URSAL: rir para castigar (nossa) mediocridade

URSAL: rir para castigar (nossa) mediocridade
Brincar com a ideia da URSAL mostrou como tem sido limitado, mais e mais, o nosso horizonte político (Foto: Reprodução)

 

Do debate entre os candidatos a presidente na última quinta-feira restou uma pérola. Um dos candidatos fez uma denúncia bombástica: a existência de um plano de dominação continental chamado URSAL: União das Repúblicas Socialistas da América Latina. Quando tudo mais no debate nos levaria a chorar, a denúncia fez as redes sociais viverem dias de muita risada, porque a ideia de uma América Latina socialista, uma “Pátria Grande” forte e sem fronteiras, acendeu nos eleitores da esquerda uma constatação terrível: por que não estamos lutando por isso!?

Um passeio rápido pela internet mostra que o candidato que levou a URSAL ao debate e daí ao estrelato dos memes está bastante acompanhado em sua teoria da conspiração, mas não é essa a questão que me interessa aqui. Quero falar um pouco do que não me parece piada por trás de todas as risadas que demos pensando sobre a URSAL desde a última quinta. E não vou na linha dos que criticam quem estava fazendo piadas com a URSAL, como se a esquerda não pudesse se dar ao luxo de tamanha distração neste momento… Acredito que rir nunca é perda de tempo.

Em meio a trocadilhos, paródias, montagens e desenhos de ursinhos vermelhos, as piadas com a URSAL cobriam as mais diversas áreas de interesse. No futebol, a URSAL ostentaria nove títulos da Copa do Mundo e contaria com Messi, Suárez e Neymar na sua seleção. Na política, Mujica e Lula poderiam dividir o mesmo gabinete. Os jornais chamaram atenção para a pujança econômica da URSAL: um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 3,6 trilhões, ficando atrás apenas de Alemanha, Japão, China e Estados Unidos. Da fronteira murada do México ao ponto mais extremo da Terra do Fogo, os países reuniriam uma força tremenda na cultura, nas artes, na literatura, na biodiversidade etc. Enfim, a URSAL nasceria como superpotência.

A graça da URSAL, entretanto, é amarga, porque percebemos como está distante de nossas possibilidades a construção dessa utopia, ainda que com elementos reais dos países pertencentes à América Latina. E nossas risadas contrastam com a tristeza de um debate político que, mais uma vez, coloca diante de nossos olhos as sempre dolorosas verdades sobre a política brasileira que bem conhecemos. Um debate em que os poucos candidatos que, de fato, poderiam discutir algo importante para o país são lançados numa arena em que terão que fazer, dizer, jogar o mesmo jogo que os demais, dedicados a manter o nível mais rasteiro possível. Uma tragédia.

Quando rimos da URSAL, é claro, estamos rindo de alguém que consegue ver na esquerda – não apenas brasileira, mas latino-americana e até mesmo mundial – um nível de articulação em torno de um projeto comum que, a rigor, nunca existiu, muito menos neste momento de profunda fragmentação das instituições mais consolidadas em torno das quais a esquerda costuma(va) se organizar, como partidos, sindicatos, movimentos sociais etc. Rimos de quem acredita nisso, mas também escondemos nesse riso nervoso a nossa incapacidade de lutar em conjunto por algo mais grandioso.

Brincar com a ideia da URSAL mostrou como tem sido limitado, mais e mais, o nosso horizonte político. Pensar numa pátria socialista sem fronteiras fez lembrar que, na maior parte do tempo, temos nos ocupado de responder aos absurdos mesquinhos que políticos da pior espécie conseguem colocar no centro das atenções. Entre uma risada e outra, olhar para a bandeira da URSAL evidenciou que temos gasto nossa energia na defesa dos elementos mais triviais da democracia liberal. Neste momento, por exemplo, falamos em democracia preocupados em não permitir que o exército a usurpe completamente ou tome postos civis por meio das eleições.

Alguns lembraram que, em nossa Constituição de 1988 (art. 4º, parágrafo único), está dito: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Para quem acredita em conspirações, é um prato cheio, mas nós não estamos conseguindo fazer com que nossos juízes respeitem nem mesmo as garantias mais elementares do restante do texto constitucional.

As infinitas piadas com a URSAL são, a meu ver, uma forma de insistir que precisamos ir bem além do que temos ido em termos de proposição política. Sei bem que a eleição é um péssimo momento para pensar política em termos mais amplos e já escrevi nesta coluna sobre o “rebaixamento da pauta política” a que temos sido acostumados no ambiente institucional do Brasil: não lutamos sequer por novas migalhas, mas apenas para não perder as migalhas antigas.

Diante disso, mesmo uma piada mostra que a esquerda precisa retomar uma pauta comum, ampla, anticapitalista. Se a URSAL, por enquanto, só é verdade nos sites alimentados pelo pavor da “ameaça comunista” (onde anda?), ainda assim podemos crer que, entre as migalhas do presente e o colosso da União das Repúblicas Socialistas da América Latina, abre-se não apenas um espaço para o riso, mas também para o sonho, para o debate, para a luta. Para rirmos ainda mais e melhor no futuro.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

(3) Comentários

  1. Como gostaria que isso acontecesse um dia,para que meus netos tivesse um estado, onde todos tivessem direitos e deveres respeitado.

  2. O fenômeno da URSAL é insubstituível para trazer ao presente nossos sonhos, com a capacidade de contagiar novos adeptos que a inteligência do bom humor tem. URSAL, ê ô! Ursal, ê ô!

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