O que nos diz a farmacopeia de Labatut?

O que nos diz a farmacopeia de Labatut?

 

Eis algumas perguntas que nos ajudam a contar a história da literatura latino-americana após Borges: o que acontece quando elevamos as coisas à dignidade narrativa de protagonistas? O que acontece quando a relação entre sujeitos e objetos se inverte, deformando a condição psicológica da pessoa ao estatuto de seres agidos? Quem narra, e o que se narra, quando já não mais trabalhamos sob o primado da intersubjetividade comunicacional entre personalidades coesas, e passamos a dar voz àquilo que na modernidade foi degredado à condição subalterna de objeto técnico?

Não seria difícil inserir Labatut dentre os membros dessa tradição herdeira de Borges, cuja última grande figura tinha até então sido encontrada em Bolaño. Essas são as perguntas das quais ele também parte. Quando folheamos um livro como Quando deixamos de entender o mundo, logo se faz presente o expediente metalinguístico que assombrara o bibliotecário argentino: estão ali as “enciclopédias mágicas”, enchendo prateleiras de bibliotecas ficcionais sobre biografias reais, mas também o teor limítrofe com o qual aquilo que ainda insistimos chamar de realidade se mescla ao campo literário. Rechear as fronteiras entre literatura e realidade, uma obsessão que também infectou Bolaño, talvez seja a chave mais óbvia para começar a explorar a obra de Labatut.

Seria tentador resumi-lo ao neto desta peculiar linhagem de expatriados – Labatut, assim como Bolaño e Borges, passou sua vida entre América Latina e Europa, derrapando entre línguas de modo que nenhuma delas possa mais assumir sua maternidade legítima. Tamanho dépaysement linguístico e cultural, ora, não seria difícil explicativa para a problematização formal que amarraria essa tradição junta: ele estaria por detrás do constante recurso metaliterário, mas sem cair em formalismo; estaria por detrás do diálogo, por vezes quase mudo, com os figurões da literatura mundial, mas sem cair na pregação para iniciados. Estaria, pois, no cerne do que significa elevar a escrita a um exercício de crítica imanente, isto é, fazer literatura como exercício de problematizar a definição ela mesma do objeto literário.

Seria tentador encerrá-lo assim, porém errôneo. Se permanecem presentes ali a obsessão pelas brechas e fissuras pelas quais a ficção agarra personagens reais para seu próprio regime de realidade, e é difícil não ouvir os ecos de um certo outro obcecado pela barbárie nazista na escolha do período que assombra a obra de Labatut, seu gesto atualiza o “vírus borgeano” de outra maneira que não a de Bolaño: a coragem para não só descentrar sua narrativa, mas abandonar a própria estrutura psicológica do que significa ser protagonista.

Tal novidade fica evidente sobretudo no ensaio que abre a obra, “Azul da Prússia”. Ali, tudo se passa como se os verdadeiros protagonistas não fossem os cientistas que figuram no relato, mas suas produções. Mesmo quando as cenas encadeiam despontadas dramáticas, são os dispositivos que roubam o papel de guia da estória. Scheele, Turing, Haber: todos eles são sugados para a mesma constelação de coadjuvantes em que figura Göring, general nazista com que Labatut abre o livro. A aproximação também não deve ser vista como acaso: cientistas, escritores, pintores, nazistas – todos parecem compor a paisagem passiva pela qual se intensifica a problemática formal da narrativa, pela qual atravessa sua força de hibridização entre objeto e sujeitos. São as moléculas, estes híbridos entre natureza e política, pervertendo a separação entre representantes da civilização ou da barbárie, que verdadeiramente assumem o papel de “sujeitos” do ensaio.

Forçando o progresso científico a mostrar-se como segunda face da barbárie, contra a qual paradoxalmente teria se erigido enquanto barreira, Labatut novamente opera em expediente similar a Bolaño. Pois como o autor nos lembra, mais adiante: “Os átomos que despedaçaram Hiroshima e Nagasaki não foram separados pelos dedos gordurosos de um general, mas por um grupo de físicos armados com um punhado de equações” (p. 70). Trata-se assim de insistir na impotência da razão para cumprir suas promessas emancipatórias, cujo caráter trágico se ressalta na participação de Haber, judeu assimilado que acaba por ajudar, por vias indiretas, o que viria a ser a máquina de guerra nazista.

Ao deslocar a “centralidade”, ou a incerteza em que vacila, para as tecnologias, Labatut acaba ao mesmo tempo invertendo e reforçando o gesto metadiscursivo de seus antecessores: as enciclopédias de literatura dão lugar agora às farmacopeias, em volta dos quais passamos todos nós a girar. Não é difícil ver como cianureto, arsênico, Zynklons A e B se conjugam para mais do que mera enumeração de venenos: eles se tornam nas mãos de Labatut a objetivação mais concreta daquilo que poderiam ser chamadas as vitórias da civilização. Contar a história da violência a partir deste trunfo da razão vem como tentativa de desbancar sua suposta neutralidade, quando não sua pré-disposição a nos aproximar da paz e guiar o tão sonhado progresso pela técnica. Pois seria o caso de ver como há mais da verdadeira história do Ocidente nessa genealogia farmacopeica do que nas biografias daqueles que os produziram.

Assumidas protagonistas, no entanto, as tecnologias mostram como sua aparente ambivalência guarda algo de um gene denegado de sua violência constitutiva: “como se houvesse algo na estrutura química da cor que invocasse a violência” (p. 19), Labatut força nossa imaginação estética a especular um mundo no qual os dualismos rígidos em que se fundara a sociedade moderna, como a esperada dominação da natureza por sua separação da razão, se mostra desde o começo radicalmente entremeados.

“Hoje, cerca de cinquenta por cento dos átomos de nitrogênio dos nossos corpos foram criados de forma artificial” (p. 30), relata um narrador indeciso entre o duplo, porém simultâneo, destino da hibridização. Somos lembrados aqui de como nossa natureza já é política, pois a política já determina os campos de experiência do que poderá aparecer como natural. Determinar o que hoje aparece como naturalmente dado, ou supostamente neutro: eis a efetivação da política via farmacopeia.

Se a ciência pode ser uma maneira de fazer política por outros meios, a farmacopeia de Labatut nos mostra como toda forma de vida pode ser lida desde as tecnologias das quais se serve para fabricar os corpos que a habitam. Pois este não é um livro sobre cientistas, mas sobre objetos científicos: ele é mais ode ao monstro do que a Frankenstein. Já não seria suficiente internalizar à literatura as contradições das quais a razão não pode nos prevenir; seria preciso mostrar como a ciência se torna, também ela, o gênero literário pelo qual os verdadeiros personagens de nossas barbáries foram criados.

A enciclopédia fantástica do século 21 encontrou seu gênero, e sua composição lembra mais a exatidão comunicacional das tabelas periódicas do que as confusões literatas em alguma esquina de Babel.

Pedro Pennycook é bacharel em Psicologia e mestrando em Filosofia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


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