Arcas de Babel: Prisca Augustoni traduz Mariella Mehr
Prisca Augustoni: 'É na poesia que Mariella Mehr conseguiu resgatar a felicidade no ato de escrever' (Fotos: Divulgação)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Nesta edição, a poeta, tradutora e professora Prisca Augustoni nos traz do alemão poemas inéditos de Mariella Mehr, uma das vozes mais importantes da literatura suíça contemporânea, que ela também apresenta.
Prisca Agustoni é professora no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Possui graduação em Letras e Filosofia, mestrado em Gender Studies pela Universidade de Genebra, na Suíça, e doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa na PUC-MG. Realizou pesquisa pós-doutoral na área de literatura migrante feminina na UFMG e posteriormente na área de poesia contemporânea na Universidade da Suíça italiana.
Na UFJF integra o programa de Pós-Graduação “Estudos Literários” e trabalha na linha de pesquisa “Tradução e Escrita Criativa”. Traduziu poemas de inúmeros poetas italianos contemporâneos, mais recentemente para a sessão “vagalume” da revista Escamandro, assim como para várias revistas impressas. Traduz também poesia brasileira e hispano-americana em italiano, colaborando com revistas e blogs na Suíça e na Itália. É colaboradora do caderno de cultura do jornal Il Sole 24 ore, de Milão.
Em 2018 traduziu para as Edições Macondo uma antologia de poemas do poeta suíço Fabio Pusterla, e no momento está traduzindo em italiano um romance de Beatriz Bracher. Como poeta, escreve e se auto traduz principalmente em italiano, francês e português. Sua poesia já foi traduzida em inglês, alemão, romeno, espanhol, macedônio, sueco, croata e catalão. Suas publicações mais recentes são L’ora zero (Falloppio, Lietocolle-Pordenonelegge, 2020) e O mundo mutilado (São Paulo, Quelônio, 2020).
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Era maio de 2015. Domingo à tarde. A principal sala de leitura do Festival de Solothurn (cidade suíça que hospeda há 40 anos um dos festivais literários nacionais mais importantes e que reúne vozes das 4 regiões linguísticas do país) estava repleta, mergulhada num silêncio denso, daqueles que te fazem compreender de imediato que aquele é um momento histórico. Na pequena mesa ao centro da sala, um pouco realçada, estava sentada Mariella Mehr, pequena e hierática, tendo ao seu lado a tradutora e amiga Anna Ruchat.
Aquela foi uma das últimas aparições públicas de Mariella Mehr para uma leitura antes de se recolher em Zurique, onde reside atualmente. O encontro em Solothurn foi memorável, comovente. A beleza de sua obra e a gravidade de sua trajetória se misturaram numa apresentação de rara intensidade e potência literária.
Traduzir Mariella Mehr para os muitos leitores amigos de língua portuguesa, dessa língua-casa que me acolheu e me acolhe, me enche de um sentimento misturado de responsabilidade, gratidão e satisfação por estar fazendo algo que sei ser necessário: apresentar uma das vozes mais potentes da literatura suíça contemporânea e, ao mesmo tempo, imaginar que ela possa encontrar uma escuta atenta numa sociedade como a brasileira, tão atravessada por trajetórias semelhantes à sua.
A obra literária de Mariella Mehr, poeta e prosadora nascida em Zurique (Suíça) em 1947, é um grito lancinante de denúncia e de resgate de todos aqueles que, como ela, ciganos nômades pertencentes à etnia Jenisch, foram perseguidos pelo programa de limpeza racial efetivado pelo governo suíço até o começo da década de oitenta. Foram entre 600 e 2000 crianças ciganas que de 1926 até 1973 foram subtraídas às próprias mães (que eram esterilizadas) e levadas para institutos, onde recebiam outros nomes para evitar que as famílias pudessem encontrá-las – e depois atribuídas a famílias de camponeses. Mariella Mehr foi vítima dessa violência quando criança e sucessivamente como mãe, quando aos 18 anos teve o seu próprio filho retirado.
Autora de obras de teatro, poesia e romance – em particular a trilogia da violência (romances em que aborda de forma em parte autobiográfica a experiência dos abusos do Estado sobre as crianças e as mulheres) – é a poesia a que aparece primeiro no seu percurso literário, inicialmente sob a forma de uma prosa fragmentária, soluçante, cortante, entre o lírico e o introspectivo.
Como declarou em entrevistas, a narrativa para ela representa “o cansaço”, na constante tentativa de encenar através da escrita as ambiguidades e as contradições humanas, para evitar que suas personagens recaiam no fácil estereótipo da vítima ou do algoz. É na poesia que Mariella Mehr conseguiu resgatar a felicidade no ato de escrever, e com essa felicidade momentânea, conseguiu também encontrar um sentido para seguir acreditando no poder de denúncia e de cura da palavra. A partir de 1975 começa a se dedicar à literatura e ao jornalismo, e será como jornalista que ela denuncia as violências perpetradas pela iniciativa Kinder der Landstrasse – capitaneada pela organização de Ajuda à Infância em Dificuldade, Pro-Juventute – e desenterrar esse capítulo assombroso da história recente do país.
Após a estreia em 1981 com o romance (ou prosa poética) Steinzeit (“A idade da pedra”), publicou romances, coletâneas de poemas e obras de teatro, principalmente durante o longo período em que morou na Toscana, na Itália. Ganhou os principais prêmios literários suíços e em 1998 a Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia da Universidade de Basileia lhe atribuiu a Laurea Honoris Causa pelo inesgotável empenho em defesa dos direitos das minorias e dos grupos segregados. Sua obra, escrita em alemão, ganhou traduções em italiano, francês e finlandês.
As cicatrizes das muitas violências sofridas ao longo da vida – graves problemas de vista surgidos após os eletrochoques, esterilidade, crises profundas de alcoolismo, repetidas internações em centros de cura, prisão – marcam sua literatura como uma pele sensível do mundo, mas de alguma maneira são o motor que lhe permite erguer uma obra (e se reerguer constantemente após as inúmeras quedas) visivelmente atravessada pela dor e pela raiva, assim como pela tentativa de encontrar um “chão”, uma pátria simbólica, literária, amorosa.
Essa será para Mariella Mehr uma busca infinita e labiríntica, destinada a nunca encontrar uma saída apaziguadora: sua poesia dá voz a esse sujeito ferido que se apega às frágeis “raízes de vento ou de ar” encontradas ao longo do caminho, expondo o desmembramento do corpo (ossos, sangue, crânio, boca, cabelo), mas que não se rende e é justamente nos versos que ele se redime demonstrando uma profunda energia criativa, vital.
Como explica a maior expert da obra de Mehr, Anna Ruchat, no prefácio à antologia que ela cuidou para a Itália, o encontro com a obra de Paul Celan, Antonin Artaud, Aglaja Veteranyi e Nelly Sachs – todos eles poetas em exílio entre a terra perdida e a loucura – a ajudará a criar uma obra hoje reconhecida como fundamental na literatura de expressão alemã, e que se serve de uma língua jamais previsível, mas deslizante, errante, constituída pelo estranhamento como forma radical de pertencimento à própria condição de nômade.
A língua poética de Mariella avança por associações inesperadas, surpreendentes, criando ambiências de magia cruel ou de exploração das regiões interiores onde a dor escava grutas e pausas de gelo, se concentrando nessa realidade submersa que é terra dos errantes, dos que não têm raízes.
Mariella Mehr é inédita em português, esses cinco poemas foram retirados da antologia bilíngue alemão-italiano organizada por Anna Ruchat, Ognuno incatenato alla sua ora, Turim, Einaudi, 2014. As traduções aqui apresentadas fazem parte de uma antologia que estou preparando, em constante diálogo com a tradutora e responsável pela obra de Mariella Mehr, Anna Ruchat, a quem agradeço – Prisca Augustoni.
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1.
muros tombam
morrem
com risos roucos
estou lutando
ainda, de azul vestida
um cérebro
crucifixo desenha
precipícios e forcas
às costas da noite
apoio-me cansada
com a raiva no punho
mauern stürzen
sterben
hohmlachend
noch kämpfe ich
im blauen gewand
ein gekreuzigtes
hirn zeichnet
fratzen und schlünde
mit zornigen fäusten
am rücken der nacht
lehne ich müde
2.
A respiração de pedra
congela até o silêncio
da terra de ninguém.
Sem uma sombra de pensamento
sequer, imutável
vigia e bisbilhota.
No entanto,
um pássaro poderia
tímido aprender a cantar.
Steinatem,
er gefriert zur
Niemandslandstille.
Kein Gedankenschatten,
unverrückbar
hält hier Wache und lauscht.
Obwohl,
es könnte ein Vogel
schüchtern das Singen lernen.
3.
por infinitas
terras negras
caçada
feita animal
selvagem
no ventre
da noite
risos
puídos
na forca
do tempo
a dor implora
compaixão
durch endloses
schwarzland gejagt
wie ein wilderndes
tier
im bauch
der nacht
ein ausgefranstes
lachen
am galgen
der zeit
bettelt schmerz
um mitleid
4.
faz tempo
há em mim uma palavra fronteiriça
dize-la seria chorar.
Encalhada, árida,
me tornei
outro país,
onde não sobraram lágrimas,
o luto mudo,
pálido, impróprio
para as noites negras.
tão rapidamente perdida no barulho,
tão pouco comedida para poder viver,
tão receosa para superar as provas.
Agora que me perdi até da bondade
espero em vão no campo,
quem sabe, os tempos mudam
como as pessoas,
é possível que um dia
o mar me transforme,
e se torne minha última pátria.
es grenzt ein Wort an mich
seit langem,
es auszusprechen wär geweint.
Versandet, karg,
ein anderes Land
bin ich geworden,
dem kleine Träne blieb,
die Trauer stumm,
blass, untaglich für
die schwarzen Nächte.
Zu rasch umgekommen im Gewühl,
zu leicht bemessen um zu leben,
zu ängstlich, Proben zu bestehen.
Nun auch der Güte abhanden
hoffe ich vergeblich auf Land,
wer weiss, die Zeiten ändern
sich wie Menschen,
mag sein, dass mich dereinst
das Meer verwandelt,
und mir zur letzten Heimat wird.
5.
Estamos separados diante do mundo,
cada um acorrentado à sua hora,
nossos cães roçam um ontem
quantas vezes e sem consequências?
Névoa encobre aquele lugar sem margem
névoa se deita em meus ombros
se faz pesada, mais pesada, vira pedra.
Há uma única palavra bisbilhotada
que desejo arrancar e guardar,
para que permaneça uma ferida aberta,
meu consolo, um caminho no amanhã.
Bastava a esperança? Então esperem comigo,
vocês todos, os sucumbentes.
Espere você também,
meu coração,
uma última vez.
Wir stehen getrennt zur Welt,
jeder an seine Stunde gekettet,
unsere Hünde berühren ein Gestern,
zum wievielten Mal und ohne Folge?
Nebel verhüllt das entuferte Dort
Nebel legt sich auf meine Schulter,
wird schwerer, schwerer, wird zu Gestein.
Nur ein einziges erlauschtes Wort
Möcht ich heraushaun und halten,
es bliebe eine klaffende Wunde zurück,
mir zum Trost, ein Weg in den Morgen.
Reichte Hoffnung? Dann hofft mit mir,
alle ihr Untergehenden.
Hoffe du auch,
mein Herz,
ein letztes Mal.