Os pés pelas mãos – e o rebaixamento da pauta política

Os pés pelas mãos – e o rebaixamento da pauta política
Tentar ser compreensivo com as formas de atuação da direita, como se fizessem parte do jogo, é ingenuidade (Arte Andreia Freire)

 

Quando o apresentador anunciou que começaria “o mais tradicional programa de entrevistas da tevê brasileira”, algum desatento poderia imaginar que aquela palavrinha ali – tradicional – carregaria algum sentido positivo, mas logo se decepcionaria. Ao colocar a pré-candidata Manuela D’Ávila (PCdoB) no meio daquela roda, convidando para a sabatina figuras arquetípicas do bizarro momento político brasileiro – como a colunista raivosa, o jovem ruralista de extrema-direita, o filósofo “neocon” etc. –, é evidente que o objetivo do programa não era o diálogo, muito menos a oportunidade de deixar a pré-candidata expor suas ideias para o país. “Tradicional”, ali, era apenas a vinculação dos entrevistadores ao que há de pior no nosso passado.

Quando a pré-candidata diz que um dos seus principais projetos é a revogação da lei da “reforma trabalhista”, problema atual e concreto do país, a “pergunta” quer levar o debate para as origens do texto do CLT, com aquela velha e furada história de “Carta del Lavoro”. Porque seu partido chama-se “Comunista”, preciosos minutos da audiência foram consumidos para que ela dissesse o que acha de Stálin. E ainda houve espaço para os entrevistadores afirmarem que o partido de Hitler era “trabalhista”. Tudo isso regado à prática de interrupção da fala da mulher (manterrupting) que, em diversas partes, torna penoso ouvir a voz de Manuela D’Ávila em meio à dos “entrevistadores”. Segundo matérias que li, Manuela foi interrompida 62 vezes, enquanto Ciro Gomes foi interrompido 8 vezes e Guilherme Boulos, 12, nas suas recentes participações no mesmo programa.

O episódio atual remete a outro, de janeiro deste ano, que também mobilizou muito debate: quando a filósofa Marcia Tiburi se negou a participar de um programa de rádio com um dos líderes do MBL, Kim Kataguiri. Lá como cá, estava em jogo a falsificação do debate, do diálogo, da interlocução, e, portanto, achei mais que acertada a atitude da filósofa, saindo da mesa para denunciar a farsa: “Tenho o direito de não legitimar como interlocutores pessoas que agem com má fé contra a inteligência do povo brasileiro ao mesmo tempo em que exploram a ignorância, o racismo, o sexismo e outros preconceitos introjetados em parcela da população”.

Por que dar tanto peso a esses episódios, se bem sabemos como funciona certa imprensa brasileira? Se sabemos que a profundidade do fosso ideológico em que vivem – e de que se beneficiam – essas vozes que cercaram Manuela D’Ávila e tentaram prender Marcia Tiburi em sua rede? Se não há, a rigor, grande novidade nessas cenas, temos que aproveitar essas oportunidades, em que o debate é bloqueado, para fazer as perguntas importantes que os entrevistadores jamais fariam. De início: o que significa ser esquerda num ambiente em que pontifica essa espécie de direita?

A pergunta não é simples. Adotando qualquer posição política mais ou menos democrática, estaremos de acordo que o campo político se fortalece justamente pela forma como as diversas forças sociais se opõem, se compõem, disputam de acordo com seus interesses, mas, em geral, respeitam as regras fundamentais do jogo. Em suma: não apenas aceitam a existência do adversário, mas até mesmo a defendem. Esse tem sido, desde sempre, um ponto importante para a esquerda brasileira, que mesmo nos episódios citados se dividiu para dizer que Manuela D’Ávila, para ser presidenta, tem que conviver com todos esses “entrevistadores” e, antes, criticou a atitude de Marcia Tiburi, afirmando que não poderia se negar a debater com o MBL.

Do outro lado do horizonte político, no entanto, a conversa é bem diferente. Em todos os níveis, articulam-se formas de apagamento da representação da esquerda, que vão desde a perseguição – política, jurídica, midiática e até a violência física – aos partidos, lideranças e movimentos sociais, passam pelo uso maciço da grande imprensa e redes sociais para desconstruir qualquer ideia de esquerda e chegam a tantos outros cantos, como leis de “escola sem partido” e outras aberrações.

Tentar ser compreensivo com essas formas de atuação da direita, como se fizessem parte do jogo, é ingenuidade. Temos tido provas diárias disso e não é por acaso que o candidato que aparece em segundo nas intenções de voto para a presidência é alguém que, sem titubeios, promete tirar a esquerda de circulação.

Por falar em jogo, aliás, em tempos de Copa uma imagem futebolística pode ajudar: você entra em campo para uma partida que envolve uma bola e a habilidade dos pés, mas o outro time insiste em pegar a bola com as mãos, chutá-la para fora do campo etc. Debater política no Brasil tem sido esse jogo maluco, que não avança porque um dos times não está em campo pelas mesmas razões que o outro. Não lhe interessa o jogo, a soma, o conjunto; só lhe interessa a eliminação do adversário.

E quais são os custos disso tudo? O principal deles é o que podemos chamar de “rebaixamento da pauta”. Quero dizer: é uma vitória da direita, por si só, que as principais inteligências e lideranças da esquerda estejam ocupadas respondendo às perguntas bisonhas de seus articuladores e seguidores, que não se avexam de fazer as pontes mais improváveis entre as mentiras que querem contar hoje e aquelas que as elites daqui e dali contam sobre as lutas populares desde sempre.

Fazer com que a esquerda tenha que se ocupar dessas mentiras, distorções, distrações é, sem dúvida, uma forma inteligente que a direita encontrou para roubar a força dos seus adversários políticos. Ao rebaixar a pauta do debate da esquerda à defesa das acusações e dos ataques que lhe faz, ao colocar a esquerda na obrigação de reagir diariamente às mentiras que espalha, a direita vai impondo limites ao nosso horizonte político como um todo, o que, certamente, só à própria direita interessa.

Num dos pequenos artigos que compõem seu livro Ideias para a luta (que acaba de ser lançado no Brasil pela Expressão Popular, junto com o volume Um mundo a construir, também recomendadíssimo), a cientista política chilena Marta Harnecker chama atenção para os riscos dessa situação:

“Enquanto a direita tem demonstrado uma grande iniciativa política, a esquerda costuma estar na defensiva. Enquanto a primeira usa seu controle das instituições do Estado e dos meios de comunicação de massas e sua influência econômica para impor o novo modelo, servil ao capital financeiro e aos monopólios, precipitando as privatizações, a desregulamentação do trabalho e todos os demais aspectos do programa econômico neoliberal, a fragmentação social e o aumento do antipartidarismo, a esquerda partidária, ao contrário, ao limitar o trabalho político quase que exclusivamente ao uso da institucionalidade vigente, submetendo-se às regras do jogo do inimigo, quase nunca a surpreende. Cai-se no absurdo de que o calendário de lutas da esquerda é determinado pela direita”.

A lição de Harnecker, diante desse impasse, é no sentido da aproximação entre esquerda partidária e esquerda social, sem reduzir a força desta aos interesses daquela, mas, pelo contrário, renovando a cultura política dos partidos a partir de experiências construídas nas lutas que se dão fora das instituições. No nosso caso, em que o resultado da eleição passada foi anulado por um golpe e o principal candidato da próxima eleição está preso num esforço sem precedentes de seus múltiplos adversários, não é muito difícil se convencer da importância de fortalecer outras formas de luta. E elas dependem da nossa capacidade de construir alternativas e, claro, saltar, sem gastar muita energia, sobre as cascas de banana que os inimigos espalham pelo caminho.

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