O tempo na obra de Aníbal Quijano

O tempo na obra de Aníbal Quijano
Obra da série Geometria Brasileira, de Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)

 

Tratarei aqui de três conceitos de Aníbal Quijano com relação ao tempo: “reoriginalização”, “horizonte aberto como destino” e “regresso do futuro” – este último, um conceito original e sofisticado com o qual ele introduz outra forma de temporalidade. Em seguida, abordarei como a perspectiva da colonialidade do poder me permitiu mostrar a incidência do tempo nas relações de gênero, isto é, entender a historicidade de uma estrutura tão estável quanto o gênero – apesar de eu ter sempre afirmado que o gênero é histórico, e não biológico, não tinha sido verdadeiramente capaz de visualizar a inflexão histórica nessa estrutura até me encontrar com a perspectiva da colonialidade. 

Primeiro tema: a reoriginalização ou o giro epistêmico. É central, na perspectiva da colonialidade do poder, essa ideia da reoriginalização do mundo e, com ela, da subjetividade a partir do evento da conquista e da colonização. O giro decolonial ocorre quando se revela diante de nós a impossibilidade de narrar o processo da conquista e da colonização sem usar um vocabulário posterior ao acontecimento, já que, quando o narramos, nós nos encontramos já em um mundo reoriginalizado, um mundo novo, que pode falar apenas com categorias que não existiam antes. Por exemplo, dizemos que a Espanha descobriu a América, mas esse enunciado é insustentável, pois “Espanha” não existia antes de “América”. Se formos conferir a cronologia, veremos com espanto que o reino de Castela chega à ponta sul da península, termina sua conquista e começa a unificação do que virá a ser a nação espanhola precisamente em 1492. Quer dizer que o processo da anexação territorial chega à costa sul do território peninsular e continua do outro lado do mar, sem solução de continuidade. 

Trata-se então de um mesmo processo: conquista e colonização nas duas costas são parte de um processo contínuo, ininterrupto. Em uma maravilhosa entrevista publicada na Revista Illa, em 1991, Quijano afirma que Espanha, América, o índio, o negro, o branco, a modernidade e o capital nasceram no mesmo dia. Eis aí a reoriginalização do mundo, o momento em que aparece uma nova grade léxica, categorial, com a qual vemos e classificamos as entidades do planeta e narramos os fatos do passado. Esse é também o momento em que uma grande quantidade de povos do nosso continente e da África – alguns deles de alta tecnologia e com formas de organização de Estado, e outros com cosmologias complexas, mas cujas escolhas históricas os levaram a rejeitar a acumulação de excedente, a emergência de uma classe gestora e a tecnologia, isto é, uma variedade de povos imensa – em muito pouco tempo se transformou, na nova grade categorial, em “os índios” e “os negros”. Na América, transformaram-se indistintamente em “índios” os astecas, os incas e os povos das terras baixas de organização comunitária. Na África, povos como o grande império iorubá e os pigmeus, tão diferentes entre si, passaram a ser classificados indistintamente, em pouquíssimo tempo, como “negros”. 

O termo reoriginalização denomina, portanto, o estabelecimento de uma grade categorial com a qual classificamos a realidade de uma nova forma, instalando um mundo que vai surgir muito rapidamente e que, ao se estabelecer, inaugura um tempo novo. O outro aspecto dessa virada é a inversão que, no diálogo com Immanuel Wallerstein, é introduzida na ideia de sistema-mundo – inversão que leva, a partir do giro decolonial, a sempre preceder o termo modernidade com o termo colonial, fixando a expressão colonial-modernidade para lembrar de forma inequívoca que a precondição indispensável e o pontapé inicial da modernidade foram o processo de conquista e colonização. Há duas razões para isso. 

Em primeiro lugar, sem conquista do que na nova grade terminológica viria a ser “América”, não haveria os minerais ouro e prata, que permitiriam a acumulação primitiva da fase inicial do capital: sem as minas de prata de Potosí (Bolívia) não haveria capitalismo. Além disso, até o evento colonial, todas as invenções técnicas e os descobrimentos científicos ocorridos no Velho Continente eram autorizados com base no passado, a âncora da legitimidade residia na história sagrada. A Igreja tinha a chave do futuro a partir de seu patrimônio de um sagrado fundacional. Quando a América emerge na grade epistêmica, aparece pela primeira vez o valor do descobrimento, o valor do novo. Aí, a âncora do valor se instala no futuro e na novidade. A legitimidade e a autorização de todo invento e invenção virão então do futuro, de sua promessa futurista. Isso transfere o critério de valor do passado para o futuro. E não existe ideia de modernidade nem de modernização sem que se instale o valor do futuro e do novo. Essa é a viragem essencial da reoriginalização, que funda um novo tempo. 

O segundo conceito é o de horizonte, ou talvez horizontes. O horizonte aberto como destino. Lembro que, em 2008, durante uma ocupação da reitoria da universidade em que eu estudava, escrevi a Quijano: “Estamos ocupando a reitoria”. E ele respondeu: “Ah, o vento da história está passando por aí…”. Ele concebia que a agitação no planeta passava por diferentes lugares em diferentes momentos: havia momentos de quietude e outros em que soprava o furacão da história, movendo as peças, chacoalhando o chão, agitando aqui e ali. Ele escrevera sobre utopia em diferentes ensaios, mas, em tempos recentes, a imagem passara a ser a de horizonte. A utopia, infelizmente, está fechada de antemão. A noção de um “dever ser” e uma definição desse dever ser tornam-se inevitavelmente autoritários. Por isso, nos escritos recentes, Aníbal Quijano falava mais de um horizonte de destino, aberto. A ideia de horizonte é a da vida e da história em movimento, sem sequestro por uma ideia de futuro previsto, de futuro imperativo. Um movimento sem captura pelo fim. É o vento da história que atravessa a cena de maneira sempre incerta. A incerteza é a própria utopia. A confiança de que a história resiste a qualquer captura. Descrevo essa experiência como “fé histórica”, movimento aleatório que não pode ser aprisionado. Essa é a noção de horizonte em Aníbal Quijano, que vai lentamente substituindo ou modificando a noção habitual de utopia como um dever ser do futuro. Sabemos apenas do presente, e podemos no presente – o futuro é aberto. 

A terceira ideia, seminal, é a do “regresso do futuro” – e sei o quanto custou a Quijano chegar a essa proposição. Vou citar um trecho de um texto meu sobre ele: “Sua sugestiva noção de um regresso do futuro, de um horizonte que volta a se abrir ao caminho da história dos povos depois da dupla derrota à destra e sinistra do projeto de Estado liberal capitalista e do despotismo burocrático (comunista), derrota que não é outra que a da hegemonia do eurocentrismo que controla ambos projetos”. No momento em que acaba o mundo bipolar, Aníbal sente-se liberado dessas lealdades que, à esquerda e à direita, nos aprisionaram e nos impediram de pensar livremente. Os povos de estrutura comunitária e coletiva – os povos indígenas, o mundo camponês-indígena, para denominá-lo de uma forma mais ampla – tinham sofrido essa dupla derrota, a partir tanto do Estado liberal-capitalista como do despotismo burocrático do socialismo real. Derrota ante a hegemonia do eurocentrismo que controlava ambos projetos. No período pós-Guerra Fria, uma variedade de povos que se acreditavam extintos, estimulados pela aparente benevolência da era multicultural, mostra-se existente. A emergência contemporânea do sujeito histórico índio ou, mais exatamente, o retorno do camponês ao índio, assim como a desconstrução da mestiçagem, são um sinal de que o padrão da colonialidade está começando a se desmontar. Há uma reidentificação em curso de camponeses a indígenas, de mestiços a índios e negros, e uma retomada das linhagens da não brancura por parte das pessoas. 

As reemergências indígenas dos huarpes, quilmes, diaguitas e tupinambá, que se esconderam durante as Repúblicas e não na fase colonial, revelam a imensa inteligência estratégica desses povos, que foram capazes de sobreviver a quinhentos anos de massacre. Sem dúvida, souberam o que fazer em cada conjuntura histórica para não desaparecer. Foi com as Repúblicas que entraram em aparente extinção. No Brasil, foram os tupinambás; na Argentina, os huarpes foram considerados extintos há duzentos anos e um dia eles saíram de sua clandestinidade: “Não somos camponeses, não somos pastores, somos os huarpes”. Essa é a importância da categoria do regresso do futuro. Fica claro, então, que a continuidade das soluções comunitárias para a vida que tinha sido suprimida, obstruída, abre caminho no presente – depois da crise dos paradigmas de esquerda e direita. 

 

Possibilita-se assim uma combinação entre formas de vida arcaicas que se revitalizam e projetos históricos do presente que nelas se enraízam. Essa é a ideia do regresso do futuro, um futuro que tinha sido impedido, represado. Não há restauração nem nostalgia, mas liberação dos projetos históricos de povos diversos, freados pelo patrão da colonialidade. Abre-se essa possibilidade de regresso do futuro, do futuro que não pôde ser, mas que agora poderá – é nosso passado que vem a caminho… Não é nostalgia de uma Idade de Ouro, nem de uma perda, muito menos engessamento dos costumes. Não se trata do bom selvagem de uma origem impoluta, nem é culturalismo – uma das formas do fundamentalismo –, trata-se de um trajeto histórico recuperado e reatado a partir do presente. É a recuperação de uma cena histórica interceptada em seu devir e reinstalada agora como o projeto histórico de povos interceptados pela conquista, pela colonização e pela colonialidade que se instalaram. 

Para concluir, o cruzamento com a perspectiva da colonialidade mostra a incidência da história numa estrutura de tão longa duração e tão estável como é a ordem patriarcal.  Meu esforço em articular minha análise prévia sobre a violência de gênero com a perspectiva da colonialidade deve-se a uma interpelação do próprio Quijano, que se mostrava insatisfeito ao mesmo tempo com o único texto que tinha escrito a respeito, e também com a contribuição feita por Maria Lugones, que negava a existência de um patriarcado pré-colonial. Quijano me pediu, então, que eu cruzasse os estudos de gênero com a perspectiva da colonialidade, e assim escrevi “Género y colonialidad: en busca de claves de lectura y de un vocabulario crítico decolonial”. Ali analiso minhas experiências de mais de dez anos acompanhando as oficinas da Fundação Nacional do Índio (Funai) em diversos estados, inicialmente sobre o tema do fomento às tarefas produtivas das mulheres indígenas e, a partir de 2006, divulgando entre elas a Lei Maria da Penha. 

Vi, durante esse período, como o aumento da violência contra as mulheres indígenas acompanhou o avanço da frente estatal, empresarial, mediática, cristã. O Estado benfeitor avançava na sua oferta de direitos e recursos: educação, documentação das pessoas, saúde, acesso às leis etc., mas junto com essa colonização beneficente, o tecido comunitário ia se destruindo e as evidências de violência doméstica extrema iam aumentando. Como o genocídio, o feminicídio também é moderno. Com a erosão da ordem comunal, dava-se a transformação da vida doméstica comunitária em família nuclear, íntima e privada. Esse espaço, antes povoado por múltiplas presenças e, portanto, bem vigiado pelo olhar coletivo, encapsulava-se mais e mais. Diante da evidência da violência intrafamiliar, os caciques respondiam dubitativos sobre sua capacidade de atuar “na casa dos outros”, sob o argumento da autonomia: “é a casa deles!”. A família se encapsulava sob nossos olhos. O mundo comunitário é um mundo dual, coeso pela lei de reciprocidade, e explicitamente hierárquico, no qual as tarefas masculinas têm maior prestígio. Mas, nesse mundo, o espaço das mulheres tem uma ontologia plena e é dotado de capacidade política própria. O espaço doméstico – cena das tarefas, dos rituais, dos jogos e das deliberações entre as mulheres, que acabarão incidindo na vida coletiva – tem uma autonomia, uma blindagem, e uma política própria. Nessa ordem dual, há dois espaços: o das tarefas dos homens e o das tarefas das mulheres. Na transição para a colonial-modernidade, a dualidade se transforma em binarismo e no mundo do um e seus outros. O sujeito universal, ícone do “normal” e normativo, e suas anomalias. A mulher passa a ser o outro do homem, da mesma forma que o negro e o índio serão vistos como o outro do branco, as sexualidades LGBTTTIQ+ como o outro da sexualidade heteronormativa – e toda diferença será vista em relação ao “normal”, porque estamos no mundo do um e de suas anomalias. 

Dessa forma, graças à perspectiva da colonialidade do poder, é possível entender a inflexão colonial na organização social, na vida comunitária, na organização por gênero. O trânsito para a colonial-modernidade é um processo pelo qual o espaço das tarefas masculinas passa a ser uma esfera englobante que sequestra tudo o que é dotado de capacidade política. O Estado e a esfera pública são então a última etapa da história dos homens, enquanto o espaço das mulheres ou o espaço doméstico é expropriado de toda capacidade política e se transforma na margem, no resto, um resíduo da política. Hoje, as marchas das mulheres nas ruas são a explosão dessa capacidade política alternativa, represada, quase extinta pela transição colonial-moderna. Uma reação à sua obstrução pela intervenção colonial.

RITA SEGATO é doutora em Antropologia Social pela Queen’s University Belfast, professora emérita da UnB e diretora da Cátedra Aníbal Quijano do Museu Reina Sofía


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