Império da mentira, uma reflexão sobre a crise política e ‘O mecanismo’

Império da mentira, uma reflexão sobre a crise política e ‘O mecanismo’
Enrique Diaz e Selton Mello em cena da série 'O Mecanismo', dirigida por José Padilha e exibida pela Netflix (Divulgação)

 

Começo por um PS (27/3/2018)

A maior parte deste texto foi escrita na última sexta (23 de março), quando me choquei com uma matéria sobre a atuação do MBL na divulgação de mentiras sobre a vida da vereadora Marielle Franco, logo após sua execução. De lá para cá, o texto esteve em revisão, enquanto eu pensava um pouco melhor sobre algumas das questões de que trato nele, mas a revisão foi sacudida, primeiro, pelas notícias sobre a série O mecanismo, da Netflix, que, a pretexto de fazer ficção, distorce gravemente alguns fatos recentes da política brasileira, e, em seguida, pelos diversos ataques à caravana do ex-presidente Lula pela região sul do país. Digo: não apenas os ataques diretos com pedras e tiros, mas também o fato de que seus adversários políticos, desde uma senadora a um governador, não hesitaram em pegar carona na violência, aplaudindo aqueles ataques e, claro, estimulando outros, ainda piores.

Em poucos dias, portanto, o quadro é substancialmente pior. O título foi dado num primeiro momento, em que me preocupava o “império da mentira” passar mais um limite, pisoteando o corpo de uma vítima de atentado político. Mas, hoje, talvez não seja suficiente para descrever os efeitos desse império da mentira, que não apenas produz mentira a partir das nossas tragédias, como produz tragédias a partir de mentiras.

Império da mentira (26/3/2018)

Dias atrás, logo após a execução de Marielle, um amigo publicou uma charge sobre fake news e, na hora em que vi, já havia o comentário de um amigo dele dizendo algo assim: “vai se f… agora vamos deixar de trabalhar pra ficar conferindo se é verdade?”. Lembrei-me disso diversas vezes desde então, porque me pareceu sintetizar algo importante a respeito do nível de seriedade a que boa parte das pessoas está disposta.

E essa lógica contamina tudo, tudo. É impossível, por exemplo, debater com calma o que significa – em termos jurídicos, obviamente – uma decisão do STF na perspectiva da sua própria jurisprudência, do texto constitucional, dos limites da atuação do Tribunal etc., porque vem logo alguém desqualificar o argumento, por mais técnico que seja, a partir de “verdades” aprendidas nas redes sociais e, pior ainda, de vontades políticas muito específicas: “Lula tem que ser preso, nada mais importa”. Aliás, desejar a prisão chega a ser leve quando muitos desejam sua morte.

Já se vê que daí não vai vir coisa que preste em termos de debate, reflexão etc. E já cansamos, por outro lado, de identificar que essa é a natureza do jogo nas redes sociais. Mas não podemos nos demitir simplesmente da tarefa de problematizar e atacar os efeitos disso, ainda mais porque, do outro lado do espectro político, há gente muito disposta e dedicada a tirar proveito do misto de ingenuidade e irresponsabilidade que grassa em centenas, milhares, milhões de perfis nas redes sociais, sempre dispostos a curtir, compartilhar e replicar, também da tela para fora, as “verdades” que recebem.

Aqui nem precisamos lembrar a articulação engenhosa entre a campanha de Trump e o Facebook. Temos nossos próprios exemplos, lamentavelmente. Há poucos dias li que o Movimento Brasil Livre (MBL) participou ativamente da divulgação de mentiras sobre a vida da vereadora Marielle Franco: pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura – Labic) conseguiram rastrear a forma como o próprio perfil do MBL e o de prováveis “robôs” (de carne e osso?) do grupo colocaram no ar e propagaram insistentemente informações falsas para atacar a reputação da vereadora logo após seu assassinato, com base nas declarações terríveis da desembargadora Marília Castro Neves, aquela que disse que Marielle “foi eleita pelo Comando Vermelho” e foi morta porque “descumpriu ‘compromissos’ assumidos com seus apoiadores”.

Tudo bem: o MBL e a desembargadora parecem ter nascido mesmo um para a outra. Afinal, ela também já disse que queria se matar ao ouvir que uma pessoa com Síndrome de Down havia se tornado professora; defendeu o fuzilamento do deputado Jean Wyllys; garantiu que Zumbi foi um mito inventado para estimular o racismo no Brasil e, de quebra, que a Lei Maria da Penha era uma covardia contra os homens.

Que existem pessoas assim, não podemos duvidar, mas temos que acreditar que não são tantas quanto as redes sociais indicam, porque essa agressividade que tem por base ignorâncias grosseiras e mentiras esfarrapadas tem sido um dos traços mais lamentáveis do (não) debate político em nossa época. Não sei o número de eleitores brasileiros que têm acesso frequente às redes sociais, mas imagino que seja uma enormidade, a ponto de ser determinante para as eleições o tipo de consenso que é promovido a partir de montagens fotográficas e frases de efeito.

A rigor, não me preocupam pessoas como a desembargadora: só costumo me preocupar com o que acho que ainda tem solução. Ali não se trata de “ingenuidade” ou de “ignorância” no sentido de uma falta de conhecimento que, uma vez remediada, vai gerar opiniões diversas. Não me parece, lamento. É interesse de classe, apego cego a seus privilégios e, como diria o ministro Barroso, pitadas de psicopatia.

Desse perfil, que considero ser um tanto quanto raro (não há tantos privilegiados assim, em termos proporcionais, num país desigual como o nosso), deduzo que não saem daí todos os seguidores do MBL, que logo se tornam eleitores dos candidatos insuflados pelo “movimento”. E é disso fundamentalmente que se trata: há uma ponte evidente entre essas estratégias mentirosas das redes sociais e as urnas, que, para se efetivar, depende de bem mais gente do que há desembargadores neste país.

A estratégia tem sido muito simples e de fácil verificação: os membros do movimento aparecem como defensores não-partidários de grandes causas políticas; projetam-se como líderes; aproximam-se de partidos políticos e, não raro, de políticos que também dizem não ser políticos, mas que estão defendendo grandes causas que não são partidárias…; não demora e se tornam candidatos, elegem-se e passam a usar a máquina pública para fazer tudo aquilo ou ainda mais do que acusavam a “velha política”, enquanto seu séquito usa as redes sociais para mistificar uma atuação pública que, em grande medida, é a mesma performance iniciada nas redes sociais, mas agora patrocinada por verbas públicas e, claro, ainda mais concreta e nociva.

O ponto, portanto, é quebrar esse ciclo, mas não é nada fácil. Estranhamente, as mesmas pessoas que deixam de frequentar uma padaria porque ouviram dizer que foi encontrado um cabelo na sopa, por exemplo, não deixam de aderir cegamente às “verdades” do MBL por mais que seus líderes “não partidários” se tornem partidários; por mais que se revelem as conexões, inclusive criminosas, de seus expoentes com agentes da “velha política”; por mais que sejam desmascaradas suas estratégias terríveis de difamação; por mais que Alexandre Frota seja o cara que vai discutir melhorias para a Educação em nome do “movimento”. Nada parece afetar a adesão cega das pessoas a esse “império da mentira” estimulado e capitalizado pelo MBL.

E é com tranquilidade que chamo tudo isso de “império da mentira”, porque não se trata propriamente de um “movimento”, nem é tão “brasileiro” assim ou “livre” como quer fazer crer. Pelo contrário, fica cada vez mais evidente se tratar de uma estratégia de disputa do campo político, para tirar a qualquer custo os adversários e, assim, assumir os postos de poder que permitam viabilizar seus interesses privados.

Outra eleição está chegando e, a meu ver, essa estratégia tende a se radicalizar. Ou seja, teremos um bombardeio ainda mais intenso de “mentiras determinantes”, como o episódio da vereadora Marielle Franco permite ver, porque o objetivo da mentira ali era, em resumo, desmobilizar imediatamente todas as energias políticas que a revolta e a tristeza pela execução de Marielle geraram. Não funcionou, quero crer, mas ouvi aqui e ali gente que está longe de ser desembargadora propagar “desconfianças” com relação à vereadora assassinada brutalmente nas ruas do Rio de Janeiro.

Para além do MBL – ou melhor: junto ao MBL – há diversos exemplos da campanha massiva de difamação que pretende desmoralizar e anular o campo esquerdo da política brasileira. Ao lado de diversas revistas temáticas e livros sensacionalistas, com as quais, ademais, guarda muita semelhança, o mais recente exemplo é a série O mecanismo, que acaba de ser colocada no ar pela Netflix. Dando sequência a esforços de mistificação da Operação Lava-Jato como o filme Polícia Federal – a lei é para todos (2017), a série dirigida por José Padilha leva ao extremo essa estratégia do “império da mentira”. (Receio dizer “ao extremo”, porque amanhã pode ser ainda pior…).

Selton Mello em cena de ‘O Mecanismo’ (Divulgação)

O cineasta, famoso por documentários e filmes de ficção que também carregam bastante no realismo, na nova série optou por trabalhar basicamente com fatos do noticiário da Lava Jato. Até aí, mais do mesmo, porque também o Jornal Nacional não tem feito nada muito diferente disso quando insiste na narrativa do “maior esquema de corrupção da história do Brasil”. Mas Padilha não teve qualquer pudor em articular esses fatos de modo a confirmar a imagem negativa de um certo partido e de alguns políticos como sendo a encarnação do mal em terras brasileiras. A famosa frase do golpista Romero Jucá sobre “estancar a sangria” num grande acordo nacional, por exemplo, foi colocada na boca do ator que faz o papel de Lula.

Não colam, é claro, os argumentos da “obra de ficção”, da “liberdade de artista”, da “dramatização”, atrás dos quais o cineasta tenta se esconder. E não se trata apenas de distorção dos fatos, porque a “ficção” de Padilha é, na verdade, uma outra forma de estetização da mesma história que a grande imprensa tem contado e as redes sociais têm repercutido a seu próprio modo – retorcendo o já retorcido. Padilha e seus apoiadores sabem muito bem que, assim como boa parte do público dos seus filmes passou a olhar para o BOPE, as milícias cariocas e as autoridades envolvidas com o tráfico pelas lentes de Tropa de Elite (2007), agora é a vez de dar uma “versão definitiva” para a narrativa da Lava Jato, deixando no centro dos ataques apenas alguns personagens que ainda podem ser incômodos para as eleições que se aproximam.

Diante desse “império da mentira”, em que os requintes do convencimento são dos mais criativos e inescrupulosos, nossos cuidados individuais com os conteúdos que consumimos, produzimos e divulgamos têm que ser cada vez maiores. Se um dos grupos políticos mais alardeados e influentes dos últimos anos está disposto a atacar com mentiras um cadáver que sequer havia esfriado; se uma empresa que é símbolo das inovações da nossa relação com a produção cinematográfica atual se empenha assim em ecoar o noticiário político mais enviesado, não podemos esperar nada muito melhor dos pretensos – e prováveis – protagonistas da próxima eleição.

Mais um PS (27/3/2018)

Lula paga um preço absurdo por ter sido o presidente mais popular da nossa história. Popular: por ter alta popularidade, claro, mas também por ter realizado diversas políticas sociais que, de fato, chegaram até o povo nos diversos cantos do país.

É atacado pela imprensa de modo sistemático e sem quaisquer pudores. É perseguido pelo Ministério Público e pelo Judiciário de modo absolutamente descarado. É o principal alvo das campanhas de difamação que lotam as redes sociais (e também a Netflix!). O segundo mandato de Dilma, que se devia em grande parte à popularidade de Lula, foi bloqueado por um golpe que envolveu, além de seus aliados no Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a grande imprensa e o empresariado.

A estratégia é clara e suas razões são evidentes: já que não se pode ganhar de Lula nas urnas, é preciso tirá-lo do páreo. Mas a escala dos esforços tem subido desde então: depois de esgotar todas as formas de desmoralização, deram início a uma verdadeira caçada judicial que deve culminar com sua prisão no ano eleitoral.

No entanto, não há surpresa ao constatar que resulta dessa estratégia um grau ainda mais alto de violência contra Lula e sua militância. Xingamentos, faixas e bonecos infláveis converteram-se em chicotadas, pedradas e tiros. Lamentavelmente, é um fruto esperado de tanto ódio. E é inevitável relacionar essa violência com aquela que tem atingido diversas lideranças de esquerda e militantes dos direitos humanos pelo país, que se torna maior, mais grave e mais evidente.

Neste momento, quando essa violência chega tão perto do mais importante ator da curta novela da nossa democracia, podemos até não saber ou ligar para o que vai acontecer com Lula, mas temos que ser muito ingênuos para não ver que as vítimas dos próximos capítulos seremos todos nós. Lula não é o único alvo.

Outro PS (28/3/2018)

Geraldo Alckmin, mais que provável candidato à presidência, ao saber dos tiros disparados contra a caravana de Lula, afirmou que os petistas “colheram o que plantaram”. João Dória, mais que provável candidato ao governo estadual de São Paulo, declarou que a culpa era dos próprios petistas: “o PT sempre utilizou da violência, agora sofreu da própria violência”. Por mais que não esperemos nada muito melhor dessas figuras, é ainda assim bastante estarrecedor ler tais declarações.

Retornando ao que disse há alguns parágrafos: Alckmin e Doria certamente estarão entre os protagonistas da próxima eleição (digo: se ocorrer a eleição… Essa outra sombra sobre nossa cabeça), então toda preocupação é pouca quando percebemos que, dia após dia, dizer que “eles estão com as mãos sujas de sangue” vai se tornando cada vez menos uma figura de linguagem. E ainda estamos em março.


TARSO DE MELO é poeta, advogado e doutor em Filosofia do Direito pela USP

(5) Comentários

  1. Tarso de Melo

    É madrugada. Acabei de ler seu artigo que me levou às lágrimas.
    Você escreveu tudo que meu coração apertado está sentindo.
    Forte abraço!
    Luciene Malta

  2. excelente texto. pelo menos as
    máscaras caíram. pessoas como o diretor, a senadora etc não podem passar por cidadãos de bem. é preciso perseguir as fake news e expor, todo dia, os “cidadãos” do mal. e se não houver eleição… bem, é “quebrar o pau”!

  3. Seu texto é ótimo, mas parcial. Reafirma a polarização que denuncia ao não reconhecer que ambos os campos estão dedicados a se beneficiarem dessas estratégias. O que falar das mentiras qie a esquerda plantou e semeou em 2014 para tirar Marina Silva do segundo turno?
    Ps. A série denuncia o golpe com uma clareza que ainda não havia sido feita antes.

  4. Cara você sintetizou tudo aquilo que o povo brasileiro, em sua maioria sente. O Lula foi o maior presidente que já tivemos, e o grande acordo nacional esta buscando acabar com um grande feito produzido por Lula.

  5. Doutor boa noite! Acabo de ler sua reflexão e fico impressionado com sua complacência com os erros e assintes da administração dos governos de seu partido que corroboraram para o seu desfecho através de um mecanismo constitucional no qual o seu próprio partido de certa forma legislou em causa. Para a maioria de nós o marcante foi o estelionato eleitoral cometido pelo mesmo para se manter no poder. Penso que Lula foi o presidente com o potencial “talvez o maior” em nos tornar um país menos desigual, porém traído pelas mazelas, abdicou de um plano de governo que escreveria seu nome na história como um divisor, em detrimento de um projeto de poder. Doutor o império da mentira é o cenário em que todos estamos inseridos e sob esse contexto não há dissidentes nem hereges, precisamos urgentemente o resgate dos valores deixados de lado. A começar com mea culpa, estreitar nossa zona de conforto, e verdadeiramente olhar para nosso povo, deixando de atribuir aos outros nosso fracasso, para então de maneira lúcida e sustentável traçarmos um plano de governo.

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