O monstro Behemoth na política brasileira

O monstro Behemoth na política brasileira
Colagem sobre gravura de Behemoth de William Blake (Arte Andreia Freire / Reprodução)

 

Ao analisar o período compreendido entre os anos de 1933 e 1944, Franz Neumann acabou por comparar o Terceiro Reich ao monstro Behemoth, figura da mitologia judaica e dos escritos de Thomas Hobbes: um ser monstruoso, caótico, sem limites e amorfo. Em linhas gerais, a tese defendida por Neumann era a de que o regime de Hitler expressava uma ideologia consistente, mas não possuía uma estrutura coerente. Isso porque os diferentes grupos de poder (o partido nazista, os agentes conservadores entranhados nos poderes do Estado, as forças armadas e as grandes corporações econômicas) que, unidos, permitiram a ascensão nazista, apresentavam fortes contradições, em especial porque cada um desses grupos de poder não deixou de conspirar contra os demais em favor de seus próprios interesses – já que pretendiam crescer sem ceder espaço, poder ou status.

Como o leitor pode perceber, nada muito diferente da estrutura e das práticas observadas no Estado brasileiro desde a queda do governo Dilma em 2016. Se em Portugal se fala em uma “geringonça” de esquerda, uma reunião inédita de forças progressistas até então em conflito dentro do campo progressista – e que vêm alcançando sucesso econômico na contramão das políticas de austeridade em voga na maioria da Europa -, no Brasil surgiu um “monstro” de direita. Aqui, diversos agentes de diferentes orientações, condicionados pela ideologia neoliberal, se uniram para derrubar uma presidenta eleita democraticamente. Mas esse “monstro”, que reúne partes tão diferentes, não consegue apresentar uma estrutura estável, um projeto político coerente ou parir um candidato competitivo para as próximas eleições presidenciais (o que faz aumentar as apostas de que as eleições podem não ocorrer).

A aproximação entre o poder político e o poder econômico, o desaparecimento dos limites ao exercício do poder (em especial, o afastamento/relativização dos direitos e garantias fundamentais), a atuação política do poder Judiciário, o crescimento do pensamento autoritário, as tentativas de controle ideológico de professores e funcionários públicos, o desmantelamento da rede de proteção trabalhista, o controle e a manipulação da informação pelos meios de comunicação de massa; a divulgação de notícias falsas e a demonização dos inimigos políticos, a destruição de determinados setores da economia nacional e a invasão de corporações internacionais, o crescimento do lucro dos bancos em meio à crise, o desaparecimento dos obstáculos ao lucro das grandes empresas e à circulação do capital financeiro; o desmantelamento dos instrumentos para uma política econômica soberana, a distribuição de isenções tributárias para grandes empresas, o congelamento dos gastos sociais, a substituição da política pela religião, a transferência para empresas privadas do patrimônio público, a intervenção militar na segurança pública; dentre outros fenômenos expressam, não uma estrutura coerente, mas a tentativa de atender aos diversos interesses das partes que compõem o Behemoth brasileiro.

Tudo é feito de forma apressada, porque a rapidez é fundamental para impedir a organização necessária à resistência das forças democráticas. Reações descoordenadas (mas, até o momento, eficazes) dos detentores do poder econômico, que voltaram a exercer diretamente também o poder político, às medidas que reduziram de maneira tímida e insuficiente a desigualdade no Brasil. Vale dizer: essas políticas de redução da desigualdade, que agora passaram a ser objeto de ataques, conviveram com políticas de conciliação de classe, tais como a nomeação de ministros nos tribunais superiores ligados ao establishment conservador, e o pacto com as instituições bancárias que continuaram a condicionar (na verdade, determinar) as diretrizes do Banco Central, as metas de inflação e as taxas de juros (pacto que se manteve, e não impediu avanços sociais nas brechas da estrutura do poder econômico, enquanto durou o boom das commodities).

Desesperador? Por um lado sim. Mas na ausência de uma estrutura coerente, os interesses antagônicos e as contradições que envolvem os grupos de poder, uma vez compreendidos, revelam a possibilidade de superação, resistência e reação à ofensiva antidemocrática. Otimismo? Talvez. Mas, pense-se nos recentes ataques dos meios de comunicação de massa contra membros do Judiciário, que até bem pouco tempo eram tratados como símbolos da “luta contra a corrupção”. A construção do “messianismo jurídico” – percebida como uma ameaça por grupos mais preocupados com a ampliação dos lucros a qualquer custo -, passou a ser criticada, e a popularidade dos “novos heróis” despencou (o auxílio-moradia que os juízes e procuradores receberam durante toda a Operação Lava-Jato só se tornou um problema a partir da conspiração por mais poder dos antigos aliados, incentivadores do “ativismo jurídico” e da correlata demonização da política).

A palavra “corrupção”, um significante vazio para ser utilizado na construção de um imaginário contrários aos inimigos comuns, passou também a ser manejada contra os antigos aliados. Na luta por maiores lucros e status, quantos menos sobreviverem melhor. Momentos de crise, aliás, são ótimos para aumentar os lucros, concentrar poder e se livrar de aliados inconvenientes (isso explica a “crise permanente” a que estamos submetidos e a falta de vontade política de solucioná-la).

A briga por poder e status não vai acabar. Os interesses antagônicos no interior do Behemoth brasileiro são muitos e são evidentes. Como conciliar interesses nacionalistas de parcela das forças armadas (que foram chamadas para conter os “indesejáveis” às lentes dos ideólogos neoliberais) com os desejos das grandes corporações internacionais? Como frear a onda conservadora e os discursos de ódio que não mais interessam à parcela “civilizada” dos meios de comunicação de massa? Como compatibilizar os interesses dos empresários produtivos com os da burguesia bancária? Como reduzir a carga de impostos, se há a necessidade de um Estado forte tanto para conter os pobres e os inimigos políticos do projeto de acumulação ilimitada neoliberal quanto para resgatar as instituições bancárias das crises que elas mesmas geram ao emprestar dinheiro que não possuem e que sabem (ou deveriam saber) que não poderá ser devolvido?

Não há dúvida: o Behemoth brasileiro irá desaparecer. Há um limite para a propaganda e a violência que foram os instrumentos até o momento utilizados para manter essa estrutura disforme. A propaganda e a violência não são capazes de melhorar as condições políticas e sociais, ao contrário, elas geram mais violência, ressentimento e ódio. A propaganda dos feitos do Behemoth brasileiro, que em concreto só retirou direitos da grande maioria da população, só é possível se conectada ao abandono dos valores democráticos (o que se tenta fazer através da midiática “intervenção militar”). Em relação ao abandono total dos valores democráticos, também não há unanimidade. No Behemoth brasileiro ainda há quem prefira o simulacro de democracia ao autoritarismo explícito.

A própria aliança entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo apresenta limites evidentes: os atores sociais neoconservadores procuram compensar os efeitos sociais perversos típicos do projeto neoliberal com uma retórica moralizante e discriminadora somada à defesa de práticas autoritárias e repressivas adequadas à tradição brasileira, porém o poder de enganar a população, vendendo a imagem de que o “mercado” e os lucros absurdos das instituições financeiras são uma realidade natural e compatível com a nostalgia de uma sociedade estável e “pura”, não dura para sempre. Tem-se, pois, mais um campo de disputa no interior do monstro.

O nosso Behemoth irá se extinguir. A questão, portanto, é saber se junto com ele desaparecerá também o Estado brasileiro (laico, soberano e com aparência democrática), ou se as forças políticas que resistem ao “monstro” serão capazes de construir uma alternativa (tanto no plano narrativo quanto das práticas concretas) que permita ressignificar o Estado (com uma nova separação entre o poder político e o poder econômico, a imposição de limites democráticos ao poder) e a economia (que deve voltar a ser a gestão da casa comum e não o local de defesa dos interesses dos super-ricos).


RUBENS CASARA é doutor em Direito, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e membro da Associação Juízes para a Democracia

(5) Comentários

  1. ótimo texto, esclarecedor e dá a dimensão assustadora do problema em que estamos inseridos.

  2. Artigo brilhante, pelos argumentos consistentes e clareza na exposição. E ainda melhor, por trazer uma passagem de luz para dias que ainda virão.

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