Dossiê | Aníbal Quijano, o mundo a partir da América Latina

Dossiê | Aníbal Quijano, o mundo a partir da América Latina
Obra da série Geometria Brasileira, da artista Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)

 

Coincidindo com a queda do regime soviético e com o quinto centenário da chegada de povos ibéricos ao que viria a ser a América, o já então renomado intelectual peruano Aníbal Quijano elaborava uma compreensão ousada da história da modernidade e do capitalismo. Nela, a América Latina aparecia como a primeira identidade moderna, um imenso território sócio-histórico de grande heterogeneidade, que se transformou, nas primeiras décadas após 1942, em um continente diante do qual os povos do Atlântico norte-oriental passariam, lentamente, a construir uma identidade comum. A América não só irrigou o agora Velho Mundo com o ouro e a prata que impulsionaram de forma inédita o intercâmbio comercial e humano entre seus territórios, como também permitiu que este mundo – como bem mostra Rita Segato neste dossiê – pudesse abrir-se à modernidade, entendida como a possibilidade de construção de um futuro pelas mãos humanas. 

É assim que Europa e América surgem em relação. Uma relação de enorme violência, cujo significante maior é raça, a criação colonial para legitimar formas de violência de caráter genocida, já não mais admitidas na Europa em formação, que pudessem ser praticadas além-mar. “Índios” e “negros”, estes provenientes da África e associados à escravidão e aqueles aborígenes e submetidos à servidão ou à tributação, tiveram seus corpos e territórios usurpados e seu trabalho explorado à exaustão na produção de artigos para um mercado internacional que alcançaria toda a face da Terra. 

A sorte da Europa, como havia dito Aimé Césaire, foi ser um cruzamento de caminhos. Primeiro entre Ásia e África – como Jack Goody, entre outros, demostrou – e, a partir do século 16, também entre os ditos Novo e Velho Mundos. Os povos, as formas de ser e conhecer, os produtos materiais e culturais e as riquezas que circularam pelos territórios acima do Mediterrâneo foram dando forma a um continente cujo estatuto como tal não se desprende imediatamente de sua geografia. Mas, ao contrário de sua história, a narrativa sobre si construída pela Europa é endógena, fruto de um desenvolvimento autônomo iniciado com a Grécia clássica e culminado, não sem os percalços de toda epopeia, na modernidade capitalista. Um irrealismo de tamanha dimensão se transformou, no entanto, em um sentido comum não somente para os povos situados na já consolidada Europa, mas também para os de outras regiões do mundo, que, no novo imaginário, não podiam ser mais do que camponeses iletrados ou povos caçadores-coletores, carentes de historicidade própria e, consequentemente, impossibilitados de verem reconhecidas suas contribuições ao que vinha se constituindo como modernidade.

Em conjunto, temos que a dita globalização se inicia com a América, gerando um padrão de poder que foi se consolidando como capitalista, moderno, eurocêntrico e, principalmente, colonial, uma vez que sua condição de possibilidade passava pela extrema exploração dos povos racializados como não brancos, assim como pela plena desumanização que desse lugar à emergência dos europeus/brancos como os únicos povos com história. O fato de que o padrão de poder continuasse o mesmo ainda após a independência dos países colonizados foi o que exigiu de Quijano a invenção do neologismo colonialidade, em torno do qual esse dossiê se escreve a fim de discutir a atualidade do tema e também seu movimento de intensificação, que ocorre em períodos de crise e no início de um novo ciclo de exploração – como o que estamos vivendo. 

A influência dessa contribuição deixou-se sentir rapidamente no debate latino-americano e além, alcançando o reconhecimento de nomes fundamentais do pensamento contemporâneo, como Enrique Dussel, Arturo Escobar, Michael Hardt, Toni Negri, Rita Segato, Ángel G. Quintero-Rivera, Immanuel Wallerstein e Catherine Walsh. É também relevante recordar que Quijano foi, ainda nos anos 1950, um dos responsáveis pelo resgate da obra de José Carlos Mariátegui, ultrajada pela terceira internacional stalinista imediatamente após sua morte em 1936. A reivindicação mariateguiana de um socialismo indoamericano, que unificasse as lutas operárias com a vitalidade da força comunal andina, foi para Quijano um antídoto ante o socialismo realmente existente e a democracia liberal. Em embates políticos de dimensões muito diversas – da defesa das lutas pela recuperação de terras nos Andes na década de 1960 à articulação internacional contra o capitalismo; da defesa da forma comunitária de gestão política em um bairro marginal de Lima à planificação de uma aliança de esquerdas para a candidatura à presidência do líder camponês Hugo Blanco –, Quijano defendeu sempre o estabelecimento de formas horizontais de luta, que convocaram uma participação massiva, em diálogo, e ativa das pessoas e comunidades submetidas pelo padrão de poder. Não totalmente por acaso, estava na Alemanha Oriental reunido com grupos socialistas dissidentes quando o muro do Berlim ruiu. 

O texto que abre este dossiê, de Danilo Assis Clímaco, organizador da maior antologia de Quijano – Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder (2014) – brinda-nos com uma trajetória biográfica, política e acadêmica do autor, que começa com o efervescente ambiente político dos Andes peruanos dos anos 1940 e chega até seus últimos escritos sobre a emergência dos heterogêneos movimentos anticapitalistas nas últimas décadas.

Rita Segato, a intelectual de maior projeção no campo da esquerda latino-americana contemporânea, recentemente encarregada de abrir a Feira do Livro de Buenos Aires –honra em geral mais ao alcance de prêmios Nobel do que de cientistas sociais – traz instigantes reflexões sobre a questão do tempo na obra de Quijano. Por meio de três conceitos principais do autor (“reoriginalização”, “horizontes abertos” e “regresso do futuro”), ela propõe que se pense a retomada das lutas contemporâneas dos povos indígenas como vetores históricos interrompidos pela conquista e pela colonização.

Segato conclui o artigo com reflexões sobre como a obra de Quijano lhe permitiu historicizar o gênero. Apesar de sua prévia consciência sobre o caráter histórico do gênero e de seu trabalho feminista ter atravessado a América várias vezes e em vários sentidos – dos Andes argentinos ao Xangô de Recife, dos feminicídios de Ciudad Juárez às mulheres indígenas brasileiras –, foi somente em seu encontro com a crítica de Quijano à colonialidade do poder que ela pôde ter uma compreensão de como o lento tempo do gênero se movia em articulação com a colonial-modernidade. O diálogo entre o feminismo e a crítica à colonialidade do poder pode parecer surpreendente em um primeiro momento, dado que Quijano se refere relativamente pouco às questões de gênero, como também observa Susana de Castro em seu artigo. No entanto, é também verdade que, na última década, Quijano mostrou-se entusiasmado tanto com o movimento político feminista como com seus alcances teóricos. Contudo, seus escritos sobre gênero, embora não estivessem mal encaminhados, eram ainda insatisfatórios – para ele mesmo e, em especial, para as feministas. Em todo caso, a fertilidade da obra de Quijano não passou despercebida a um grande número de pesquisadoras que trouxe a questão da colonialidade para o centro das discussões feministas na América Latina. 

Por isso, além das reflexões de Segato, trazemos também um artigo de Susana de Castro, no qual a professora dialoga com a obra de María Lugones para refletir acerca da proposta de unificação de duas análises teóricas – a teoria feminista interseccional e a teoria da colonialidade do poder – a fim de enfrentar o que Lugones chamou de sistema colonial moderno de gênero. Em seu texto, Susana valoriza a conclusão de Lugones como instrumento para pensar a situação contemporânea de opressão: a necessidade de uma mudança de paradigma que nos permita compreender “a magnitude do gênero na desintegração das relações comunitárias e igualitárias, do pensamento e da autoridade no processo coletivo de tomada de decisões e na economia”.

Por fim, o dossiê apresenta o artigo “A colonialidade e Porto Rico” de Ángel G. Quintero-Rivera, o maior nome dos estudos sobre a musicalidade e a dança no Caribe. Neste ano ele acrescentou aos muitos de seus reconhecimentos um segundo prêmio Casa de las Américas pelo livro ¡Saoco salsero! O el swing del sonero mayor, um estudo sociológico sobre Ismael Rivera, o maior salsero de Porto Rico. Quintero-Rivera observa que, provindo dos Andes, onde a resistência à colonialidade tem como base a sólida relação da comunidade com seu território, era difícil para Quijano entender a forma como os povos africanos haviam encontrado forças para resistir à extrema violência da escravidão. Entender a dimensão da música e do ritmo, de um saber cuja memória fica resguardada pelo corpo, foi o que permitiu a Quijano compreender também a base específica e necessária tanto da resistência negra como de suas capacidades de construir vidas sociais alternativas ao poder. Esse também foi um acontecimento crucial para que Quijano iniciasse suas reflexões sobre a corporalidade e sua relação com o processo de invenção da “raça” como instrumento político instaurador da colonialidade. 

Por tudo isso, o dossiê “Aníbal Quijano, o mundo a partir da América Latina” pretende contribuir com reflexões que, além de recuperar a importância desse pensador na e para a América Latina, também tomam como ponto de partida que o conceito de colonialidade pode estar diretamente ligado a renovadas concepções de lutas políticas. Estas trazem sabedorias das experiências de um passado de opressão, o qual se reatualiza em um contexto tanto de eliminação de camadas inteiras de população atingidas por pobreza, desemprego e violência, como de precarização das condições de vida. Isso somado parece apontar para mais um longo ciclo de destruição a ser evitado.

CARLA RODRIGUES é doutora em Filosofia pela PUC e professora da UFRJ

DANILO ASSIS CLÍMACO é doutor em Estudos Latino-americanos pela Universidad Nacional Autónoma de México e professor de antropologia na Universidad Nacional Mayor de San Marcos


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