Dossiê | A quarta onda do feminismo

Dossiê | A quarta onda do feminismo

 

Sobre o ano de 2016, é bastante provável que só a História venha a nos permitir saber o tamanho e a intensidade da devastação que as forças de direita estão promovendo no país. Enquanto a perspectiva histórica não nos redime das dificuldades de analisar o contemporâneo de modo mais agudo, talvez só nos reste olhar para aquilo que, apesar de todos os retrocessos – no campo social, político e institucional, para citar apenas os mais graves –, cresceu em gênero, número e grau. Poderia me referir amplamente aos diferentes movimentos de resistência que se insurgiram nas ruas e nas redes, mas quero ser mais específica. Quero afirmar o valor, a importância decisiva, o caráter insurgente dos feminismos que, desde a #primaveradasmulheres, em setembro de 2015, desde as manifestações de rua de 2013, desde a Marcha das Vadias, em 2011, vieram se consolidando como força política fundamental no cenário da resistência.

Essa edição especial reúne um conjunto de textos que, se não pode representar toda a força dos feminismos, tem a capacidade de ampliar a nossa compreensão sobre a força dos movimentos de mulheres. O primeiro artigo é de Magda Guadalupe dos Santos (PUC-MG) e tem a força de trazer a história das ondas feministas. A autora nos conduz não apenas pelo tempo, mas também pelos roteiros nos quais os feminismos se desenvolveram como um “projeto crítico” que, ao lutar contra a opressão às mulheres, acaba por reivindicar uma sociedade mais justa em diferentes aspectos. Estruturas patriarcais, capitalistas e machistas se sobrepõem, nos seus modos de autoritarismo, em camadas que tornam vulneráveis mulheres, mas não apenas. A cada marcador que se acrescenta, soma-se também mais um estrato de violência estatal, institucional, política.

De onde vem a importância do conceito de gênero, trabalhado no artigo de Maria Luiza Heilborn (UERJ)? Forjado em um certo momento do século 20, a fim de enfrentar as consequências da hierarquia social e econômica entre homens e mulheres, o conceito de gênero tem uma história que cresce com a segunda onda feminista e uma fortuna crítica que emerge a partir do final dos anos 1990, com a necessidade de ampliar as reivindicações políticas para além dos binarismos, como masculino/feminino, sexo/gênero. Era preciso desestabilizar os pares que nos configuravam sempre ao número dois. Se a segunda onda feminista foi marcada pela construção do conceito de gênero, como explica Heilborn, a terceira onda se pautou por questionar e tensionar o conceito até o limite de suas possibilidades de desconstrução, abrindo espaço para a configuração de outros gêneros, de outros sujeitos de direitos e de novos modos de fazer política.

Uma das estratégias dessa emergência foi dar novos significados a termos que pretendiam ser pejorativos. Foi assim que, em 2011, um grupo de mulheres em Toronto, Canadá, organizou a primeira Marcha das Vadias, como conta Carla Gomes (UFRJ) em seu artigo. Tudo começou quando, diante de uma série de estupros não solucionados nem contidos pela polícia, um inspetor sugeriu que, se não quisessem ser estupradas, as mulheres deveriam parar de se vestir como vadias. Dali em diante, as manifestações se espalharam como rastro de pólvora e, por onde passou, a Marcha das Vadias revigorou os feminismos. Diferentes reivindicações de diversas gerações de mulheres se encontraram nas ruas, recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e retomando palavras de ordem como “nosso corpo nos pertence” ou “meu corpo, minhas regras”, fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970.

O direito a ter um corpo não violável é um tema que mobiliza os feminismos negros, aqui apresentados pelo artigo de Djamila Ribeiro (Unifesp). Seu texto nos coloca diante do tema da interseccionalidade, passo fundamental para ir além dos discursos identitários. São as mulheres negras que, pontua Djamila, perturbam seriamente qualquer noção de “mulher” como categoria unitária. Perturbação necessária e potente dentro dos feminismos que, no caso brasileiro, vão começar a sentir o impacto político do movimento de mulheres negras a partir dos anos 1980, embora, como lembra a autora, desde os tempos da escravidão as mulheres negras já atuassem na reivindicação de direitos, na liderança dos quilombos, na luta cotidiana contra a opressão de raça, gênero e classe que até hoje infelizmente ainda se misturam.

Lutar contra o machismo pode ser ao mesmo tempo muito difícil ou muito fácil. Difícil, pelo seu caráter por vezes implícito e traiçoeiro, quando se apresenta para nós como forma natural de tratar as diferenças sexuais. Fácil se a cada vez pudermos denunciar que há machismo quando um homem se dirige a uma mulher de modo distinto do que faria se estivesse se dirigindo a outro homem. Aqui está, do meu ponto de vista, a maior contribuição das jovens desta nova onda feminista. Em um momento histórico no qual todas as nossas conquistas estão sob ameaça, é fundamental que a nova geração valorize os avanços históricos e lute para que estes não se percam. É nessa luta que esta edição especial se engaja, a fim de mostrar que dentro do que 2016 teve de mais assustador, ali mesmo onde o ano poderia ser dado como perdido, desponta a possibilidade de novas mudanças. É do encontro com o pior que arrancamos a nossa força da resistência.


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