A economia sequestrada: o papel da retórica econômica em nossas vidas

A economia sequestrada: o papel da retórica econômica em nossas vidas
‘Esmola’ (Natasha Silva / Nts Art / Divulgação)

 

É absolutamente importante analisar o papel da retórica econômica em nossas vidas. A economia não é uma ciência exata como alguns podem pensar. É uma ciência que só pode ser compreendida à luz da antropologia, da história, da filosofia, da estatística, do direito e da sociologia. Do mesmo modo, a economia nos ajuda a entender os demais campos. Infelizmente, embora haja várias visões de economia oriundas dos mais diversos pensadores, visões que se enriquecem por um método interdisciplinar, algumas se tornam hegemônicas, ou seja, se tornam tendências dominantes. A democracia, como combinação entre diversidade e singularidade, evidentemente, perde com isso.

Não há nada mais difícil do que reconhecer a tendência dominante, porque, de um modo geral, aderimos a ela sem pensar e colaboramos com o seu domínio. Uma tendência se torna dominante em qualquer área muitas vezes por ser “tendenciosa”. Mas esse fato não garante que ela seja verdadeira, nem que faça sentido, muito menos que melhore a vida das pessoas.

Essa retórica econômica sustenta o sequestro da economia. Ele é orquestrado na linguagem e se faz passar por verdade. Trata-se de um sequestro ideológico que afeta todos os âmbitos. Por meio dessa retórica, compram-se e vendem-se ideias falsas muito úteis à vida: 1- de que economia é algo que existe em separado de política; 2 – de que a economia é importante e a política não; 3 – de que resolvendo as questões econômicas, todos os problemas existentes estariam resolvidos.

A ideia de que a economia deve estar separada das questões políticas é uma falácia. Economia ou política não são substâncias das coisas, nem verdades ancestrais e essenciais, mas tão somente categorias de organização e análise. É um fato que a separação entre economia e política é forjada por aqueles que tem interesse em subordinar a política à economia com o objetivo de proteger seus interesses econômicos.

A separação entre economia e política ajuda a forjar a inutilidade da política e a superioridade da solução econômica. Esconde-se nesse processo o fato de que toda economia tem algo de política. Mesmo a mais provada e liberal, mesmo a neoliberal. A lógica que opõe as categorias evitando que se veja sua ligação privilegia a visão abstrata da economia.

Essa visão abstrata ajuda a sustentar o rebaixamento de todas as coisas que existem, seres e objetos, as pessoas ou a natureza, a uma forma. No caso, está em jogo a forma “mercadoria”. Por meio da forma mercadoria lançada sobre as coisas que existem, acreditamos que tudo tem um preço, tudo pode ser vendido. Mas não é verdade que tudo pode ser vendido. Quando as pessoas falam que alguém seria capaz de “vender a mãe”, se referem àquilo que não tem preço, ou seja, ao que filósofos antigos definiam como sendo da ordem da “dignidade”.

Estamos nesse caso diante dos valores universais, valiosos muito para além da mercadoria e seus preços, aqueles que se referem ao mais importante, ao que realmente importa, ao valor mais básico, sem o qual não há vida. O ditado popular usa a metáfora da “mãe” para sinalizar para o que não pode ser vendido, porque está acima de qualquer preço. A metáfora da “mãe” nos ajuda a colocar uma questão fundamental: que “bens”, afinal, poderiam ser comparados a esse não ter preço de uma “mãe”?

A água, a terra, a natureza, fauna e flora, o corpo, são exemplos físicos. O amor, a amizade, a ética, a lei, o respeito, poderiam ser exemplos metafísicos em relação aos quais, como a mãe, não se pode estabelecer um preço.

Que bens realmente poderiam se tornar mercadorias? Que capital poderia ser, de fato, acumulado? Hoje, no campo da economia do conhecimento, questiona-se justamente o “pedágio” que uns ganham sobre os esforços dos outros. Muitos já questionam a propriedade privada muito para além do dogma sagrado do capitalismo. Qual afinal seria o fundamento da propriedade quando pensamos em nossa humana história de apropriações indébitas promovidas nas invasões perpetradas por europeus ao redor do mundo? Por explorações da força de trabalho? Por dominações violentas sobre lugares e corpos? É a ideologia do capital que sempre se lança sobre os corpos para escravizá-los, prostrá-los, dominá-los, rebaixar os corpos vivos à autômatos, o que nos cabe entender.

Na verdade, não há nada mais aprisionador do que a ideologia do capital em sua operação simbólica de tortura material e moral em tempos de austeridade neoliberal. A ideologia do capital sequestrou a economia impedindo que ela se torne criativa e liberte, assim, as potências humanas para um outro mundo possível.

(1) Comentário

  1. Sempre bons, os seus artigos. Nos ajudam a refletir sobre os problemas e a perceber o que está por trás das propagadas dos detentores do poder.

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