“Cada galáxia guardada na memória”

“Cada galáxia guardada na memória”

 

Sobre Neste momento, de André Dick

Neste momento (Kotter Editorial, 2022) é o mais recente livro do poeta e tradutor André Dick (1976), reunião da última década de produção dessa obra composta também por Grafias (2002), Papéis de parede (2004) e Calendário (2010). Com esse conjunto, demarca-se um itinerário de escrita com mais de vinte anos e que já constitui notável cosmovisão poética, sendo possível reconhecer a reflexão acerca de determinado veio da poesia, de feição construtiva, possivelmente firmada pela releitura e pela reescrita, em um gesto bastante forte de controle dos efeitos pretendidos.

Vale notar que os títulos dos quatro conjuntos permeiam a noção de escrita e tempo. Nos dois primeiros livros, a ideia de uma representação física da palavra transparece, ao passo que nos dois últimos as referências à passagem do tempo são diretas. O que permanece (re)escrito? Essa questão surge como arquitetura dessa obra e uma de suas preocupações mais reveladoras: coloca-se em destaque a luta entre a grafia e o tempo, entre o que se escreveu e a duração nas paredes (da memória), ou, dito de outra forma, o poeta explora os limites da escrita sem perder de vista os paradoxos temporais entre este momento e tantos outros que poderiam ter sido escritos. Esse parece ser um dos caminhos para se ler a obra poética de Dick com essa perspectiva de duas décadas.

Nesse último conjunto, organizado em quatro seções ─ “Infância” (dezesseis poemas), “Caos” (dezenove poemas), “Casa em mudança” (vinte poemas) e “Mundo mundo” (trinta e dois poemas) ─, evidencia-se certa predileção formal: listas, anáforas, recursos da cultura popular e da poesia infantil, versos que se aproximam de aforismos, sentenças com sentidos próprios, independentes do conjunto, por vezes, em uma sintaxe de armar. Tais procedimentos podem gerar certo contraste com a obra anterior, porém podem ser lidos também como efeito de continuidade, na busca pela pluralidade expressiva e pelas soluções poéticas.

O poema inicial, da seção “Infância”, é uma lista atemporal, procedimento  que favorece o deslocamento e o recorte. Tal escolha cria versos alinhados em uma sequência que sugere a recuperação do tempo onírico e mágico da criança, ao mesmo tempo que incorpora a percepção infantil, iterativa e, estranhamente, poética. Como se o intuito de se ver tudo pela primeira vez, princípio poético tão buscado e propagado, agora, nos meandros das desilusões adultas, repassados por tantas noções causais e obrigações humanas, obliterasse o adulto reflexivo e voltasse a dar vazão para a sensibilidade infantil.

Isso favorece tanto a perspectiva da linguagem infantil quanto o ritmo de cantiga popular, o que imprime um movimento de cancioneiro e recupera certas medidas medievais, tão próprias para o canto e para a roda, como em “Nascimento” (p. 22-23) e “Lobo” (p. 28), em que as listas compostas por versos ágeis e rápidos remetem à vivacidade infantil. Não seria espantoso que muitos versos possam ter sido “pescados” pelo poeta no convívio com crianças, de forma dialogante.

Já em “Caos”, dos dezenove poemas da seção, ao menos sete seriam anáforas, o que constrói uma semântica geral que circula a ênfase, a repetição e a insistência. Essa figura retórica lembra, por vezes, o ritmo da fala que repete por processos de memorização, ou seja, o poema no limiar da cantiga. Essa seção tematiza as dificuldades humanas e dimensionam a infância da primeira seção. O vocabulário de jogo e cantiga continua em certa medida, mas agora o olhar adulto direciona o sentimento, como sintetiza o verso “Tudo está programado”, do poema “Programado” (p. 48).

A condição de tempos sombrios, de pouca articulação humana e de caos pandêmico perpassa essa parte do livro, mesmo quando compõe um poema com possível dedicatória infantil, “Fábula”, ainda assim os “Ursos acompanham de perto / o calor do globo” (p. 46), metáfora climática completada pelo poema seguinte “Avisos” (p. 47): “Quando a chuva vier tudo será levado / Quando o El Niño chegar de antemão”. O tempo do fim e do recomeço se embaralham, tudo está acabando e acabado, para depois voltar como em “Hoje vivi de novo” (p. 58), em uma percepção de embate e resiliência.

A terceira seção, “Casa em mudança”, que possui um refinado sentido de ritmo e de sonoridades deslizantes, ao mesmo tempo que sugere a passagem e a transformação do adulto maduro, também é repassada por notações da infância. Pode-se pensar que a ideia de que o presente muda a interpretação do passado teria grande força em um universo em que animais crianças, e plantas, ganhassem a nitidez do espaço poético-pictórico, como em “Jacarandás” (p. 77):

O louva-a-deus
e os colibris chegando
dos jacarandás

flores se abrindo
como o coração
o melro e o rouxinol

Crescem os cabelos,
também os sobrinhos,
Paulo Henrique, a barriga

Clara, Pedro, Blanca,
a alegria do helianto
debaixo do sol

Nesse poema, ecoa o belo verso “Tudo um dia volta a ser amado”, do poema “Fliperama” (p. 72). A observação das crianças e da natureza pode ser lida como reconhecimento do sujeito poético em relação a um mundo desprezado pelos adultos, porém vital, como se lê em “a alegria do helianto”, prosopopeia que maximiza a harmonia infantil com a natureza. O gesto de olhar para trás, constituído desde o início do livro, redimensiona o interesse temático para um caminho menos solitário e agregador, fazendo das perdas inevitáveis o caminho para a compreensão do passado e do futuro.

Essa figuração da realidade atual e política, vazada pela infância e pela percepção de “acerto de contas” com o mundo, registra uma escrita comprometida, de forma tenaz, com a beleza, como se a reinterpretação de tudo passasse pela “casa já mudada”, e todo o poder alegórico e analógico que a palavra casa reserva, amplo caminho de exploração poética que talvez não se esgote nesse livro.

A progressão do conjunto é factual; note-se que cada seção é maior do que a anterior, seja pela necessidade de acomodar uma década de escrita, seja pelo efeito dramático crescente até “Mundo mundo”, em que o substantivo é adjetivado pelo próprio substantivo, criando um efeito de abertura na repetição. Aqui, há espaço para paisagens interiores, íntimas, poemas de amor, e, novamente, a luta entre a compreensão e a perda, como no poema “Rosto” (p. 113), síntese da luta pela continuidade:

Quando eu estou sozinho
Lembro de todos
Em cada célula do meu corpo
Quando estou dormindo

Mais do que julgar o último volume de poemas de Dick em relação à obra anterior, por meio de critérios como continuidade/ruptura ou expansão/contração da mancha gráfica, pretende-se ressaltar a percepção de um sujeito reflexivo, atento ao micromundo das folhas, das sombras e, principalmente, dos afetos humanos. A sensação final da leitura é a da elevação da fragilidade humana, perpassada pelo sofrimento e pela mudança, porém com certa alegria pacificadora, sustentada por uma sabedoria poética que não nasceu nesse livro.

Por fim, o afinamento rítmico e rímico do conjunto traduz o que há de mais sensível no panorama atual; o artífice é parente muito próximo do transeunte, do filho, do tio e de todas as outras identificações do sujeito poético. Nenhum tema ou ideologia sobrepõe-se ao principal: trata-se de um livro de poemas: é para a poesia – vida e passagem – que todos esses caminhos são percorridos.

Danilo Bueno é poeta e crítico literário, autor de Para viver automaticamente e Sete e meio ou Waterloo. É graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2004) e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).


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