Arcas de Babel: Thiago Ponce e Eduardo Ferraz traduzem A. R. Ammons

Arcas de Babel: Thiago Ponce e Eduardo Ferraz traduzem A. R. Ammons
Thiago Ponce e Eduardo Ferraz traduzem A. R. Ammons (Fotos: DIvulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.

Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Na Arca de hoje, o poeta e professor Thiago Ponce de Moraes e o professor Eduardo Ferraz Felippe trazem poemas inéditos de A. R. Ammons. Eles também assinam a apresentação do autor estadounidense.

Eduardo Ferraz Felippe é professor do Departamento de História da UERJ. Estuda as relações entre Literatura e História e publica lidando com esses campos. Traduziu ensaios para revistas acadêmicas. Organizou livro sobre literatura Latino-americana girando ao redor da obra de Ricardo Piglia com o título Só se perde o que realmente nunca se teve (2019, Metanóia).

Thiago Ponce de Moraes é autor de, entre outros, Dobres sobre a luz (2016, Lumme Editor, finalista do prêmio Jabuti) e Glory Box (2016, Carnaval Press, coletânea bilíngue traduzida pelo poeta britânico Rob Packer). Seu novo livro, Espacelamentos, será lançado pela Gralha Edições e trará desenhos de Priscilla Menezes.

***

Em uma carta de 22 de agosto de 1973, endereçada a uma revista de New Jersey, A. R. Ammons afirma: “Harold [Bloom] quer que eu seja intenso, louco, consistentemente elevado. Eu quero ser ordinário, casual, um homem desse mundo. Mas eu suponho que eu não deva querer ser um poeta (não sei ao certo se sou) e um homem desse mundo”. Pouco conhecido do público brasileiro, ele nasceu Archie Randolph Ammons e cresceu em uma fazenda de tabaco da Carolina do Norte, se graduou em biologia, foi professor de escola de nível básico e foi professor da Faculdade de Cornell, região em que viveria até seus últimos dias. Sua obra pode ser considerada como uma das mais prolíficas da poesia norte-americana do século 20, acumulando mais de duas mil páginas de poemas; sem contar as suas cartas, que são um episódio à parte dentro de sua obra.

Seus poemas procuram o que ainda pode ser misterioso e sagrado nesse mundo caótico e de avanço do tecnicismo. Há uma batalha por aquilo que é sublime em meio ao mundo que se erige sobre padrões comportamentais, desenvolvimento de computadores e da aceleração dos investimentos financeiros. Escreve nas últimas décadas do século 20 e iniciozinho do 21, na antevéspera de sucumbir à presença disseminada de algoritmos.

Talvez por isso faça tanto sentido seu labor poético em reverter o exílio dos objetos ditos inanimados e das criaturas não humanas. Traz de volta pela primeira vez, ou novamente, tudo aquilo que pertence ao domínio do que merece receber atenção poética. Tudo deve ser levado em consideração. A tarefa primeira é erodir as fronteiras entre o que é humano e não-humano, dissolver o limite entre as espécies e os gêneros. As hierarquias devem ser questionadas e postas abaixo propondo um jogo de escalas mais próximo ao rés-do-chão.

Escrever poesia sem que ela soe redundante na era da visibilidade total que já vinha se mostrando inescapável não é um desafio fácil. Negar as grandes inovações formais foi a outra expressão de um caminho, mesmo que ele perceba com destacada admiração a escrita de John Ashbery. Não se trata de uma divergência temática, mas de abordagem e opções formais.

Seus poemas parecem nunca terem encontrado muito sentido nos exercícios de pastiche e colagem, nas referências irônicas, na solidez impecável de potentes construções poéticas. Seus livros de poemas fazem um apelo mais humilde e direto ao humano, às questões inesgotáveis de amor, prazer, dor e raiva. Guardam para si o espaço para que o mistério indecifrável da existência seja posto. O humano se iguala a todos os outros seres por essa parcela inalienável de mistério inerente a todas as criações desse mundo.

Ammons escreve poesia em busca do abandono da excepcionalidade humana em sua inserção no planetário. Tudo isso nos coloca diante da questão do “eu” na poesia de Ammons.  Acreditamos que esse seja o motivo central de seu trabalho poético. Aquilo que o coloca diante de amplas indagações, como a relação entre criador e criatura, Deus e o Homem, o Cosmos e a solidão do planeta azul no universo. Parece que por vezes consegue materializar em poucas linhas anseios e dilemas de escrita, elevando-os ao patamar de sublimidade e indistinção humana.

Como no trecho de Guia, retirado do poema maior Lixo: “como disse posso estar alegre e triste: mas um homem caminha/ de pé em pé:/sabedoria sabedoria:/ estar feliz e triste a um só tempo é também unidade/ e morte:/ sabedoria sabedoria:/ um pêssego em flor floresce numa determinada / árvore num determinado dia”. Talvez fosse possível buscar certo epicurismo na poesia de Ammons ou a reverberação de Lucrécio e seu De rerum natura, todas perspectivas válidas, mas a atenção com a sabedoria nos desloca menos para uma reflexão aguda sobre hábitos e mais para o olhar microscópico para o mundo natural.

Ammons evita o tom elevado. Também nega qualquer grande evento ou a possibilidade de utilizar o estilo elevado para expressar o heroico e o trágico. A sua obra poética poderia ser considerada uma poética do minúsculo. Ele sempre está atento à variedade imanente e terrena das coisas do mundo, no qual os olhos humanos estão na mesma altura que uma alga, um líquen. Tudo aqui parece acontecer ao rés-do-chão. O tom pedestre de sua poesia se dá pela escolha de palavras e na disposição dos versos que nem sempre seguem uma disposição fixa no poema. Não se percebe o uso ativo do verbo, sendo que há orações relativas.

A escrita pedestre está a serviço de um objetivo potente, entretanto: apreender o homem no todo do Cosmos e ressaltar seu caráter contingente e a interdependência com tudo o que o rodeia. Interdependente e contingente, o homem está na mesma altura que o musgo e o líquen, parte desse todo que não deixa de ser também parte de algo maior e indefinido previamente. O uso dos dois pontos retoma esse lugar da união entre duas orações e a intenção de postergar indefinidamente o final do verso. O estilo médio da narração e a recusa pelo legado formal da tradição retórica contribuem para essa atenção ao que é mínimo e está ao rés-do-chão.

Esse olhar atento percebe por integração e interdependência tudo aquilo que está ao redor. Assim acontece no poema “Ondulações”: um dos poucos poemas no qual a relação com aquilo que é de proporções amplas se apresenta e no qual a onda é a imagem síntese que se desdobra em menções à física, aos hábitos humanos e à vida dos animais. Seus poemas carregam a indagação pelo senso individual do “eu” em estreita correlação com a amplitude geral do fluxo das coisas do mundo, seja o movimento dos animais, a lentidão das plantas ou a aparente imobilidade do mundo mineral. O humano integra tudo o que está ao redor, não há hierarquização, nem privilégio pela presença humana no mundo. Pelo contrário, por vezes sentimos que os atos humanos e o modo do homem elaboram sentido para a sua experiência a partir da Natureza.

Se podemos reconhecer, entretanto, Whitman e também Emiliy Dickinson, creio que Emerson seja a aquele por quem Ammons explicitou maior admiração. Em diversos trechos de sua troca epistolar com Harold Bloom, Emerson aparece como o poeta que mais o toca, ao ponto de Ammons dizer que “The snow-storm” seria o melhor poema solitário já escrito por um autor norte-americano.

Podemos imaginar que exista uma espécie de triangulação de admiração entre Harold Bloom, A R Ammons e Ralph W. Emerson, ao ponto de Harold Bloom considerar que Ammons “ilumina Emerson e toda a sua descendência, tanto quanto ele necessita deles para a sua própria iluminação”. Emerson e Whitman como os grandes poetas referência para Ammons, assim como a quebra do verso de Erza Pound, bem como a presença de William Carlos Williams, Robert Frost e Wallace Stevens. Apesar de reconhecer poetas europeus com admiração, como faz ao comentar Yeats e o livro que Bloom escreve sobre ele, Ammons finca seus pés em solo norte-americano.  – Eduardo Ferraz Felippe e Thiago Ponce de Moraes

 

Guia

 

Você não pode atingir a unidade e permanecer material:
nessa percepção não há quem perceba:
quando você chegar
já terá ido longe demais:
na Fonte você está na boca da Morte:
você não pode
se virar para
o Absoluto: não há entradas ou saídas
nem precipitação das formas
para usar como pinças contra o amorfo:
não há livre arbítrio:
para ser
você deve parar de não-ser e romper
do é para o fluir e
esse é o pecado por que chora e louva:
origem é seu pecado original:
o retorno por que anseia vai aliviar sua culpa
e você vai realizar seu anseio:
o vento que é meu guia disse shhh: ele
devia saber tendo
desistido de tudo para o ser eterno senão
da direção:
como disse posso ser alegre e triste: mas um homem caminha
de pé em pé:
sabedoria sabedoria:
estar feliz e triste a um só tempo é também unidade
e morte:
sabedoria sabedoria: um pêssego em flor floresce numa determinada
árvore num determinado dia:
a unidade não pode fazer nada determinado:
são esses os pensamentos que você quer que eu pense eu disse mas
o vento se foi e não houve mais conhecimento então.

 

Poética

 

Eu busco o jeito
pelo qual as coisas vão acabar
se espiralando de um centro,
a forma
que vão tomar para se darem a ver

de modo que a bétula-branca
de preto tingida nos galhos
se sobressairá
ventoluzindo
totalmente seu eu aparente:

Eu busco as formas
como as coisas querem vir a ser

de quais poços negros da possibilidade,
como uma coisa vai
se desdobrar:

não a forma no papel – ainda
que isso, também – mas os
meios ininterferentes no papel:

não tanto buscando a forma
mas estando disponível
a qualquer forma que possa estar
invocando a si mesma
através de mim
do eu não meu mas nosso.

 

Reflexivo

 

encontrei um
joio
que tinha um

espelho nele
e esse
espelho

olhava para
um espelho
em

mim que
tinha um
joio nele

 

Ondulações

 

A mais longa ondulação no mar, suspeito,
carrega a memória mais funda, a informação de ações
sintetizada (picos e furos de onda e cristas pontuais

acentuadas pela ventania) por uma síntese das sínteses
e sob outras sínteses uma síntese mais funda: bem, talvez
mais profunda, mais longa, já que comprimento aqui é o mesmo que tempo
profundo: de modo que a mais longa ondulação ondule menos; ou
seja, seus efeitos em eventos imediatos sejam menos perceptíveis,
um nível na água branca crescendo digamos um milímetro mais

por causa de uma antiga presença invisível: e no fundo
do mar uma proporção tão vasta ocorre que se move em uma evidência
de milhares de anos, cada ruído, no entanto, de superfície e

entremeio levado em conta: gosto de ir
a lugares antigos onde o efeito habita, cumes ou mares
tão difíceis de invocar à mente, mesmo com aqueles

naturalmente difíceis de escalar ou medir: vou até a minha mente
(que é, afinal, onde essas coisas negociáveis estão)
e sintonizo a onda quase além da cheia ou vazante em sua

calmaria e zumbe a assimilação constante, universal: a
informação, tão concentrada, quase silenciada com majestade
e mal comunicando qualquer ação: vá até lá e

descanse do pulsar irregular e rápido, da ameaça imediata
lançada de um spray desintegrante, dos vários pensamentos e
visadas inviáveis, das mortes de tantos, famintos ou loucos.

 

***

 

Guide

 

You cannot come to unity and remain material:
in that perception is no perceiver:
when you arrive
you have gone too far:
at the Source you are in the mouth of Death:
you cannot
turn around in
the Absolute: there are no entrances or exits
no precipitations of forms
to use like tongs against the formless:
no freedom to choose:
to be
you have to stop not-being and break
off from is to flowing and
this is the sin you weep and praise:
origin is your original sin:
the return you long for will ease your guilt
and you will have your longing:
the wind that is my guide said chis: it
should know having
given up everything to eternal being but
direction:
how I said can I be glad and sad: but a man goes
from one foot to the other:
wisdom wisdom:
to be glad and sad at once is also unity
and death:
wisdom wisdom: a peachblossom blooms on a particular
tree on a particular day:
unity cannot do anything in particular:
are these the thoughts you want me to think I said but
the wind was gone and there was no more knowledge then.

 

Poetics

 

I look for the way
things will turn
out spiralling from a center,
the shape
things will take to come forth in

so that the birch tree white
touched black at branches
will stand out
wind-glittering
totally its apparent self:

I look for the forms
things want to come as

from what black wells of possibility,
how a thing will
unfold:

not the shape on paper — though
that, too — but the
uninterfering means on paper:

not so much looking for the shape
as being available
to any shape that may be
summoning itself
through me
from the self not mine but ours.

 

Reflective

 

I found a
weed
that had a

mirror in it
and that
mirror

looked in at
a mirror
in

me that
had a
weed in it

 

Swells

 

The very longest swell in the ocean, I suspect,
carries the deepest memory, the information of actions
summarized (surface peaks and dibbles and local sharp

slopes of windstorms) with a summary of the summaries
and under other summaries a deeper summary: well, maybe
deeper, longer for length here is the same as deep

time: so that the longest swell swells least; that
is, its effects in immediate events are least perceptible,
a pitch to white water rising say a millimeter more

because of an old invisible presence: and on the ocean
floor an average so vast occurs it moves in a noticeability
of a thousand years, every blip, though, of surface and

intermediacy moderated into account: I like to go
to old places where the effect dwells, summits or seas
so hard to summon into mind, even with the natural

ones hard to climb or weigh: I go there in my mind
(which is, after all, where these things negotiably are)
and tune in to the wave nearly beyond rise or fall in its

staying and hum the constant, universal assimilation: the
information, so packed, nearly silenced with majesty
and communicating hardly any action: go there and

rest from the ragged and rapid pulse, the immediate threat
shot up in a disintegrating spray, the many thoughts and
sights unmanageable, the deaths of so many, hungry or mad.


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