Sobre laranjas e patentes

Sobre laranjas e patentes
(Arte Fernando Saraiva/Revista CULT)

 

Amigos estrangeiros que viviam no Brasil sempre me confessaram a sua perplexidade com a enorme tolerância que os brasileiros demonstravam quando se tratava de corrupção política. Havia uma resignação cultural com a corrupção em ambientes políticos em uma proporção que lhes parecia chocante e incompatível com as aspirações de modernidade que o país cultivava. A corrupção fazia parte da paisagem como um relevo de que não se gosta, mas que não pode ser mudado, tem que se aceitar, seguir em frente, e procurar não olhar muito.

Depois, naturalmente, as coisas parecem ter mudado um pouco. Uma métrica que me parece bastante confiável para aferir isso é a natureza dos escândalos políticos brasileiros, que nas últimas duas décadas têm deixado de estar relacionadas à vida íntima, amorosa e sexual, dos governantes e mais à sua vida pública, ao comportamento inapropriado de políticos e gestores em casos de patrimonialismo, clientelismo e corrupção. Ultimamente, o que poderia ter sido uma mudança cultural sustentável e consistente, tornou-se uma verdadeira obsessão pública, pois a corrupção deixa de ser apenas um dos problemas da vida pública nacional e se transforma no principal problema da política do país. A eleição de 2018 significou justamente o coroamento dessa mentalidade, quando o envolvimento ou não em corrupção se tornou o critério fundamental para a escolha eleitoral. O brasileiro não apenas fartou-se de corrupção, mas escolheu a ficha limpa em matéria de corrupção como um critério que, inclusive, abonava todas as outras condutas inapropriadas, não republicanas e antidemocráticas, dos candidatos escolhidos.

Jair Bolsonaro, seus filhos e todos das centenas de eleitos na onda bolsonarista de outubro de 2018 devem os seus mandatos à convicção dos seus eleitores de que eles, diferentemente dos outros, não se envolviam em corrupção. Praticamente, só foi eleito ou reeleito quem conseguiu se vender como “diferente de todos os políticos que estão aí”. O bolsonarismo, enfim, parece apoiar o seu próprio peso quase inteiramente sobre esta coluna: corruptos são os petistas e todos os outros, nós não. Bolsonarista que é bolsonarista não corrompe, não se deixa corromper, não compactua com a corrupção. Além disso, o bolsonarismo acresce a crença na instituição militar na espiral virtuosa de incorruptibilidade que prometeu aos brasileiros que os bolsonaros implantariam. Assim, disseminaram a convicção de que, diferentemente dos políticos profissionais, militares não participariam de maracutaias, não tirariam um “por fora”, não pagariam nem receberiam propinas. Dada a premissa, encher de militares os cargos de primeiro e segundo escalão da Administração Pública consistiria basicamente em construir um baluarte de homens incorruptíveis a proteger a República da corrupção que infecta o sistema político.

Pois não deixa de ser curioso que o primeiro escândalo político envolvendo os recém-eleitos bolsonaros, antes mesmo da posse do chefe do clã, tenha toda a aparência de corrupção. E envolvendo, vejam só, os impolutos militares amigos da corte. No centro de um circuito intenso, suspeito, e até agora não explicado, de movimentações financeiras, estão o deputado Flávio Bolsonaro, agora eleito senador pelo estado do Rio de Janeiro, oito dos seus assessores e um amigo antigo da família, do círculo militar íntimo da família eleita. E um esquema de dinheiros saltando de conta em conta até chegar nas mãos de quem coordena a coleta, com toda a cara do tradicionalíssimo desvio de recursos públicos por meio de funcionários de gabinete.

O baixo clero das casas legislativas do Brasil faz isso há décadas: funcionários de gabinete são contratados acima do valor do mercado, desde que devolvam uma parte do pagamento ao titular do mandato, que se serve para tanto de um laranja, um servidor da sua mais estrita confiança. No caso, o homem de confiança é um ex-sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro, contratado como motorista do gabinete com remuneração mensal de pouco mais de R$ 20 mil, mas que movimentou em um ano, segundo o Coaf, a bagatela de R$ 1,2 milhão proveniente da conta de outros funcionários do gabinete do deputado Bolsonaro. Na ciranda de depósitos, pelo menos oito funcionários e ex-funcionários do gabinete de Flávio fizeram operações (depósitos ou recebimentos) na conta do sargento Queiróz. Entre os funcionários-contribuintes estão as filhas e a mulher do sargento, pois, afinal, confiança é tudo.

Segundo o Jornal Nacional, outro dos ex-assessores do círculo de confiança dos bolsonaros, envolvido nas operações suspeitas, vejam só, é um tenente-coronel da Polícia Militar. Mais patente por perto é importante, pois, afinal, só se pode ter gente de extrema confiança nessas coisas e há pouca gente em que se pode confiar neste mundo de inconfidências, denúncias e delações. Como como bem ensinou Aécio Neves, que segundo o MPF, entende de laranjas e lavagem de dinheiro como poucos neste país, “tem que ser um que a gente mate antes de fazer delação”. Gente da casa mesmo. Michel Temer, que também é acusado de ter o seu coronel de confiança (o famoso Coronel Lima) para lavar de dinheiro e distribuir benesses à família do rei, poderia ter dado umas dicas à nova família reinante.

O senador Flávio Bolsonaro, estrela ascendente do clã que prometeu um Brasil sem corrupção, há de ser inocente. Tem que ser inocente. Precisa ser inocente. A coisa tem cara de coleta e de um esquema desses de lavagem de dinheiro que a Operação Lava-Jato adora, e assim tem sido tratada pelos jornalões que, até aqui, não deram tréguas aos bolsonaros e à sua cercania. Além disso, a coisa saiu da alçada do senador-filhinho para o colo do presidente-papai quando um cheque foi parar na conta da primeira-dama. Mas é óbvio que quem vê cara, naturalmente, pode não ver o coração. Às vezes, ao contrário do que acreditava Chapeuzinho Vermelho, quem tem pelo de lobo, olhos de lobo, focinho de lobo e dentes de lobo, não é lobo. Cabe aos bolsonaros, a este ponto, oferecer uma outra narrativa que faça sentido e que mantenha intacta a sua parte do pacto eleitoral com os brasileiros, que exige que sejam incorruptíveis. Caso contrário, teremos um caso severo de estelionato eleitoral, para usar a palavra da moda de dezembro de 2014, maior do que aquele de que se acusou Dilma Rousseff.

Como disse Míriam Leitão, no jornal O Globo, “a dúvida que resta é porque uma história plausível e sem ilegalidade ainda não foi explicada para o conforto do público em geral”. Pois é. O senador eleito disse que haveria uma história plausível por trás de tudo, mas ainda não nos contou qual é. O presidente eleito e já diplomado balbuciou uma improvável história de um empréstimo pessoal para justificar o depósito na conta da esposa. Tomara que seja verdade, vez que explicações envolvendo empréstimos que não se comprovaram acabaram afundando Collor de vez, em 1992. Depois, o presidente disse em uma live no Facebook que “se errou, paga” como se alguém que se elegeu porque não errava nesta matéria tem o direito de pedir desculpas e ficar por isso mesmo. Por fim, o futuro chefe do gabinete de segurança institucional defendeu o presidente eleito nesta quarta-feira dizendo que “o que apareceu [de Jair Bolsonaro] é irrisório. Uma quantia pequena, e ele mesmo já explicou. Acredito que não vá atingi-lo”. Para o general, ao que parece, é tudo questão de valores pecuniários e não de valores morais. Precisa combinar a história com quem o elegeu, pois se tem uma coisa que os bolsonaros não podem reivindicar, em hipótese alguma, é o perdão por lavar dinheiro e se apropriar de recursos públicos. Aparentemente, os brasileiros lhes deram imunidade para humilhar, ofender e proferir os maiores disparates sobre qualquer assunto, mas não para se meter em corrupção.


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