Um prédio em chamas no centro da nossa vida

Um prédio em chamas no centro da nossa vida
Destroços do edifício que desabou no Largo do Paissandu, em São Paulo (Rovena Rosa/ Agencia Brasil)

 

Um prédio cai no centro de São Paulo. As primeiras horas do noticiário, ainda na madrugada do 1º de maio, são como de costume no jornalismo televisivo: afirmações vagas, algumas confirmações, inúmeros desmentidos. Muita pressa para dizer quais são as causas e consequências, para apontar culpados e soluções, mas o dia vai acordando e chegam as autoridades dando os termos gerais da narrativa que a grande imprensa vai martelar nos dias seguintes: as famílias que viviam naquelas péssimas condições foram vítimas dos grupos que promovem ocupações irregulares.

Um prédio cai e tudo vem muito a calhar: não era um 1º de Maio qualquer. Era um 1º de Maio em que os trabalhadores, mais do que comemorar a data histórica, protestaram contra a prisão injusta do seu principal líder político. Um 1º de Maio em que uma das principais vozes da esquerda, cada vez ganhando mais peso no cenário eleitoral, vem justamente da luta por moradia. Daí para apagar do noticiário toda a movimentação em Curitiba contra a prisão de Lula e atribuir a Guilherme Boulos e ao MTST o que foi feito por outras pessoas, claro, foi um pulinho.

Há sempre um governador disposto a dizer que era uma “tragédia anunciada”. Há sempre um prefeito disposto a transferir responsabilidades. Há sempre um ex-prefeito disposto a dizer que os ocupantes do prédio eram uma facção criminosa. E, por mais rápido que tudo isso seja desmentido, o estrago à imagem dos coletivos de luta por moradia já está feito. Para que esse estrago seja maior ainda, desde então, com pequenas variações, o noticiário das grandes empresas de comunicação tem sido quase unânime ao falar do assunto: há aproveitadores coordenando as “invasões” a prédios públicos e privados para lucrar com a miséria das pessoas. Já não importa mais quem morreu, já não importa mais quem escapou por pouco, já não importa saber quais as autoridades que devem responder pela tragédia. O principal assunto passa a ser a cobrança de alguma espécie de aluguel onde nada parecido deveria existir.

Há, de fato, algo a noticiar aí, mas jamais o destaque dado aos “aproveitadores” deveria ser maior do que à grande causa de tragédias como a do Edifício Wilton: a forma totalmente injusta e socialmente predatória como está distribuída (ou melhor: concentrada) a propriedade dos imóveis nas grandes cidades brasileiras. Nem mesmo a queda cinematográfica de um prédio imenso em chamas entre outros prédios imensos é capaz de chamar nossa atenção para o que, de fato, está em questão ali?

Poucos dias depois da tragédia do Largo do Paissandu circulava pelas redes sociais a propaganda de um novo empreendimento naquela região, porque, na ilustração publicitária, o Edifício Wilton havia sido “apagado digitalmente”. Ainda que não se queira (ou possa) tirar conclusões disso tudo – do novo empreendimento que “apaga” um prédio que cairá dias depois ou do discurso das autoridades e da imprensa que, logo após o desabamento, atacam quando deveriam informar –, é inevitável perceber que aquele prédio com aquelas pessoas era indesejado pelos donos da cidade.

Sim, donos da cidade. Não podemos falar na dificuldade de dar sentido e alguma efetividade ao “direito à moradia”, à “função social da propriedade”, ao “direito à cidade”, sem lembrar contra quem esses direitos se levantam. Nas palavras de David Harvey, eles são “uma pequena elite política e econômica com condições de moldar a cidade cada vez mais segundo suas necessidades particulares e seus mais profundos desejos” (Cidades rebeldes, 2014). Moldar a cidade: é uma ótima e terrível imagem. A cidade é uma espécie de massa totalmente sensível às forças concentradas nas mãos dessa pequena elite e, por outro lado, indócil quanto às necessidades da imensa parcela da população que, se quiser sobreviver, deve se deixar moldar também.

No entanto, por maior que seja a capacidade de adaptação da população pobre das cidades ricas (que é “sem teto” nos casos extremos, mas que é sempre “sem terra”, porque não pode considerar que o lugar que ocupa na cidade, mesmo nas periferias, será sempre seu), normalmente não consegue se encaixar nos moldes novos da especulação imobiliária. Ao moldar a cidade, seus “donos” se deparam com elementos indesejados no caminho do lucro e não hesitam em apagá-los digitalmente da paisagem. Quando preciso (e sempre é preciso), não hesitam em apagá-los efetivamente, fazendo uso de suas boas relações com o poder público e do que mais for necessário.

O empenho da grande imprensa, logo após a tragédia, em usá-la para atacar quem luta por moradia é, sem dúvida, parte desse pacote. É um apoio aos donos da cidade e aos moldes novos que o centro de São Paulo deve ganhar. E, desta vez, tem uma perversão maior: é também um ataque eleitoral à esquerda, em que se concentram os esforços para repensar a cidade, a moradia, o transporte público etc. no interesse da maioria da população, não no daqueles que nisso tudo veem apenas mercadorias.

É por isso que nem mesmo uma tragédia com as dimensões dessa ocorrida no 1º de Maio consegue colocar na pauta, com todo o destaque, as questões que deveriam ser centrais para todos nós: por que há tantas famílias sem moradia, expostas a tragédias, se há 7 milhões (sim, 7 milhões, segundo o PNAD/IBGE) de imóveis urbanos e rurais desocupados no país? E a quem interessa que nosso território seja assim moldável a novos empreendimentos que apagam tudo, inclusive pessoas, para redefinir nosso modo de existir, no campo e na cidade, ao gosto dos investidores?

Não se trata de algo típico de São Paulo, nem mesmo apenas do Brasil. Trata-se, isso sim, de “processos globais e ao mesmo tempo profundamente locais de disputa pelos territórios”, a que Raquel Rolnik chamou de “guerra dos lugares” (título do livro de 2015 em que reflete sobre sua experiência, em diversas partes do mundo, como relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada), o que cria um nível ainda mais alto de dificuldade para lutar contra essas injustiças.

No último fim de semana em São Paulo ocorreu a III Feira Nacional da Reforma Agrária. Era inevitável andar por entre aquelas barracas lembrando que a luta dos sem-terra é irmã da luta dos sem-teto. Era impossível deixar de ver, na felicidade daqueles pequenos agricultores ao exibir seus produtos, um orgulho mais amplo, que passa pela natureza política do seu gesto, pelo sentido profundo que produzir e viver de maneira mais justa tem para aquelas famílias.

Em razão das lutas pela terra, os agricultores que vieram ao Parque da Água Branca são hoje pessoas que vivem melhor, comem melhor, trabalham melhor, têm produtos melhores para oferecer. Por outro lado, poucos dias depois de ser acordado pelas imagens do Largo do Paissandu, era difícil não lembrar do prédio queimando e desabando como uma espécie de aviso terrível de que a forma como temos vivido é a negação de tudo aquilo. É o pior que pudemos fazer.

É daí que vem o dever cotidiano de amarrar todas essas pontas, se levamos a sério a tarefa de repensar nossas formas de viver, trabalhar, se alimentar, fazer cultura, política, tudo. A grande indústria alimentícia está para a produção sustentável de alimentos assim como os donos do território estão para o direito à moradia digna para todos. Não raro, são as mesmas pessoas que decidem como vamos morar e o que vamos comer! E outros tantos paralelos assim podem ser feitos entre as formas que o capital assume para se reproduzir e a contraparte que nos é imposta para sobreviver.

Em todos os casos, os discursos que mais ouvimos favorecem sempre o mesmo lado – o de lá, o do capital. E isso está longe de ser por acaso. No espaço das nossas atuações, temos que lembrar sempre que as lutas do campo e da cidade todas se fundem rumo a uma forma de vida mais digna e que, se alguém tiver que moldar o território, que sejam os trabalhadores e todos aqueles que entendem que uma sociedade não pode ser boa para ninguém se alguém correr o risco de ser apagado quando não combinar com a paisagem – concreta ou simbolicamente.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

(2) Comentários

  1. Na verdade, grande parte da elite empresarial, política e de outras áreas, é igual a abutres, chegam até a torcer pela desgraça dos outros para que seus negócios dêm certo. Isso faz com que aumente muito mais desigualdades e exclusões. Infelizmente os lucros, para tais exploradores, são mais importantes que à vida, seja ela, humana ou da natureza como um todo.

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