Quarta onda do feminismo é tipicamente latino-americana, diz fundadora do Ni Una Menos

Quarta onda do feminismo é tipicamente latino-americana, diz fundadora do Ni Una Menos
As mulheres Aymara da Bolívia, La Paz (Foto Juan Karita / Divulgação)

 

Se vivemos uma quarta onda do feminismo, esta é “tipicamente latino-americana”, afirma a especialista em gênero e uma das criadoras do movimento argentino Ni Una Menos, Cecília Palmeiro: “Nossas palavras de ordem, “nem uma a menos”, foram traduzidas e usadas na Coreia e na Polônia. Estamos travando diálogo com os movimentos feministas em todos os continentes para trocar experiências e aprender umas com as outras”.

Palmeiro se refere à Greve Internacional de Mulheres do último 8 de Março – também denominada Paro Internacional de Mujeres (PIM) e International Women’s Strike (IWS) –, aderida por mais de 55 países. “Se nossas vidas não importam, produzam sem nós”, foi o mote do movimento. “Não houve um país latino-americano que não aderiu à Greve Geral e ao Paro Interacional de Mulheres. Estávamos todas ligadas nas mesmas questões, crescemos muito com esse diálogo e conseguimos ampliar vozes que não tinham um lugar privilegiado no feminismo.”

A Greve Geral foi inspirada pela paralisação das mulheres argentinas organizada pelo Ni Una Menos após o assassinato da adolescente Lúcia Perez, de 16 anos, drogada, estuprada e empalada em Mar del Plata, em novembro de 2016. Unidas pela consigna “nem uma morta mais, nem uma mulher a menos”  – verso retirado do poema Ni Una Menos, da poeta mexicana Susana Chávez, assassinada em 2011 por denunciar crimes de feminicídio -, as mulheres argentinas tiveram papel importante em atos históricos como a Women’s March, em janeiro de 2017, e a Greve Internacional de Mulheres do último 8 de Março.

De Buenos Aires, a CULT entrevistou Cecília Palmeiro sobre feminismo latino-americano, a internacionalização do discurso feminista e a importância de reconhecer a luta de outras mulheres como lutas próprias. 

A ativista argentina Cecília Palmeiro, integrante do Ni Una Menos (Foto Sebastián Freire / Divulgação)

CULT – De acordo com a ONU, o Brasil é o quinto país do mundo no ranking de feminicídio, mas o tema não parece despertar as mulheres por aqui. O que as brasileiras têm a aprender com as argentinas, especialmente no que diz respeito à luta contra a violência de gênero?

Cecília Palmeiro – Na Argentina, os encontros nacionais de mulheres acontecem há pelo menos três décadas e estão cada vez mais massivos. Algumas reuniões contam com até 100 mil mulheres jovens, idosas, urbanas, camponesas, negras, indígenas, ativistas, sindicalistas. É um ambiente que, há muitos anos, vem preparando as mulheres para a luta. Quando houve a primeira convocatória do Ni Una Menos e o movimento de mulheres estourou, nós já estávamos muito conscientes sobre a luta que travamos. Talvez por isso as mulheres argentinas pareçam mais organizadas na hora de ir às ruas. Mas eu vejo as mulheres no Brasil muito bem organizadas nos últimos anos, especialmente após o golpe e a crise do PT. De lá para cá, as mulheres brasileiras viveram momentos muito marcantes e significativos para o feminismo latino-americano: a Marcha das Margaridas e o Por Todas Elas [contra a cultura do estupro, em junho de 2016]. A coisa está acontecendo. A diferença é que na Argentina existe um movimento quase unificado e, no Brasil, existem vários movimentos diferentes simultâneos. Mas um país tão grande precisa de diferentes movimentos em diferentes lugares. A luta das mulheres camponesas e indígenas é muito forte no Brasil. São mulheres que se levantam para tratar questões ambientais e de demarcação de terras, por exemplo. Essa luta traz uma perspectiva anticapitalista muito importante para a discussão de gênero.

E o que as argentinas têm a aprender com a luta das brasileiras?

Acredito que o Brasil está muitos passos à frente na questão racial. A discussão sobre negritude entre as mulheres brasileiras é muito mais ampla e desenvolvida que entre as argentinas. Na cultura e na história do nosso país, as questões de raça não apareciam como um problema. Mas depois da desaparição forçada de Santiago Maldonado no contexto da defesa do território mapuche contra a sua apropriação ilegítima e a prisão política de Milagro Sala, ambos homens negros, o assunto está muito mais forte. Não dá pra falar em raça da mesma forma. O racismo sempre existiu, é claro. Mas o processo de embranquecimento da população foi muito bem sucedido por aqui e, como consequência, a discussão é muito mais rasa. A relação entre racismo e feminismo é muito importante e muito bem-estabelecida na luta das mulheres brasileiras, enquanto nós estamos começando a trabalhar agora. Claro que os feminismos negro e indígena existem aqui, mas são mais isolados, não chegavam à academia e ao ativismo. Avançar nessa discussão nos aproxima ainda mais da luta de outros países latino-americanos, como Paraguai, Peru e Honduras, além do Brasil, claro. O que eu acho mais interessante desta chamada quarta onda do feminismo é que ela é tipicamente latino-americano, de base latino-americana. Não houve um país latino-americano que não aderiu à Greve Geral e ao Paro Interacional de Mulheres. Estávamos todas ligadas nas mesmas questões, crescemos muito com esse diálogo e conseguimos ampliar vozes que não tinham um lugar privilegiado no feminismo.

Qual a importância de falarmos em feminismo latino-americano e caminharmos juntas na luta pela igualdade de gênero?

Nós precisamos falar a mesma língua. As mulheres latino-americanas fizeram parte da Women’s March em protesto à eleição de Donald Trump. Quando imaginaríamos que as indígenas do Paraguai estariam nas ruas pelos mesmos motivos que as mulheres brancas de Nova York, por exemplo? Mas eu não vejo as mulheres do hemisfério norte se solidarizarem com a luta das venezuelanas contra o golpe de Nicolás Maduro, por exemplo. É importante reconhecermos a luta de outras mulheres como lutas próprias. A greve de mulheres, que teve adesão de mais de 30 países, foi o primeiro passo. Nossas palavras de ordem, “nem uma a menos”, foram traduzidas e usadas na Coreia e na Polônia, por exemplo. Estamos travando diálogo com os movimentos feministas em todos os continentes para trocar experiências e aprender umas com as outras. Com a criação dessa rede internacional, alcançamos o que a [filósofa norte-americana] Nancy Fraser chama de feminismo dos 99%, ou seja, um feminismo sem lideranças, feito pela maioria e para a maioria. Nos Estados Unidos, por exemplo, as forças do feminismo de base estão ligadas aos movimentos Occupy [de ocupação do espaço público] e Black Lives Matter [contra o genocídio da juventude negra]. Para Fraser, esse conceito deve ser aplicado a todos os movimentos sociais: LGBTs, indígenas, ambientalistas, todos deveriam abolir as hierarquias e criar formas não-capitalistas de fazer política.

Protesto Ni una menos em Santiago, Chile (Foto Ivan Alvarado / Divulgação)
Protesto organizado pelo Ni Una Menos em Santiago, no Chile (Foto Ivan Alvarado / Divulgação)

E como o conceito dos 99% é aplicado dentro do Ni Una Menos?

Desde o início, lá em 2015, tentamos fazer todas as coisas de forma coletiva. Os textos que escrevemos e publicamos não são assinados porque escrevemos a muitas mãos. Nós acreditamos que a coletividade começa na linguagem e parte para as nossas ações. Algumas de nós foram convidadas por partidos para lançar candidatura nas eleições deste ano, mas todas recusaram. Não queremos isso. Queremos uma forma nova de fazer política que fuja à necessidade de criar lideranças e que fuja ao sistema partidário tradicional, que é feito por homens e está aí há anos. Para isso, convocamos mulheres para fazer reuniões, assembleias e leituras de poesia – é assim que pensamos nossas ações: da arte para a política. Sentimos essa necessidade porque percebemos que, por melhores que sejam as propostas da esquerda, a linguagem é velha e não atrai a juventude latino-americana. Novos planos nascem a partir de uma nova linguagem. Não por acaso, o nome Ni Una Menos saiu de uma poesia mexicana [da poetisa Susana Chávez, assassinada em 2011 depois de denunciar casos de violência de gênero] para se tornar uma frase política.

O que significa uma greve internacional de mulheres para a história da luta por igualdade de gênero?

A greve de mulheres não é só uma greve trabalhista, é uma greve existencial. Nosso trabalho não dura oito horas. O trabalho doméstico, de cuidados com a casa e os filhos, não é reconhecido como trabalho sob a desculpa de que é feito com amor. Então, numa greve de mulheres, a grande questão é marcar que a nossa mão de obra é desvalorizada no mercado de trabalho e invisibilizada dentro de casa. No Paro Internacional, fomos às ruas pela primeira vez conscientes do nosso lugar na cadeia produtiva global. Durante a greve, a mensagem que queríamos passar era clara: “Se não nos valorizam, produzam sem nós”. Por isso, passamos o dia sem cozinhar, limpar a casa, cuidar ou produzir. Esse é um passo grande para discutir a relação entre os nossos corpos e o capital. Neste ano, a principal demanda do Oito de Março era barrar a perda dos direitos trabalhistas – no Brasil, na Argentina e em outros países da América Latina. Isso porque nós, mulheres, somos sempre as primeiras prejudicadas em qualquer crise econômica. A nossa luta está começando por aí, pautando a violência financeira e trabalhista. Prova disso é que, tanto no Brasil como na Argentina, a greve de mulheres [no Oito de Março] impulsionou a greve geral [em 28 de março no Brasil e 6 de abril na Argentina].

Quais são os impactos diretos da greve na vida das mulheres?

As transformações pessoal e política andam juntas, mas começam dentro de casa. A greve de mulheres pode ter sido um pontapé inicial para repensar a divisão sexual do trabalho e o funcionamento da casa. Aos homens que manifestaram interesse em apoiar o Paro, sugerimos que ficassem em casa, cumprindo as tarefas que normalmente eram de responsabilidade de suas esposas, mães e irmãs. Então coube a eles cozinhar, limpar e dar banho nos filhos, ainda que por um único dia no ano. Alguns homens, inclusive, organizaram pequenas creches para acolher os filhos das vizinhas que estariam na greve. Essa é a melhor forma de apoiar a luta das mulheres: dividindo tarefas, não à frente da manifestação com um megafone na mão. Esses pequenos rompimentos com a obrigação de cuidar da casa e da família levam a grandes mudanças políticas. Para você ter uma ideia, boa parte das coordenadoras do Ni Una Menos se divorciaram nesses últimos dois anos porque começaram a perceber em seus relacionamentos comportamentos abusivos que não percebiam antes. Além disso, há um incentivo à libertação dos corpos que leva muitas mulheres a recusarem a heterossexualidade, que também é bastante opressora. A mudança tem que acontecer na rua, no trabalho e na cama. Com essas pequenas transformações, estamos atingindo a base do patriarcado e do capitalismo.


MARIANA GONZALEZ é jornalista e co-autora do livro Mi Casa, Tu Casa: a imigração sul-americana sob o olhar das mulheres

 

(1) Comentário

  1. Gostaria de manter esse contato para troca de experiências.

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