A Constituição é importante demais para ser deixada na mão do STF

A Constituição é importante demais para ser deixada na mão do STF
A Constituição Brasileira completa 30 anos em outubro de 2018 e temos bem pouco a comemorar até aqui (Arte Andreia Freire)

 

A Constituição Brasileira completa 30 anos em outubro de 2018 e temos bem pouco a comemorar até aqui. Quem já leu a Constituição, em especial seus primeiros artigos, cheios de princípios virtuosos e grandes aspirações de mudança, constata facilmente que essas três décadas, entre altos e baixos, deixaram muito a desejar na construção daquela “sociedade livre, justa e solidária” ali projetada.

Ulysses Guimarães, no discurso de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, dizia que ela havia sido escrita com “sopro de gente”, com “ódio e nojo à ditadura” e que “a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”. De lá pra cá, no entanto, Ulysses sumiu no mar e o que temos visto é uma Constituição cada vez mais aprisionada pelos discursos jurídicos mais distantes daquele ânimo transformador registrado no texto constitucional.

Quem chega até o artigo 3º da Constituição percebe que o Brasil, para deixar no passado a ditadura e as injustiças da nossa formação histórica, propõe-se a ser uma república fundamentada na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político, tendo como objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Costumo dizer que quem colocou isso no texto da Constituição, assim como outros pontos (por exemplo, o detalhamento de direitos fundamentais no art. 5º e o dos direitos dos trabalhadores no art. 7º), não era besta. Pelo contrário, sabia bem o que estava em jogo: um país tão problemático precisa de uma Constituição excelente, que funcione como amplo e cuidadoso projeto político, porque o país tem muito mais a conquistar do que a conservar, muito mais a fazer do que a manter.

O problema da Constituição, daí em diante, passa a ser o de todo projeto: a execução. No caso da Constituição, isso significa revigorar completamente a teoria jurídica das diversas áreas; mudar a mentalidade vigente nos tribunais em todos os níveis; cobrar de todas as autoridades fidelidade àqueles princípios e objetivos independentemente de sua posição política; levar à população a discussão sobre os caminhos a serem seguidos para atingir os objetivos constitucionais, do modo que a população se aproprie completamente do projeto e incorpore seus princípios como limites intransponíveis para qualquer decisão política a ser tomada; e por aí vai, com diversas medidas que poderíamos reduzir ao seguinte: não deixar que a Constituição se afaste de sua natureza política para ser engolida pelos tribunais, onde a “voz (e o ‘sentimento’) do povo” só entra como subterfúgio para a vontade da toga.

E, depois de trinta anos, quanto conseguimos avançar nesse sentido? Muito pouco. Tirando algumas políticas públicas muito significativas tanto nos governos federais do PT quanto em outros níveis que contamos nos dedos da mão, todo o impulso da Constituição chega em 2018 sob a força de um governo ilegítimo, que tomou o poder num golpe apoiado pelos grandes empresários da mídia, por banqueiros, pela elite empresarial, pelas cúpulas do Judiciário, do Legislativo e traidores no Executivo. Se as mãos responsáveis pela execução do projeto inscrito na Constituição nunca foram as ideais, agora certamente ela está em situação ainda pior: na mão dos seus inimigos, dispostos a fazer tudo contra seus princípios e objetivos, e interpretada, em última instância, por ministros que não se constrangem de escrever a lápis um outro texto, a seu bel-prazer, por cima daquele que veio da assembleia constituinte.

Podemos dizer que a “cultura da Constituição”, democrática e social, não colou por aqui, não se enraizou nas ruas, na consciência da maioria da população, nem mesmo nas faculdades de direito, nos fóruns, no jornalismo etc. Ela gira praticamente solta no ar depois de três décadas, em que ao simples toque dos dedos volta à tona todo aquele caldo fascista, ditatorial, militar, elitista, que se imaginava superado ou, no mínimo, expulso do campo das opiniões admissíveis na política e no direito.

A Constituição, hoje, poderia cantar: “Meus inimigos estão no poder”, porque, se a Constituição é democrática, eles são golpistas. Se ela quer distribuir, eles querem concentrar. Se ela quer reduzir desigualdades, eles querem aprofundá-las. Se ela é laica, eles são religiosos intolerantes. Se ela quer o bem de todos, eles querem o bem de poucos – bem poucos! Mesmo quem acha que não passa de um texto como qualquer outro deve convir que a Constituição é importante demais para ser deixada nas mãos do STF, de todos os outros juízes, dos legisladores e demais políticos.

Sei perfeitamente o quanto de mistificação há no discurso constitucional, o quanto de sabotagem existe em cada previsão legal, o quanto de cilada existe no momento em que necessidades sociais se tornam “direitos”, mas ainda assim defendo que a Constituição, pensada do ponto de vista político, é um excelente ponto de partida para a resistência social, haja vista que as principais lutas e movimentos sociais dessas três décadas passam, de alguma maneira, por seus principais artigos.

O texto da Constituição é ambicioso, porque ataca problemas históricos do nosso país e, em alguma medida, os desequilíbrios próprios do capitalismo, ainda mais num país periférico. Sua briga é grande, mas o Brasil de hoje não pode sequer pensar nas grandes ambições de transformação social que estão nela. Por quê? Porque nossa pauta foi tornada medíocre, foi inferiorizada: do golpe para cá temos que defender o óbvio em termos de direitos civis e políticos; temos que salvar o que der dos direitos dos trabalhadores, da democracia, da seguridade social; temos, enfim, que nos contentar com pouco. Nas eleições, se deixarmos, teremos que escolher um inimigo “menos pior”. E é nesse clima que a Constituição pode ser ainda mais vilipendiada.

No sentido da Constituição, devíamos estar conquistando mais, mas estamos apenas defendendo. Devíamos estar executando seus objetivos, mas nos restou apenas acumular derrotas na defesa precária de seus princípios e de direitos fundamentais. O quadro é triste, muito triste. Daqui até outubro, nosso ideal tem que ir além de colocar nas urnas um candidato comprometido com o ânimo transformador da Constituição. Temos que ter a Constituição nas mãos e nas ruas novamente. Penso que esta é a condição para qualquer salto maior que interesse politicamente à esquerda.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

(2) Comentários

  1. Excelente artigo. A velocidade e a virulência do golpe dificultam a compreensão das questões principais de nosso tempo. É curioso e trágico que, hoje, tenhamos de lutar pelo marco constitucional…

  2. Está cada vez mais difícil de entender o papel de nossos servidores sejam eles políticos, juízes etc. A sensação que temos é que parece estarem mais lutando por causa própria do que pelo coletivo da sociedade. E, principalmente, os altos funcionários da hierarquia continuam com altíssimos salários e pouco retorno em serviços para nós…

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