Turbotecnomachonazifascismo: sobre o novo livro de Marcia Tiburi

Turbotecnomachonazifascismo: sobre o novo livro de Marcia Tiburi
A filósofa Marcia Tiburi lançou neste ano o livro 'Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo' (Foto: Divulgação)

 

Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo – ou seja lá o nome que se queira dar ao mal que devemos superar é o novo livro de Marcia Tiburi, lançado pela Record. Para além da atenção e polêmica suscitada pelo título, em função do termo utilizado para a descrição do fenômeno social, podemos observar que a autora se mantém coerente com um programa intelectual previamente traçado por ela e observado em obras anteriores. E, de fato, isso impressiona positivamente, ainda mais no momento em que percebemos o propósito em causa.

Turbotecnomachonazifascismo, afinal de contas, o que é isso? Quiçá antes de avançarmos nessa pergunta, seria interessante traçar um panorama já conhecido. Marcia escreve movida por circunstâncias sociais em que inevitavelmente encontra-se inserida. Bem como todos nós. Olhando pela janela de casa, em meu confortável isolamento social de tempos pandêmicos, é impossível permanecer indiferente à reação da sociedade ao avanço de uma perversa forma de intolerância que, nos últimos tempos, adquiriu a chancela para a livre manifestação a partir da eleição de um mandatário para o país.

Não é segredo para ninguém as declarações racistas, machistas, homofóbicas de Jair Bolsonaro, feitas desde sempre. Tampouco é necessário um esforço grandioso para busca-las na rede mundial de computadores. Estão ali, praticamente documentadas. Todavia, ainda assim, 57 milhões de pessoas o alçaram à Presidência da República. Isso é um fato interessante a ser colocado em pauta não somente sob o prisma da observação do funcionamento das instituições político-democráticas, mas, sobretudo, sob a ótica do entendimento quanto ao que se passa na cabeça de alguém que segue um discurso como esse.

Para ser mais preciso, tendo em vista o histórico de Marcia Tiburi, arrisco dizer que ela não está mais preocupada com as fake news – dado novo para o ambiente social recente – do que o fato de muitas pessoas acreditarem nelas. Seu novo livro atesta exatamente isso. À medida em que avançava na leitura, observava a sua atenção quanto à crença em coisas como “mamadeira de piroca” e “kit gay”. Existir uma parcela da população que leva isso a sério é preocupante. Da mesma maneira, é preocupante que exista quem esteja disposto a romper com pressupostos morais e, valendo-se dessa crença ingênua em notícias intencionalmente falaciosas de parte significativa da população, também leve isso adiante enquanto mecanismo, uma tecnologia, para usar os termos da autora, para a promoção de um discurso. Eis a questão.

O termo “fascismo”, em si, adquiriu contornos que geraram inúmeras dúvidas. Enquanto conceito, ele não pode ser reivindicado para um fenômeno demarcado social e historicamente no século 20. Adquiriu amplitudes maiores e, inevitavelmente, guardou em seu interior novas maneiras de ser compreendido. Não acho que seja exagero chamar de fascista a alguém com atitudes racistas, machistas e homofóbicas, com discurso violento e altamente preconceituoso. Em grande medida, isso contribui para que se reaviva constantemente um episódio triste do século 20 que não deve ser esquecido. Claro, não devemos deixar de lado a sua complexidade, todas as circunstâncias particulares envolvidas em sua origem, mas, de fato, reaviva-lo é um mecanismo interessante para que evitemos, minimamente, que algo assim seja repetido.

Marcia sabe de tudo isso. Demonstra consciência quanto às particularidades envolvidas nas circunstâncias de constituição do fascismo na primeira metade do século 20, bem como no fascismo de hoje. Aliás, é justamente por se mostrar atenta a isso que opta por renomear o momento atual, criando um nome – que, como sugere o título, não deve ser entendido como conceito fechado, proposto verticalmente por ela, uma intelectual e militante de seu tempo, mas, completamente aberto para complementações, ao dizer “o nome que se queira dar”. Turbotecnomachonazifascismo tenta aglutinar diversos aspectos percebidos por ela que compõem a realidade da qual fazemos parte hoje. Leva em conta o tecnicismo, em uma versão turbinada, em vistas do potencial de disseminação encontrado hoje, com as redes sociais e tecnologias semelhantes.

Pensando no discurso, o nazi-fascismo era disseminado pelas tecnologias mais rebuscadas da primeira metade do século 20. Em sua essência, intolerância e resposta violenta. A verdade absoluta de um agrupamento social que se imporia autoritariamente sobre outros grupos. Aliás, o princípio relacional estava sempre presente, sendo observado de modo claro por Marcia nos momentos em que faz uma incursão histórica. O fascista precisa de seu inimigo para existir, pois é através dele, do movimento de “pisar sobre o outro” que se converte em algo significativo para si mesmo. Ora, em grande medida, há uma semelhança com a atualidade.

Marcia deixa claro que novas formas de relações sociais são observadas na contemporaneidade. Uma sociedade mediatizada ao extremo, a se valer, em muitos momentos, de recursos digitais para estabelecer o ponto da relação social, é algo evidente. A comunicação e, por sua vez, a impressão quanto ao outro está enredada pela tecnologia digital. Ela deve ser considerada como plano para a disseminação do discurso e, portanto, para a afirmação de identidades.

 

O fascista de hoje está turbinado,
envolto na tecnologia, aproveitando-se
de todos os seus recursos, para
disseminar o discurso de ódio como
forma exclusiva de afirmar a sua
fragilíssima superioridade aparente.

 

 

Mas, esse sentimento de ódio e intolerância foi gerado nos últimos tempos? Bem, aí é que está. Marcia Tiburi não nega, de maneira alguma, a possibilidade de que ele sempre existiu. Sua presença é marcante na sociedade, como um vírus que encontra circunstâncias propícias, como baixa imunidade, para se manifestar da maneira mais pulsante. E, no caso, estamos justamente em um momento como esse. Crise econômica de um capitalismo agressivo, em versão neoliberal revisitada, faz com que os indivíduos que acreditam piamente no discurso do mérito procurem um responsável por não conseguirem efetivar seus planos, tão condizentes com o empenho de uma admirada vida de trabalho. Daí, projetam a culpa pelo fracasso, por não terem logrado os ganhos a que supostamente teriam direito de maneira justa, em algo. Como a sociedade é relação social, miram, por exemplo, no negro que obteve espaço nas até então elitizadas e exclusivistas universidades públicas brasileiras. Esse segmento da população que passou a colorir o ambiente das salas de aula, subtraindo a palidez do branco que prevalecia ali, inevitavelmente começa a acessar recursos culturais a lhes permitirem elaborar de maneira mais refinada teorias e manifestações de sua identidade. E, também de modo inevitável, se insere no mercado de trabalho de forma vivaz, competindo com o mérito, não com o meritocrata. Toda uma estrutura de crenças se encontra abalada.

Assim sendo, o fascismo de hoje deve ser turbinado para conseguir se manifestar, pois, caso contrário, seria o mesmo que foi outrora. E, igualmente, os recursos para a sua derrota já estariam prontos. Ademais, essa sua nova versão, com as devidas particularidades, contribui para compor um quadro diferenciado, a ponto de permitir que o fascista de hoje diga que não é fascista. E o discurso, em si, já sabendo dos mecanismos responsáveis por sua derrota, precisa adquirir contornos diferenciados para garantir a sua manifestação em busca de afirmação.

Eis o motivo pelo qual Marcia não se contenta apenas em chamar a tudo isso de fascismo. Sinceramente, nem sei se seria prudente. Se o fizesse, de alguma forma, abriria caminhos para que situássemos o termo apenas naquele triste momento da primeira metade do século 20. É como se reforçássemos um exclusivismo dele àquela era. Traços de semelhança entre os dois momentos, como vimos, são inúmeros. Portanto, ele não deve ser desconsiderado enquanto manifestação possível na atualidade. Porém, com um novo formato. Todavia, a autora, prudentemente, prefere não se reter a um nome, sob a pena de, diante da incerteza quanto à particularidade com a qual vivemos, sinalizar para uma fórmula pronta para a sua superação.

Mas, o título do livro não sugere uma espécie de manual? De certa maneira, sim. Contudo, talvez a derrota do turbotecnomachonazifascismo não esteja condicionada a uma estratégia, com passo a passo muito bem definido. Eu, pelo menos, não vi isso em seu texto. Acredito mais que Marcia, segundo minha leitura, observa que o reconhecimento dessa versão turbinada e tecnológica de fascismo deve ser reconhecida, admitida, como algo que aí está. Ao invés de se perder tempo com teorizações sobre o que realmente é o fascismo, com o preciosismo de manter o termo como conceito ligado unicamente a um tempo histórico e social, deve-se exercer um movimento em direção à sua superação. Mas, você só vai combater o seu inimigo, ou pelo menos resistir de modo seguro, se souber quem ele é. Se o estiver vendo. Esse é o ponto.

Se Como conversar com um fascista foi um livro que, naquele instante, sugeria a possibilidade de que o diálogo poderia direcionar uma superação do ódio extremista e autoritário que se plantava naquele momento, Como derrotar o Turbotecnomachonazifascismo se mostra um livro com mais clamor, ao dizer, em grande medida, que temos de fazer algo, para além de tentar mostrar que o sujeito, seu antípoda, está enganado – pois ele não vai se convencer disso.

Enfim, o livro de Marcia é urgente. Traz pontos a serem considerados para uma interpretação de nossos tempos, bem como a necessidade de se pensar em algo que, progressivamente, vai devorando o tecido social. O preconceito, no Brasil, é como uma traça que sempre esteve ali, a roer esse tecido, provocando os seus buracos e até mesmo prejudicando a sua unidade no momento em que tivermos de estica-lo. Parece que, agora, por conta de uma série de circunstâncias, essas traças foram alimentadas. Receberam uma quantidade de luz tão intensa que se sentem confortáveis em roer enquanto esse tecido é puxado por todos os lados. Algo tem de ser feito.

Faustino Rodrigues é jornalista, doutor em Ciências Sociais e professor de Sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

 

Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo – ou seja lá o nome que se queira dar ao mal que devemos superar
Marcia Tiburi
Record
196 páginas – R$49,00


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