O feminismo decolonial

O feminismo decolonial
Obra da série Geometria Brasileira, de Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)

 

O feminismo decolonial surge no bojo da discussão trazida pelo feminismo negro estadunidense a respeito da invisibilidade das demandas das mulheres negras na luta pela igualdade de direitos. Ignoradas como representantes das mulheres, por causa da predominância do feminismo liberal branco, e ignoradas como representantes das pessoas negras, pela predominância do ativismo negro masculino, as feministas negras cunharam o termo interseccionalidade para destacar a especificidade da dupla opressão à qual estão submetidas: a racial e a de gênero.

Além disso, as “mulheres de cor” (women of colour), isto é, latinas, asiáticas e indígenas que vivem nos Estados Unidos, sofrem também da intersecção da dupla opressão – racial e de gênero –, mas a opressão racial que sofrem tem um caráter étnico-racial; seus corpos racializados representam o pertencimento a uma cultura periférica, subdesenvolvida, atrasada. Assim como as mulheres negras eram solidárias aos homens negros, pois compartilhavam com eles a experiência do racismo estrutural, as mulheres latinas compartilhavam com os homens latinos a pouca valorização das culturas não europeias.

Negras, latinas, indígenas, asiáticas criticam o feminismo branco da segunda onda que se arvorava a falar em nome de todas as mulheres, ignorando os diversos matizes (raça, etnia, orientação sexual) da opressão de gênero. No final da década de 1990, intelectuais latino-americanos que lecionavam nos Estados Unidos criaram o grupo Modernidade/Colonialidade, que reivindicava a tese segundo a qual a modernidade europeia surgiu graças à ação colonial nas Américas.

Para esses autores, o conceito marxista de classe não conseguia explicar satisfatoriamente o fenômeno da desigualdade social nos países latino-americanos, porque lhe faltaria a dimensão da experiência colonial. A estratificação social contemporânea dos países latino-americanos reflete uma herança colonial na medida em que segue um padrão racial. Para Aníbal Quijano, um dos intelectuais mais importantes desse grupo, a modernidade europeia forja o conceito de raça para diferenciar os nativos dos europeus.

Desde a “invenção” da América, a diferença colonial, entre colonizado e colonizador, determinava a distribuição dos cargos na administração colonial. Essa diferença colonial perdura após a independência desses países na medida em que os chamados “nacionais” reproduzem a mentalidade do colonizador: supervalorizam os hábitos e costumes europeus (colonialidade do ser), supervalorizam o suposto saber acadêmico, científico, europeu, pois “universal”, subestimando o alcance dos saberes locais (colonialidade do saber) e, finalmente, mantêm a economia desses países submetida à mesma lógica colonial de divisão internacional do trabalho, subordinando os países periféricos aos ditames do capitalismo global (colonialidade do poder).

O giro decolonial promovido pelo grupo Modernidade/Colonialidade representa certamente um marco fundamental para a teoria e a crítica do pensamento social e filosófico do continente latino-americano, mas havia entre seus formuladores uma cegueira com relação à importância da questão de gênero. Assim como os marxistas, os decolonialistas não levavam em consideração que a permanência da diferença colonial pode estar fundada tanto na ordem econômica capitalista e na geopolítica do conhecimento, como nas relações de gênero. Em outras palavras, não questionam o papel subalterno das mulheres nas relações sociais e políticas, como se isso fosse algo intrínseco ao sexo e não o resultado de uma ação política colonial.

Para a filósofa Maria Lugones, a introdução das expressões de gênero marcadas pela oposição entre as tarefas e comportamento dos dois sexos, cabendo à mulher o ambiente doméstico separado do ambiente social e político, foi mais um dos instrumentos de dominação colonial, visto que com a introdução do patriarcado se conseguiu silenciar uma parcela significativa da população que certamente possuía outro entendimento sobre a economia, a agricultura e a política. Causa espanto a Lugones que os homens vitimados pela violência da colonialidade do poder sejam indiferentes ao sofrimento das mulheres de suas comunidades, sobre as quais pesam tanto a opressão e o controle do poder capitalista eurocêntrico e global a seu corpo racializado como a opressão e o controle por causa de seu gênero.

Para ela, os homens vítimas do poder capitalista não percebem as transformações profundas que a opressão de gênero trouxe a suas comunidades, o que agrava ainda mais a situação de dependência e subalternidade diante do capitalismo global. A teoria política decolonial de Aníbal Quijano acerca do padrão capitalista de colonialidade do poder teve papel central em denunciar a finalidade política e econômica do racismo no contexto do capitalismo global. A criação do conceito moderno de raça no bojo da expansão mercantil europeia serviu aos interesses “do controle do sexo e seus produtos, do trabalho, da subjetividade/intersubjetividade e do conhecimento”. Nesse sentido, é historicamente incompleta a classe como categoria que explica o sistema exploratório capitalista. Os explorados não são apenas os trabalhadores brancos assalariados, mas antes deles os corpos racializados e escravizados de índios e negros.

Lugones reconhece a dívida do feminismo decolonial para com a teoria do padrão colonial do poder de Quijano. Sua explicação da origem da categoria de raça como ferramenta de dominação dos povos não europeus pelo sistema capitalista global é essencial para a crítica decolonial ao feminismo branco eurocêntrico hegemônico. Mas, para a filósofa argentina, sua abordagem das relações de gênero a partir apenas da disputa pelo “controle do sexo e seus produtos” está comprometida com a perspectiva heterossexualista e patriarcal do capitalismo global eurocentrado.  Tanto a teoria feminista interseccional como a teoria da colonialidade do poder abordam a questão da dupla violência, racial e de gênero, vivida pelas mulheres de cor, mas suas perspectivas são muito generalistas, faltando-lhes a dimensão da vivência concreta.

A proposta de Lugones é unificar as duas análises teóricas em torno do que chamou de sistema colonial moderno de gênero. Para Lugones: “A redução do gênero ao privado, ao controle sobre o sexo e seus recursos e produtos é uma questão ideológica apresentada ideologicamente como biológica, parte da produção cognitiva da modernidade que conceitualizou a raça como ‘generificada’ e o gênero como ‘racializado’, de modo particularmente diferenciado entre os/as europeus/brancos/as e as pessoas colonizadas não brancas/os. A raça não é nem mais mítica nem mais fictícia que o gênero – ambos são ficções poderosas”.  Num primeiro momento, Quijano não se deu conta de que, ao definir o âmbito do “controle sexual e dos seus produtos” como a marca da dominação capitalista global, estava assumindo a perspectiva “clara”, “hegemônica”, que reduz a mulher a seu caráter biológico, reprodutivo, ignorando completamente sua participação na vida social e política. 

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A socióloga, professora, feminista e ativista argentina Maria Lugones (Foto: Divulgação)

A conclusão de Lugones é poderosa demais para ser ignorada. Trata-se da necessidade de homens e mulheres de cor realizarem uma mudança total de paradigma a fim de compreenderem “a magnitude do gênero na desintegração das relações comunitárias e igualitárias, do pensamento e da autoridade no processo coletivo de tomada de decisões e na economia”. A exclusão sistemática das mulheres do âmbito social e político das comunidades foi uma forma estratégica do capitalismo global de exercer seu controle e domínio nas sociedades coloniais, desestruturando suas formas de organização comunitária e política.

Desqualificar a capacidade cognitiva da mulher e reduzir seu papel ao de mãe, definir sua personalidade e caráter como sendo essencialmente passivo por oposição ao modo ativo e masculino de ser, facilitou a dominação capitalista na medida em que inferiorizou as mulheres colonizadas, representadas como fêmeas, e não como mulheres, enquanto não seguissem o modelo monogâmico, heterossexual e passivo do patriarcado.

Nada disso, entretanto, se fazia presente nas sociedades pré-coloniais. Os gêneros não estabeleciam entre si essa relação hierárquica e excludente na divisão das tarefas e as relações não eram definidas pela escolha sexual. O patriarcado, portanto, é um elemento fundamental do capitalismo eurocêntrico global. Graças a ele, foram introduzidas entre os povos colonizados as categorias biologizadas e binárias de gênero, nas quais não havia espaço para uma expressão de gênero que não estivesse em conformidade com a norma europeia. Todos os comportamentos desviantes eram colocados no lado oculto, marginalizado.

Acredito que o feminismo decolonial nos oferece ferramentas hermenêuticas poderosas para resgatarmos de dentro do campo das ciências sociais, da literatura e da filosofia as vozes esquecidas e ocultadas dessas mulheres que negaram o mandamento patriarcal de que se retirassem da vida pública, e que por isso deixaram registros de outras formas de viver e encarar a vida em sociedade. SUSANA DE CASTRO é doutora em Filosofia pela Ludwig Maximilian Universität München e professora da UFRJ


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