Nossos corpos, nossos manifestos

Nossos corpos, nossos manifestos
O grupo de punk rock feminista russo Pussy Riot (Foto: Igor Mukhin/Divulgação)

 

Em 2006, a revista Veja publicou um número intitulado “O que sobrou do feminismo”, em que afirma que o movimento teria fracassado em acabar com as grandes desigualdades de gênero e, por isso, estaria em crise, se não morto. Quase dez anos depois, a revista Época lança o número “A primavera das mulheres”, em que descreve a “onda” de protestos feministas que “varreu” as ruas e a internet no ano passado no país. O que aconteceu? O feminismo morreu e ressuscitou? Como está o movimento hoje no Brasil?

Nenhum movimento social foi tantas vezes declarado morto como o feminismo. Desde a década de 1970 até hoje, narrativas de enterro do feminismo têm sido recorrentes nos meios de comunicação em várias partes do mundo (Hawkessworth, 2006). No Brasil, na última década, a mídia vem apontando causas de morte variadas e mesmo opostas. Enquanto para alguns a “crise” do movimento é explicada por seu suposto fracasso em alcançar os objetivos almejados, para outros, é o seu extraordinário sucesso que o tornaria agora dispensável. Também muitas feministas presumem que o legado de lutas das gerações dos anos 1970 e 1980 esteja se perdendo, uma vez que os/as jovens, ao crescerem em uma sociedade que ampliou as liberdades de escolha das mulheres, teriam perdido a noção da transformação histórica das relações de gênero provocadas pelas lutas feministas daquela geração. Condenado ao fracasso, ao sucesso ou ao esquecimento, o feminismo teria deixado de representar adequadamente os anseios das mulheres e perdido a legitimidade como arcabouço ideológico e prática política – um discurso que se reproduz há mais de quatro décadas.

Se o feminismo morreu tantas vezes, como explicar então as aparições públicas de mulheres que de tempos em tempos voltam para nos assombrar em protestos? É aí então que surgem as narrativas de ressuscitamento que, com olhos arregalados de surpresa, descrevem as manifestações feministas como eventos pontuais e súbitos, como surtos espontâneos que “varrem” as ruas em momentos críticos. A “primavera feminista” é descrita nos canais de comunicação como um “novo” movimento, que “explodiu” a partir da indignação de mulheres atomizadas – uma “onda” sem passado, e que provavelmente será declarada morta na próxima estação.

Feministas em toda parte

Tanto as narrativas de morte como as de ressuscitamento se baseiam em definições estreitas e anacrônicas do movimento. Nas décadas de 1970 e 1980, o incipiente feminismo brasileiro era caracterizado por coletivos auto-organizados de mulheres que, embora inseridas no campo mais amplo de resistência à ditadura, buscavam definir uma identidade própria. Na década de 1990, com a redemocratização, o movimento se institucionaliza e adentra partidos, governo e principalmente ONGs, que se tornam as principais articuladoras do feminismo no Brasil e na América Latina, com o objetivo de promover a “transversalidade” do gênero nas políticas locais. Ao longo da primeira década do novo milênio, a maioria dos países da América Latina desenvolve mecanismos institucionais para o avanço das mulheres dentro da burocracia estatal, com a criação de ministérios, conselhos e outras figuras. Com base nesse passado recente, muitos analistas (e ativistas) do movimento feminista se acostumaram a identificá-lo com uma forma muito específica de atores – organizações bem delimitadas – realizando uma gama restrita de atividades, como a promoção de políticas públicas, e com visibilidade pública em nível nacional. Quando não detectam esses repertórios amplamente conhecidos de ação feminista, declaram a morte do movimento; quando vislumbram alguma movimentação pública, anunciam sua ressurreição.

Entretanto, se compreendermos o feminismo e os movimentos sociais em geral como configurações históricas mutáveis, seu caráter processual e heterogêneo emerge. Considero muito elucidativa a formulação epistemológica de Sonia Alvarez, para quem o movimento feminista é um “campo discursivo de ação”, constituído por uma vasta gama de atores coletivos e individuais alocados em diferentes lugares sociais, compartilhando e disputando visões de mundo. De acordo com o contexto histórico, e sua particular configuração de oportunidades, constrangimentos e forças políticas, certos atores e formas de ação ganham maior projeção que outros no campo. Produto de disputas internas e externas, o campo feminista está sempre em fluxo e nunca foi homogêneo.

Se no passado recente a atuação mais visível das feministas se deu nas organizações e junto ao Estado/políticas, isso não significa que essas eram as únicas expressões do movimento, mas apenas as mais dominantes em uma dada conjuntura. Do mesmo modo, se atualmente ONGs e mecanismos estatais parecem não ter o mesmo protagonismo de outrora, isso não deve ser pretexto para “matar” o feminismo mais uma vez. Muito pelo contrário, o campo feminista vem se expandindo para outros espaços. Percebendo tendência semelhante nos Estados Unidos, Jo Reger argumenta que o feminismo está ao mesmo tempo “em toda parte” e “em lugar nenhum”: as novas gerações de ativistas vivem num contexto em que a igualdade de gênero é tomada como dada, mas os rastros da transformação histórica das relações de gênero não estão aparentes, dada a ausência de grandes lideranças e organizações nacionais.

Embora a noção de “ondas” seja muito utilizada pela literatura feminista para caracterizar sucessivas configurações do campo, considero, junto com Claire Hemmings, que seu uso torna visível justamente as expressões dominantes, enquanto exclui muitas outras e obscurece as disputas internas entre elas por legitimidade. Assim, enquanto alguns anunciam a “quarta” onda, ou ainda “o novo” feminismo, prefiro seguir as sugestões das autoras e pensar o momento atual como de difusão e diversificação de campos feministas. Neste cenário, as novas gerações passam por um processo gradual de se tornarem feministas a partir das relações de diferença e semelhança com as gerações mais velhas e entre os diversos grupos, e das oportunidades colocadas pelo contexto local.

Campos e redes feministas

Bem antes da última primavera já era possível notar sinais de expansão e diversificação de campos feministas no Brasil. Por exemplo, a trajetória de participação de feministas em organizações sindicais, que começa de forma marginal na década de 1980, se consolida nos últimos anos com a proliferação de secretarias, departamentos e coletivos de mulheres, pressionando pela igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e no sindicalismo. Entre os sindicatos rurais, também é notável a difusão do ideário feminista. Em sua quinta edição em 2015, a Marcha das Margaridas, organizada por entidades sindicais da agricultura, reuniu em Brasília mais de cem mil trabalhadoras. Embora o caráter feminista da Marcha seja objeto de disputa, dada a centralidade das questões trabalhistas em sua agenda, um de seus principais objetivos políticos é “fortalecer e ampliar a organização, mobilização e formação sindical e feminista das mulheres trabalhadoras rurais”.

Dentro dos movimentos de esquerda que mais mobilizam a juventude, como o Levante Popular, as Brigadas Populares, o movimento estudantil e os grupos anarquistas, vêm se consolidando espaços feministas auto-organizados, em que mulheres buscam incrementar a participação feminina nas instâncias decisórias, bem como incluir pautas de gênero nos programas políticos desses espaços. Importante mencionar também a Marcha Mundial de Mulheres, organização que vem atuando como importante articuladora do chamado “feminismo popular”, ao promover núcleos feministas dentro de sindicatos, partidos e movimentos populares. As relações entre feministas alocadas nesses espaços mistos e as chamadas feministas “autônomas” sempre foram e continuam marcadas por disputas que, grosso modo, giram em torno da ênfase dada às questões de classe ou gênero/sexualidade.

Os grupos autônomos também se multiplicam em toda parte. Dos incontáveis coletivos de mulheres negras aos grupos de lésbicas e bissexuais; das mulheres “periféricas” e “faveladas” aos coletivos de mães e de estudantes universitárias e secundaristas; dos grupos de jovens grafiteiras, MC’s, funkeiras e skatistas às mulheres do teatro popular ligados aos movimentos de esquerda; das poetas, blogueiras e atrizes às cooperativas de mulheres e pequenas empresárias, e até blocos de carnaval exclusivamente femininos. Esta miríade de atores se organiza e se expressa tanto nos espaços físicos, como também na internet, onde a polifonia de blogs e portais de notícias, canais no Youtube e páginas do Facebook é quase ensurdecedora. Mais do que uma ferramenta de organização, a internet é uma extensão do campo feminista.

Meu esforço de enumerar aqui várias expressões recentes do feminismo brasileiro não faz jus à diversidade e complexidade do campo. São inúmeros os espaços onde mulheres elaboram suas atividades em torno de discursos feministas, criando redes cada vez mais extensas de atores institucionalizados ou não, articulados em maior ou menor grau entre si. Se no início dos anos 1980 o campo feminista era bastante circunscrito, hoje ele permeia outros movimentos sociais, a sociedade civil e as instituições políticas, além de cenas culturais e artísticas e o mercado.

Corpos-bandeira

Pelo que se organizam todas essas feministas? E como expressam suas demandas? Obviamente, qualquer tentativa de resposta breve será simplista e homogeneizante. Assim, gostaria de me concentrar em um aspecto que vem ganhando relevância recentemente: o uso político do corpo.

No movimento feminista brasileiro atual, o corpo está presente de várias formas. Há muito que as demandas por direito ao aborto, saúde da mulher e “parto humanizado” têm sido enquadradas como uma demanda por “autonomia das mulheres sobre seus corpos”, além de uma questão de “saúde pública”. Mas também fora do eixo dos direitos sexuais e reprodutivos o corpo tem sido uma chave importante de organização dos discursos. Na última ação internacional da Marcha Mundial das Mulheres em 2015, que teve como eixo “o direito ao nosso corpo, trabalho e território”, as ativistas dos meios rurais definiram o agronegócio não apenas como uma violação aos territórios e comunidades, mas também aos corpos das mulheres. Entre as feministas negras, a construção de identidades políticas passa muitas vezes pela incorporação de certos atributos de “negritude”, em especial a transição dos cabelos quimicamente tratados para cabelos “naturais”. Além disso, os corpos são cada vez mais explicitamente utilizados como recursos em protestos feministas. Desnudados ou encobertos, paramentados e pintados, movimentados ou imobilizados, performando dor, potência, transgressão ou luto, os corpos são usados por ativistas para comunicar mensagens e produzir efeitos desejados. O corpo é, assim, um articulador central dos repertórios das ativistas; é um “corpo-bandeira”.

As feministas, portanto, politizam o corpo e incorporam a política. E o fazem de maneiras muito diferentes entre si. Na Marcha das Vadias, por exemplo, as participantes usam sutiãs ou exibem seios nus para questionar os discursos que legitimam a violência contra as mulheres e para expressar projetos de “autonomia” e “liberdade sexual”. Este protesto começou no Canadá, em 2011, em reação à fala de um policial que declarou que “as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias [sluts] para não serem vitimizadas”. Na Marcha das Margaridas, usando chapéus e flores, as ativistas colocam o corpo trabalhador, ao mesmo tempo forte e sensível, no centro das suas narrativas. Na Marcha das Mulheres Negras, em 2015, elas adornaram seus corpos com roupas e turbantes étnicos que visavam conectar cada pessoa a uma “herança” afro-brasileira comum. As diferentes performances corporais frequentemente expressam visões conflitantes acerca de como raça, gênero, sexualidade, idade e classe devem ser mobilizados nas agendas políticas. O corpo é, assim, um lugar discursivo onde feministas depositam uma multiplicidade de significados e projetos, constituindo uma gramática compartilhada, ainda que disputada.

Se inserindo em cada vez mais espaços, com variadas agendas, modos de organização interna e repertórios, construídos por meio de articulações e disputas, alianças e conflitos, o movimento feminista se mostra muito, muito vivo.


CARLA DE CASTRO GOMES é Bacharel em Ciências Sociais e mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro


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