O cuidado “sexual” como ato político

O cuidado “sexual” como ato político

 

Existiriam diferentes modalidades de cuidado? Considerar que o trabalho de cuidado pode ser sexualizado – proposta da psicanalista Maíra Marcondes Moreira em Freud e o casamento (Autêntica, 2023) –, no mínimo, consagra uma esfera incontornável do debate entre psicanálise e feminismos/estudos de gênero, ainda tão pouco explorada. Lança-se luz sobre uma vertente da interlocução dessas áreas cuja promessa é de uma renovação política por outros meios.

Tradicionalmente, a relação entre psicanálise e feminismos/estudos de gênero tem se dado em dois âmbitos: o clínico e o epistemológico. O eixo clínico diz respeito a como fazíamos diagnóstico – ou como alguns psicanalistas infelizmente ainda fazem –, no caso, adotando certa modalidade da sexualidade como critério. Tal como: se o sujeito é homossexual, trata-se de perversão; se transexual, psicose. Ou seja, o diagnóstico seria dedutível de uma manifestação da sexualidade, adotando como referencial de saúde ou normalidade a norma heterossexual. Também deriva desse raciocínio a terapêutica de “cura” – a psicanálise levaria o sujeito para o bom caminho da heterossexualidade, como alguns psicanalistas sustentavam. Obviamente, tal racionalidade clínica foi amplamente criticada pelo feminismo e pelos estudos de gênero.

O segundo eixo de interlocução seria o epistemológico ou de discussão de conceitos. O que é o falo? Um conceito onipresente a perpetuar o poder dos portadores de pênis? O complexo de Édipo é heterocentrado – tanto em Freud quanto em Lacan, mas em qual Freud e em qual Lacan? O registro simbólico é imutável, contrário a transformações sociais; fixa certas identidades e impossibilita outras, como alegava Judith Butler?

Consideramos que, ao lado desses dois âmbitos ou linhas de contato entre psicanálise e feminismos/estudos de gênero, existem outros dois, sobre os quais o trabalho de Moreira se debruça. São eles o terreno de arte e do erotismo, por um lado, e o das lutas sociais, por outro. Podemos incluir o trabalho de Joan Copjec, Imagine there’s no woman, no espaço arte-erotismo quando propõe pensar o olhar no cinema através da proposição psicanalítica do olhar como objeto pulsional. Um campo do cultural studies que absorve elementos da psicanálise em seu proveito, como instrumento de análise. O tópico lutas sociais sem dúvida é o mais espinhoso. Como os psicanalistas se posicionam aqui? Em que contribuiriam, levando em conta que feminismo e estudos de gênero visam sobretudo a transformações sociais?

Trazer todo esse panorama de interlocução se justifica por explicitar que é ampla a gama de publicações focadas na clínica e na epistemologia. Escassa nas esferas erotismo/arte e lutas sociais – justamente a alçada de Moreira. Ela tem o grande mérito de perscrutar um campo teoricamente muito difícil de ser articulado, pouco desbravado e cheio de implicações políticas delicadas.

Para estabelecer um cenário possível no domínio das lutas sociais, Moreira contrapõe o que denominou de “Política do masculino” à “Política do feminino” (ou do não todo). Conjectura-se que a reformulação da prática do cuidado faria parte da estratégia de combate à política do masculino. Daí pensar o cuidado – e o corpo – junto ao erotismo e ao sexual da psicanálise.

A Política do masculino é encarada como uma política de gestão das identidades. Tal política funciona por atribuição de predicados e a diferença sexual tomada em sua forma-mercadoria. Ou seja, a partir dela se edificam identidades com fins produtivos e de gerenciamento, o que acaba elegendo as identidades legítimas e segregando as julgadas ilegítimas.

Se o capitalismo perpetua a política da identidade e da diferença – política do masculino –, a política do feminino contradiz esse sistema. A diferença sexual não é o ponto de partida nessa formação; não se prescrevem expectativas. A política do feminino põe em relevo o irrepresentável, o que desidentifica os corpos e desestabiliza os semblantes – em outros termos, tal política avança a partir da desordem do sexual (e que Moreira aproxima da ausência do significante Mulher). Interessa os corpos não marcados pela diferença, irresolutos; corpos que não podem ser produzidos calculadamente, mas que irrompem contingencialmente, despossuindo o próprio sujeito. Esse corpo amorfo e contingente – sexual, portanto – faz objeção ao que o capital quer fazer com ele (ou fazer dele).

Nas palavras da Moreira: “A política do feminino parte daquilo que no sujeito é indeterminado e suas consequências para a ação política”. Essa é uma questão urgente: como transpor essa política do feminino da teoria para a prática? O cuidado seria um meio?

Há um tipo de cuidado que seria como um dever moral, que estabelece e fixa papéis e seu atores – quase como um trabalho administrável, que segue determinações econômicas e que funciona como uma das bases da produção capitalista. Contra essa modalidade de cuidado, Moreira afirma que “há uma economia libidinal no cuidado que corresponde ao erotismo” – e nesse momento Moreira se aproxima de Georges Bataille. O erotismo corresponde a algo que no sexual alude ao excesso, ao inútil, algo que não serve para nada – justamente por estar fora da lógica produtivista do capitalismo, que dita que tudo tem que ser contratual e ter uma meta. Logo, esse erótico está ao lado do que se entente por sexual em psicanálise, um domínio que não se curva às normas e à lógica do capital, e que sobretudo tem um potencial subversivo.

Levando isso em conta, é como se pudéssemos considerar, com Moreira, a possibilidade de um cuidado “sexual” (que não deixa de ser um trabalho, mas que tipo de trabalho seria esse?). Indo mais longe, se os estudos de gênero de Butler e Preciado, como Moreira propõe, discutem com a psicanálise a partir da noção de diferença sexual e seu impacto na direção do tratamento das pessoas trans ou não binárias, será que existiria um diálogo dos estudos de gênero com a psicanálise através da noção de cuidado – cuidado esse que leva em conta o erotismo e o sexual em psicanálise? Moreira abre as portas de um novo edifício.

Outro ponto de destaque diz respeito à ideia de Comum e como poderia incidir no cuidado. O comum não valoriza o público nem o privado. Ele tem o potencial de desarranjar a máquina que produz diferenças e a nossa organização que adota como ideal a propriedade. O comum não tem em mira a produção de um todo, mas uma multidão de singularidades. Não um conjunto estabelecido pela identidade entre suas partes – um universal –, mas manter a singularidade de cada um. Assim, não uma forma totalizante, mas uma classe paradoxal. Neste sentido, a política do feminino está próxima do comum, ao lado da dinâmica do sexual.

Desse mapeamento surge uma série de questões. Como não se deixar comandar exclusivamente por essa política do masculino? A autora parece indicar que a reposta viria de algumas frentes: minar a diferença sexual; frear o afã capitalista em edificar identidades; libertar os corpos de formas preestabelecidas; dar vazão ao potencial transgressor do sexual; e nos orientarmos em direção ao comum. Contudo, como transpor essa política feminina para a ação? Uma das formas seria rever o aparato a partir do qual a nossa cultura define o cuidado e por quais corpos ele deve ser assegurado. Talvez através da reestruturação do cuidado a política feminina possa desestabilizar a política masculina.

Rafael Kalaf Cossi é psicanalista, psicólogo, mestre, doutor e pós-doutorando pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É membro do LATESFIP-USP e do AGE-USP. Autor de Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos (Zagodoni, 2020) e organizador de Faces do sexual (Aller, 2019).


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