O incômodo objeto da língua

O incômodo objeto da língua

 

Existe uma anedota bastante conhecida envolvendo Zhou Enlai — um dos mandachuvas do Partido Comunista Chinês — que, se não é verdadeira, é bem sacada. Em 1971, um entrevistador teria perguntado a ele qual lhe parecia ser o impacto da Revolução Francesa. Sua resposta, motivada por um equívoco, veio carregada de um ar sublime que muito convinha a um líder marxista a quem se supunha pretensões de avaliar o curso das marés da história: “Ainda é cedo para dizer”. Ele achou que se tratava do Maio de 68!

A resposta acidentalmente aguda, de certa forma, poderia servir à mesma pergunta que tivesse por tema duas ciências recém-centenárias: a linguística moderna e a psicanálise. Ou seja: o objeto-limite em jogo em ambas ainda merece uma avaliação cuidadosa. Talvez fosse possível dizer que estão em disputa — o que não interessa a certos praticantes acomodados que se dão por satisfeitos com os paradigmas emulados da “tradição”. Em O fluxo e a cesura: um ensaio em linguística, poética e psicanálise, Paulo Sérgio de Souza Jr. não recua diante do desafio de bordejar uma questão maior.

Desde o início de seu ensaio — que foi adaptado de uma tese de doutorado —, o autor não esconde as cartas: o objeto incômodo compartilhado pela linguística e pela psicanálise é a poética. Para demonstrá-lo, ele nos conduz por um arco que retraça o lugar do fazer poético em Saussure, Jakobson e Lacan, destacando a gradativa aproximação dos autores com um tema que retorna disruptivamente sobre seus próprios saberes.

No contexto das ciências da linguagem, Souza Jr. assevera que “a instância poética encarna um granus salis” — no sentido de que é abordada com ressalvas, não no de que seja “o sal da terra”. Isto é: ora é considerada uma excrescência linguística, ora fica “diluída nos humores do uso cotidiano da língua” em cujo detrimento a estrutura, purificada, teria sua robustez preservada.

Isso fica evidente no primeiro capítulo, cujo mote é fornecido pelo topos do olhar petrificante da Medusa (cuja decapitação eminente é representada numa gravura incluída no início do segmento). Trata-se dos recuos e resistências de Saussure, no corpo a corpo de constituição de sua disciplina, diante do caráter horripilante de seus pontos cegos.

Frente às exigências que o constrangiam a enquadrar a linguística nos modelos científicos vigentes, a língua saussuriana, tributária de uma estratificação que pressupõe a diferença, só poderia refugar diante do corpo falante que, perturbando a diferenciação, faz o código retornar sobre si mesmo.

O capítulo seguinte é dedicado a Roman Jakobson. O autor, próximo dos círculos poéticos vanguardistas e responsável por uma teoria das funções da linguagem, reservaria ao fazer poético um terreno próprio, ainda que entre outros, em sua teoria comunicacional.

Se em Jakobson a função poética consiste no enfoque da mensagem sobre si mesma, o poeta seria aquele capaz de, numa “ingerência voluntária”, produzir efeitos de imprevisibilidade por desequilíbrios entre as cadeias sintagmáticas e paradigmáticas da linguagem.

As contribuições de Jakobson fizeram avançar o entendimento do poético ainda que em sua abordagem o poema fosse compreendido como um “depositário da cultura”, interpretação corroborada por Milner, referência constante de Souza Jr. Ao destacar a antinomia entre o sentido e a significação, o linguista foi colocado diante da iminência daquilo que constitui o núcleo secreto do fazer poético, como se estivesse pronto para agarrá-lo.

Isso justifica o fato de Souza Jr. ter elegido como alegoria do capítulo a figura mitológica de Tântalo (reproduzida em gravura). Trata-se do rei cuja punição pela arrogância e injúria aos deuses consistia em nunca saciar sua fome e sede: cada vez que tentava agarrar os pomos que pendiam de um tronco, a árvore se afastava.

A autonomização dos elementos fônicos em relação à significação coloca no centro do debate o papel da voz e, mais especificamente, do corpo no métier poético. É aqui que a contribuição lacaniana, tema do terceiro capítulo, adquire toda a sua relevância. À série “língua”, “fala” e “linguagem”, Lacan acrescenta a noção de “lalíngua” [lalangue, em francês], permitindo com isso somar à língua o fato do inconsciente.

Não sendo tributária do simbólico — registro que se confunde com a própria ideia de estrutura e conjunto —, o recurso a “lalíngua” circunscreve a experiência desordenada do aparelho verbal. Se a língua é o reino das negatividades — em que nenhum significante está em posição de dizer aquilo que é —, “lalíngua” é o “império das positividades”, lugar onde o idêntico retorna sob outras formas.

Para Souza Jr., a poesia é uma experiência limítrofe com estatuto de ato — ato em tessitura de tempo que, pelas marcas e cesuras que inscreve, convida a um além da experiência de sentido e da polissemia, bordejando aquilo que Lacan nomeia “o real”.

Trata-se, nas palavras do autor, de um “empuxo à fenda abissal e dantesca de não mais que uma direção. É com ela [lalíngua] que o falante desce ao Inferno da língua”. Incursão à fenda, ao ponto de esgarçamento de onde toda a língua emergiu em jorro disruptivo.

Não à toa que o terceiro capítulo, dedicado a Lacan, abre-se com a figura de Cassandra estampada tanto em gravura quanto no título do segmento. Filha dos reis de Troia, Cassandra teve seu dom profético dissociado do poder de persuasão. A poética proposta por Souza Jr. a partir de Lacan é uma poética sem retórica — desvinculada da experiência de referenciação que organiza o discurso cotidiano, banal, ela permite um mergulho, a transgressão da “hiância no próprio seio da linguagem”.

O livro de Souza Jr. é denso e muito bem estruturado. Sendo ele mesmo trespassado por uma verve poética fina, não só empresta erudição ao leitor, como espera que ele empenhe algo de si para extrair-lhe o que oferece de melhor.

Por outro lado, situado na intersecção da linguística e da psicanálise, campos que evidentemente domina, o autor conta — talvez um pouco demais — com os saberes de seu leitor. Assim, pressupõe que os analistas saibam muito de linguística e que os linguistas, por sua vez, já tenham dado algumas voltas por Lacan.

Esse fator, contudo, em nada reduz o mérito da publicação. Ela é bem-vinda tanto por nos ajudar a dimensionar o tamanho e a importância dos objetos que a aliança entre psicanálise e linguística ajudaram a circunscrever, quanto por apontar para uma clínica resguardada das ameaças que a degradam.

William Zeytounlian é poeta, mestre em história pela Unifesp e autor de Diáspora (Demônio Negro, 2015).


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