinheiros, na capital paulista. Segundo relatos, Ricardo pedia comida em frente a um estabelecimento, que chamou a polícia. Ricardo, ao ver a polícia, pegou um pedaço de pau na mão e, por se negar a baixá-lo quando recebeu ordem para fazê-lo, levou dois tiros na altura do peito e morreu na mesma noite. O que diferencia esses três episódios brevemente relatados, além da natureza da causa das mortes, é o fato de que há uma diferenciação e hierarquização do grau de importância, apelo social entre tais perdas. A distribuição desigual do luto público atua justamente no modo como o Estado brasileiro, representado por instituições como o Executivo, Legislativo e Judiciário, enluta algumas perdas e outras não. O apelo social da tragédia do time da Chapecoense revela que as vidas perdidas nesse episódio são consideradas perdas de fato, pois eram vidas dignas de serem vividas. Tratava-se de vidas vivíveis e, portanto, quando perdidas, passíveis de serem publicamente enlutadas. Ao passo que os episódios de assassinato tanto do morador de rua no bairro de classe média paulistano quanto dos cinco jovens alvejados pelos policiais militares no subúrbio carioca revelam que, para o Estado e para a sociedade em geral, aquelas vidas que se foram não tinham valor, por isso não são sentidas como perdas reais e nem sequer foram enlutadas publicamente por autoridades públicas e pelas instituições. Não se soltou nota pública em solidariedade aos familiares da chacina. Não se lamentou a perda da vida de um morador de rua que tinha nome e sobrenome, era Ricardo Silva Nascimento. Como afirma Judith Butler, uma vida só é reconhecida enquanto tal diante da condição de, quando perdida, ser enlutada. Não existe luto público para aqueles cujas vidas nem sequer são reconhecidas como vidas de fato.

Pelo contrário, estes dois episódios foram provocados por formas de violência institucionais que definem quem deve morrer e quem deve viver em nossa sociedade, confirmando o diagnóstico do filósofo Michel Foucault no livro Em defesa da sociedade: só o racismo justifica uma política de Estado que deixa viver e faz morrer. A partir dessa clivagem entre os que merecem viver e os que merecem morrer, o aparato repressivo militar é acionado em sua máxima potência, colocando em prática o revés de sua prerrogativa de proteção, ou seja, seu poder de matar. Ora, o que é um morador de rua negro pedindo comida em frente ao supermercado num bairro de classe média alta paulistano? É vida matável. O que são cinco jovens negros dentro de um carro numa comunidade pobre do Rio de Janeiro? Vidas matáveis. São consideradas matáveis mesmo antes de serem mortas, são consideradas matáveis porque mesmo enquanto estão vivas não são consideradas vivas. Assim, na sociedade brasileira, as mesmas populações cujas vidas nunca tiveram o direito a qualquer tipo de mecanismo de proteção, também não têm direito ao luto público, já que nunca foram tidas como vidas vivíveis e, portanto, enlutáveis.

No caso da chacina de Costa Barros, mães, familiares e amigos das vítimas da violência de Estado frequentemente se reúnem em espaços públicos para manter viva no imaginário social coletivo a memória dessas vidas perdidas. Se o Estado não enluta essas perdas, as famílias se colocam diante desse desafio, enlutar publicamente seus entes, com suas fotos e nomes estampados em camisetas e escritos em cartazes, para que suas perdas não fiquem restritas ao ambiente familiar e para que suas vidas sejam reconhecidas como vidas que poderiam ter sido vividas. Wilton, Wesley, Cleiton, Carlos Eduardo e Roberto. Estes são os nomes gritados publicamente por aqueles que realizam o trabalho de luto. É preciso colocar o corpo nos espaços públicos e enlutar os que se foram e que, no entanto, não têm seus nomes lembrados, não têm suas histórias contadas. É preciso acordar esses mortos e saber seus nomes, pois eles têm muito a dizer sobre o país em que vivemos.

Foi preciso também que os moradores da vizinhança de Pinheiros realizassem, no dia seguinte ao assassinato de Ricardo, um protesto no qual se misturaram com outros moradores de rua para denunciar o que saltou aos olhos da classe média como o absurdo vivido diariamente nas periferias brasileiras e que, naquele momento, estava ao seu lado. Para os manifestantes, a vida de Ricardo era digna de ser vivida. A vida de Ricardo e a dos cinco jovens de Costa Barros só puderam ter a chance de se tornarem, minimamente, vidas dignas de reconhecimento porque o trabalho de luto excedeu o ambiente familiar e se tornou público; portanto, político. Quando a sociedade brasileira puder lidar com seus mortos, souber voltar seus olhos para o passado e enlutar essas vidas, poderá repensar os efeitos perversos que as práticas de extermínio empregadas pelas forças policiais no presente terão em nosso futuro. Voltar os olhos para o passado de modo a enlutá-lo faz parte da condição de possibilidade para barrar a violência de Estado no presente e tentar evitar a repetição do ciclo de violências que implica a perda de vidas que nem sequer são consideradas vidas de fato, bem como as vidas que nem vieram a nascer e já são anunciadas como vidas sem valor algum.

Sem o trabalho de luto público, as feridas de uma herança dolorosa presentes em nosso corpo social dificilmente cicatrizarão, e o passado será revivido diariamente na barbárie que se acumula. Em um país em que se lamentam as tragédias decorrentes de acidentes de percurso, como a queda de um avião, mas não se lamenta a catástrofe da própria política, é preciso que se reconheça a violência de Estado também como a própria tragédia para que possamos enlutá-la. Ou olhamos para o passado ou estaremos condenados a fazer o luto de um futuro que está desde já dado como perdido


Carla Rodrigues é doutora em Filosofia pela PUC e professora do Departamento de Filosofia da UFRJ

Vinicius Santiago é doutorando em Relações Internacionais pela PUC-Rio e membro da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência do Estado do Rio de Janeiro

(1) Comentário

  1. Se me permite, “trajetórias percorridas no passado quanto os caminhos possíveis a serem trilhados a partir do presente” são importantes. Também precisamos a partir das “trajetórias” projetar e aplicar formas de combater e desmantelar as estruturas racistas, lgbtfóbicas e, ainda, escravocrata no país do mito da democracia racial.

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