O Tucanistão virou um Bolsonazistão e ninguém achou estranho
O voto nordestino permaneceu onde sempre esteve, o que mudou foi o voto das outras regiões (Arte Andreia Freire)
O voto dos nordestinos se transformou em um enigma para muitos da boa gente brasileira. Nem sempre foi assim, naturalmente, mas apenas quando o voto do Nordeste se desgarrou do voto “de São Paulo para baixo e para os lados” – São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Uma diferença que tem uma precisa data de nascimento: o ano eleitoral de 2006. Em 2010 e 2014, com algumas alterações, a diferença permaneceu. Foi em 2006 que os jornalões do Sudeste e os príncipes do comentário político brasileiro passaram a adotar a “teoria dos dois Brasis”, para tentar lidar com o fato de que quem ganhou a corrida presidencial em São Paulo, desde o segundo turno daquele ano, nunca conseguiu ser eleito presidente da República.
Dados à mão, contudo, nunca se tratou, de fato, de uma contraposição entre o Nordeste, de um lado, e o Sudeste e o Sul, de outro. Desde 2006, dos cinco maiores colégios eleitorais brasileiros, São Paulo e Rio Grande do Sul têm uma preferência eleitoral para presidente, enquanto Minas, Rio de Janeiro e Bahia têm outra. E os últimos prevalecem. Além disso, Amazonas, Pará e Tocantins sempre tiveram preferências presidenciais alinhadas com o bloco Nordeste/Minas/Rio. Mas, enfim, Nordeste versus Sul/Sudeste, às favas a complexidade dos fatos, parece um rótulo mais atraente e uma contraposição mais exuberante. De bônus, a contraposição entre modernidade e atraso, desenvolvimento e pobreza, alto e baixo IDH, tropicais e subtropicais. Ficava ótimo em manchetes, chamadas e posts.
Para complicar, os votos, uma vez depositados na urna, perdem as marcas da sua origem. Ninguém pode saber se um voto computado veio de um branco ou de um preto, de uma mulher ou de um homem, de um jovem ou um velho. Todas as marcas do eleitor são apagadas, exceto uma: a origem geográfica do voto. O voto paulistano continua paulistano, o voto baiano entrega o seu eleitor. Findo os turnos eleitorais, jornalistas, comentaristas e analistas políticos, sem mencionar a arraia miúda da torcida política em ambientes digitais, partem à cata das marcas regionais do voto. E desde 2006 se espalhou a convicção, factualmente falsa mas retoricamente saborosa, de que, não fosse o teimoso e incompreensível voto nordestino, a vontade eleitoral dos que estão abaixo ou na linha do Trópico de Capricórnio, enfim, prevaleceria. Daí para as ondas de racismo geográfico em plataformas digitais nas madrugadas pós-eleição foi um breve e consistente passo. Et voilà, estava pronto para ser usado, conforme a conveniência, o novo estigma eleitoral brasileiro, o do nordestino petista atravancando o caminho do Tucanistão.
E o enigma continua um espinho na carne dos leitores e espectadores dos grandes jornais, ao que parece. Ainda esta semana, mais uma vez nos últimos quatro ciclos de eleições presidenciais, me foi pedida uma entrevista para um jornal de São Paulo, uma contribuição para que, enfim, se desvende o mistério “por que até 60% dos nordestinos continuam preferindo Lula como presidente?“. Nada como recorrer a um “informante local” para tentar desvendar o que continua sendo um desafio à Lógica, não é mesmo?
Assim, mais uma vez abri para o meu interlocutor os mapas eleitorais para mostrar que, na verdade, tanto faz perguntar por que o Nordeste vota de um jeito e o Sul de outro, quanto perguntar por que Minas e Rio voltaram sistematicamente com a Bahia e o Ceará e de modo diferente de São Paulo nas últimas três eleições. Ou, enfim, por que diabos São Paulo tem sido, por assim dizer, o Mick Jagger da torcida presidencial por tanto tempo? E insisti que não se trata de Nordeste, mas do fato de que 15 estados da Federação, de três diferentes regiões, têm votado de forma alinhada para presidente desde 2006, enquanto outros cinco, dentre eles São Paulo, votam de forma divergente do bloco majoritário. E têm perdido.
Depois lhe sugeri que, a pensar bem, parece menos surpreendente a permanência do voto do Nordeste em Lula ou no PT do que as intenções de voto em Bolsonaro no Sudeste em 2018. Parece-me mais simples explicar por que 51% dos nordestinos não votam em Bolsonaro nem que o mundo acabe, que entender, por exemplo, a razão de 27% dos eleitores do Sudeste e 30% dos eleitores do Sul, segundo o Datafolha, preferirem votar nele. Aliás, segundo a pesquisa do Ibope de 11 de setembro, estes números são ainda mais impressionantes: 29% dos eleitores do Sudeste votam em Bolsonaro, 37% dos civilizadíssimos sulistas também. Pelo menos o voto em Lula é resultado de uma experiência concreta de melhoria do padrão de vida dos pobres em seu governo, do sentimento de que os pobres eram a sua opção preferencial, sem mencionar a memória de políticas públicas para reduzir a assombrosa desigualdade regional neste país. E a preferência por Bolsonaro, é baseada exatamente em quê?
Na verdade, não tem mistério algum no voto nordestino em Lula. Há boas razões de voto para se ter preferido o PT ao PSDB, considerando que as prioridades dos moradores pobres daquela região não podem ser as mesmas do circuito Avenida Paulista-Brigadeiro Faria Lima. O único enigma que merece ser explicado é o voto sudestino e sulista em Bolsonaro. O voto nordestino permaneceu onde sempre esteve, coerentemente, nas últimas três eleições. O que mudou foi o voto das outras regiões.
Por três eleições prevaleceu um argumento em favor do voto no PSDB em São Paulo, no Sul e no Centro-Oeste. Estados com economia mais fraca e mais dependentes do Estado votariam no PT, estados com demandas relacionadas a um ambiente econômico competitivo e industrialmente estimulante votariam nos tucanos. Bem razoável. O problema é que este argumento, desfraldado por mais de uma década com orgulho nos editoriais da grande imprensa, nos painéis da Globo News e nos comentários dos cientistas políticos de mídia, não explicam por que os eleitores dessas regiões estão agora encantados com Bolsonaro e passaram a desprezar as alternativas que diziam adorar. Segundo a pesquisa estimulada do Datafolha de 10 de setembro, o candidato do PSDB está em empate técnico com Marina Silva e Ciro Gomes no Sudeste, mas perde de 11 a 27% para Bolsonaro. No Sul e no Centro Oeste, Bolsonaro chega a 30% e Alckmin alcança 8% e 10%, respectivamente. Sem mencionar a ridícula taxa de intenções de votos em alternativas eleitorais com ainda maior afinidade com os “setores produtivos” e o “mercado”, como Amoedo ou Meirelles.
Como se explica isso, se nos ensinaram que o voto nessas regiões é racional, e não comprado com bolsas e esmolas ou com doutrinação ideológica? Qual é mesmo a racionalidade incluída no voto massivo no Capitão Bravata, arma na cintura e coturno nos pés? Como o Tucanistão se transformou tão rapidamente em um Bolsonazistão, se era a sua avançada mentalidade progressista, capitalista, globalista, antiestatista e antenada com o mercado internacional o que o diferenciava do atrasado Nordeste brasileiro? Este, sim, é um enigma digno de uma reportagem em profundidade do Estadão, da Folha ou da Globo News. E nem precisariam mandar correspondentes nem incomodar informantes locais, remotamente acionados. Bastaria sair às ruas ou indagar aos amigos dos grupos de WhatsApp. Quando souberem o que está acontecendo por aí, por favor me avisem.
(4) Comentários
Acho algo simples de explicar, as regiões sul estão cansadas do mesmo e acham que uma mudança radical vai funcionar, a mentalidade no sul de roba mas faz terminou com maluf, e a falta de interesse do demonstrada pelos presidenciaveis Ptistas pelo fato não terem nenhuma influencia forte na região na região sul e Suldeste foi agravada muito mais pelo governo em São Paulo um tanto peculiar e de certa forma progressita do Haddad, que realmente fez um governo progressista mas em uma sociedade que não estava preparada e que priorizou assuntos de cidades desenvolvidas como londres e Nova Yorque mas que para morava em São Paulo tinha menor importância(quem votava nele na periferia se viu órfão ja que pouca coisa realmente foi feitas e concluídas para melhorias nas regioes periféria, Haddad ficou marcado por suas ciclofaixas e por ter atrapalhado o transito e sim a maior parte da populção não concordou com as atitudes dele, o pouco investimento na saúde, ele chegou a cortar projetos que funcionavam apenas por ter sido o governo anterior a ter iniciado, vide o projeto Aprendendo com Saúde que foi cancelado assim que ele assumiu, ou seja o Haddad foi mais do mesmo) e como o PSDB e o PT simplesmente abandonaram o sul e sudeste oque restou? Os outros partidos que se alinham a politica petista e o Bolsonário, como disse o PT e seus aliados nao fizeram expressivo nada para melhorar a vida no sul e sudeste facil entender pq nao votam neles, a logica e simples vc vota em quem vai fazer mais por vc, o nordeste vota no PT pq o mesmo melhorou e muito as condições do nordeste(e o voto e correto por isso) o sul não vota no PT e nem mais no PSDB pq nao houve melhorias quando os mesmo assumiram(e isso tb e o correto a ser feito), e injusto falar que o sul e sudeste como tucanistão ou bolsonazistão e como tb e injusto falar que no nordeste so tem gente desinformada que vota no PT (FHC que tanto fez com o plano real infelizmente mandou mal nessa) as pessoas votam em quem fizeram mais por elas é simples.
brilhante
Vejo como a única justificativa para o voto sulista a descrença no sistema político presente e em segundo plano, em consonância com a pirâmide de Maslow; a proteção. A família não aguenta mais a violência urbana e nem querem imaginar a possibilidade de perder um ente querido para um rels “nóia”
Wilson, eu sou do RS e também não estou entendendo nada…
Acho fácil, racional e justo não votar no PT depois de todos os escândalos com corrupção desses últimos anos. Assim como também acho fácil não votar no PSDB pelos mesmos motivos (mesmo que muita gente ignore esse fato). Mas o fato é que temos, tirando PT, PSDB e o maluco do Bolsonaro, outros 10 candidatos a presidência e me parece que sul e sudeste simplesmente ignoram isso…nesses últimos dias sinto vergonha do meu estado.