O bolsonarismo borbulhante
A população assiste apenas ao mesmo ruído de sempre, sobre Bolsonaro declarando e retirando declarações, tomando medidas e recuando (Arte: Revista CULT)
Campanhas não duram para sempre e, uma vez que se ganha uma eleição majoritária, governar é preciso. E há uma diferença abissal entre fazer campanha e governar, por mais que se reconheça que é do pacto democrático que governos eleitos atendam às expectativas das campanhas que os elegeram. Tem que haver esta diferença vez que, afinal, na campanha se enfrentam propostas concorrentes, compete-se com diferentes visões de mundo e interpretações da realidade do país, disputam-se corações e mentes dos eleitores com outros candidatos e outras ideias. Assim, nela valem exageros retóricos, construção de imaginários, elaboração de representações sobre os adversários e sobre nós mesmos cujo grau de aderência à realidade não se espera que seja de grande exatidão. Mas quando se trata de governar, enfrentam-se problemas sociais que precisam efetivamente ser resolvidos e confrontam-se com demandas concretas que precisam ser, se não atendidas, ao menos consideradas. Em vez de disputar imaginários, agora se encara a burocracia estatal, os mecanismos, procedimentos e pessoas envolvidas na gigantesca máquina pública, tem-se pela frente casas legislativas também eleitas com que se tem que negociar, é preciso formular, aprovar e implementar políticas públicas, tem que se lidar com as contingências do orçamento público, etc. E tudo isso sob o olhar e o risco de sanções dos órgãos de controle, do sistema político, da oposição inevitável e legítima, dos meios de comunicação e, ultimamente, da opinião pública hiperativa das mídias sociais. Em suma, à campanha concedem-se licenças retóricas e de imaginação que a governos não podem ser concedidas.
Por isso mesmo, cerca-se sempre de grandes expectativas a formação de novos governos. A nova administração dá sinais de que entregará alguma coisa próxima dos desejos que suscitou e das demandas que prometeu satisfazer durante a campanha? A imagem que o vencedor construiu para o seu futuro governo se parece com as feições que o governo real está ganhando? Coerência, correspondência às expectativas e capacidade de realização são, portanto, as palavras-chave para este momento em que, findo o período eleitoral, uma nova administração ganha forma.
Isto posto, o que dizer das feições já assumidas pelo Governo Bolsonaro, que se vem formando desde novembro de 2018? Quais as primeiras impressões produzidas?
Já disse e insisto que o que chamamos de Governo Bolsonaro é, na verdade, a amálgama de três diferentes governos, com projetos e líderes distintos e que requerem políticas públicas completamente diferentes. O Governo Paulo Guedes, já sabemos, pretende ser uma continuação da interrompida agenda de ajustes econômicos de Michel Temer. Na verdade, pretende, para júbilo do capital, ser um governo FHC III, um governo de austeridade – quer dizer, de privatizações, de corte de gastos públicos e de reformas para desonerar a economia, como se diz hoje em dia. O segundo governo é o Governo Sérgio Moro, responsável pelas principais mágicas prometidas na campanha e esperadas com ansiedade pelos que votaram em Bolsonaro. Lembremo-nos que o governo Moro é responsável por nada menos que dar cabo da corrupção de colarinho branco no país, principalmente ao conluio entre capital privado e gestores públicos, e, ao mesmo tempo, reduzir as taxas de homicídio no país, principalmente as taxas de latrocínio, a padrões civilizados.
O terceiro governo consiste numa frente que junta duas forças que nem costumam andar juntas nem costumavam serem vistas como forças políticas, que são os ultraconservadores de direita e o núcleo militar. Aqui está o coração do bolsonarismo. De um lado, o conservadorismo de tipo reacionário, mobilizado para realizar uma guerra cultural de retomadas dos “antigos valores” iliberais, religiosos e pré-democráticos, para o qual os grandes problemas do país são problemas morais. Do outro lado, o militarismo, nacionalista (patriótico) e autoritário, para o qual os últimos 35 anos de governos civis representaram a perda da fibra moral da nação. Militarismo que foi mobilizado como uma espécie de chancela anticorrupção moral e política e uma garantia de que os interesses da pátria estariam garantidos no governo.
O próprio Bolsonaro nunca passou de um representante dos interesses da corporação militar, um radical da direita militarista, o que significa basicamente que é um revisionista histórico da ditadura militar e um sujeito cuja mentalidade foi construída no imaginário da Guerra Fria (quando aprendeu a odiar “comunistas”) e da ditadura militar brasileira (quando foi treinado para detestar “subversivos”). Numa leitura autocomplacente da sua posição, Bolsonaro se vê como “militarista”, pois acredita na superioridade do caráter militar sobre o civil, e “patriota”, que é algo como uma espécie de militarismo nacionalista. Bolsonaro converge com os conservadores de direita apenas no fato de ser de direita e reacionário, isto é, alguém que entende que há um ameaça aos valores tradicionais no avanço dos direitos e das obrigações sociais de reconhecimento e respeito de certos estilos de vida, identidades e minorias no mundo contemporâneo. Bolsonaro compartilha uma mentalidade segundo a qual a liberdade e a igualdade, princípios básicos da democracia liberal, são elementos perturbadores da vida social à medida em que admitem a diversidade de estilos de vida, estimulam liberdades sexuais e conduzem ao desafio ao dogmatismo, à religião e às convenções. Principalmente porque levam a um modelo de sociedade não mais baseada na autoridade e na tradição, mas na tolerância, no pluralismo e no respeito. Nada mais perturbador que isto.
A posição reacionária é o terreno em comum entre o conservadorismo e o militarismo na plataforma representada por Bolsonaro. Os ultraconservadores vêm de outras matrizes. Organicamente são provenientes dos grupos religiosos neopentecostais (pensem em Edir Macedo, Marco Feliciano e Silas Malafaia, por exemplo), que são um repositório de votos de considerável peso eleitoral e em ascensão contínua pelo menos nos últimos vinte anos. E não apenas com enorme capilaridade, como também com grande capacidade de orientar os votos populares. Mas há aqui no Brasil uma segunda matriz operando, o olavismo, uma papinha ideológica astutamente criada e vendida por Olavo de Carvalho, que vem sendo consumida há duas décadas como uma espécie de Whey Protein para pessoas que desejam sofregamente serem intelectuais de direita, mas não têm a musculatura cultural e neuronal necessária sequer para serem intelectuais. Na verdade, o olavismo não passa de uma compilação de lugares-comuns do discurso e dos temas da direita popular americana, a que o mestre Olavo acrescentou doses gigantescas de antipetismo e antimarxismo.
No fundo, o ultraconservadorismo à brasileira que forma o bolsonarismo é um shake em que se combinam, em diferentes proporções a depender de quem o consome: a) o fundamentalismo bíblico neopentecostal, ultraconservador, dogmático, intolerante nos costumes e extremamente proselitista, isto é, que deseja a todo custo converter as outras pessoas. A ministra Damares Alves representa claramente este ingrediente; b) o discurso da direita americana, que é antiestatista radical, defende intransigentemente o porte de armas, tem aversão a minorias na forma de crítica ao “politicamente correto”, é antiglobalista, detesta migrantes, odeia a mídia liberal e se vê atacado por ela, e, enfim, considera “comunismo” qualquer política pública de proteção social. Ah, e no caso brazuca, são também apaixonados pela América de Trump e odeiam Cuba. Os principais representantes desta ideologia no governo são os ministros Ernesto Simões e Ricardo Vélez; c) o militarismo conservador, revisionista histórico, decadentista (o passado é melhor que o presente), que prescreve autoridade e patriotismo como cura para todos os males (alô, alô Alexandre Garcia!). Além disso, é nacionalista e assegura que os militares no governo podem funcionar como garantidores da honestidade dos costumes e da defesa dos interesses nacionais.
Dos três governos que compõem a Administração Bolsonaro, a única parte ativa neste momento é justamente o bolsonarismo, o núcleo ultraconservador-autoritário (ou neopentecostal-olavista-militar). Que é justamente a parte sob o controle de Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão e, curiosamente, os filhos de um e de outro. Muitos, tantos e tão complicados filhos. Estes são os horizontes sobre os quais os Bolsonaros admitem ter alguma competência e em que se empenham pessoalmente. E, naturalmente, é o mais ruidoso e caótico até o momento.
Enquanto não se sabe o que farão Guedes e Moro com os seus governos, dos quais se esperam mágicas como a resolução da crise econômica e a volta da sensação de segurança nas ruas do Brasil, o governo do bolsonarismo borbulha. Sem experiência política ou administrativa, a nova hegemonia comporta-se como se governar fosse lacrar em mídias sociais, à base de frases de efeito, malcriações e bloqueios. E rusgas com a imprensa. Os muitos “meninos” de Bolsonaro comportam-se como se tivessem sido eleitos e tomado posse com papai e fossem todos co-presidentes da República. O menino de Mourão, juntamente com amigos, assessores, ajudantes e aspones dos filhos e da esposa de Bolsonaro, vão fazendo sucesso nos vários escalões da administração pública, ocupando cargos e ganhando promoções surpreendentes. Neste momento, a República parece reduzida a uma república. Passa a impressão de que se tornou uma destas empresas familiares em que os inúmeros filhos do chefe acham que são chefes também e podem mandar e desmandar, criam caso com clientes e fornecedores, assediam as empregadas, arrumam briga com os encarregados. Viramos a Mercearia Jair, Hamilton& Filhos.
Um amigo meu, da mais nítida cepa liberal em economia, brincava hoje que Paulo Guedes bem que podia demitir os 4 ministros que só arrumam confusão no governo: Ernesto Araújo, Vélez, Damares e… Bolsonaro. Pois são justamente os ministros do bolsonarismo e o chefe do governo bolsonarista. Não é à toa que já no discurso de posse, o presidente eleito deixou de lado os graves problemas econômicos e sociais do país para formular como sua prioridade “libertar o país do socialismo e do politicamente correto”. Pois aí está. Cabe a Paulo Guedes libertar o país do estatismo, pois da luta contra os valores liberais se ocupará Bolsonaro. Nada há de mais urgente para este país do que lutar contra a libertinagem, a conversa livre sobre sexo e a educação sexual de criancinhas, a falta de autoridade de pais e educadores, a troca da Bíblia pela ciência na orientação da vida e na explicação do universo, o reconhecimento de direitos de mulheres, negros e homossexuais que, além de tudo, ainda exigem que os respeitemos, a crítica aos papeis sexuais convencionais, o fato de os professores ficarem inculcando valores liberais, humanistas e iluministas nos nossos petizes, e o fato de que os valores direitistas, conservadores e reacionários não serem tratados com estima social e com o grande apreço público que merecem por culpa de artistas, de intelectuais e da mídia.
Fora isso, a população assiste apenas ao mesmo ruído de sempre sobre o uso laranjas (onde está Queiroz?), sobre nepotismo escancarado, sobre filhos do presidente mandando e desmandando no mercadinho da família, sobre Bolsonaro declarando e retirando declarações, tomando medidas e recuando, todo mundo falando e sendo desautorizado e continuando falando mesmo assim. E o Novo Governo do Brasil, que surgiu dos céus para fazer tudo diferente em 2019, parece ainda mais amador, improvisado e em curto-circuito do que todos que os governos tradicionais que o precederam. O antipetismo foi a plataforma fundamental que conduziu Bolsonaro à vitória em 2018. Mas o sentimento anti alguma coisa nunca foi cola suficiente para manter um projeto coletivo. Esgotado o efeito da catarse, com fogos de artifícios e uns palavrões na varanda, já não é bastante sequer para se julgar se as pretensões do novo governo fazem sentido, se a escolha dos seus ministros atende expectativas, se as primeiras declarações são coerentes com algum projeto que a maioria preferiu. Nesse sentido, o antipetismo é o cachorrinho que corria desesperadamente atrás do caminhão até que o carro parou. E agora? E agora… vamos aqui improvisar um governo militar-pentecostal-olavista e vamos ver no que dá. E se a gente disfarçar direitinho, eles nem vão notar que é um puxadinho mal-ajambrado que mal para em pé.
(6) Comentários
É preciso ser muito ignorante ou com desvio de caráter para julgar um governo que sequer tem um mês de mandato. Creio que o cachorro que mija no pneu quando o carro para deve ser uma auto crítica do autor da matéria. Lamentável o ponto em que chegaram os perdedores.
Análise muito bem fundamentada. Parabéns!
Excelente texto!
Nesse atual governo o que muito percebo é um falso patriotismo; um falso moralismo. A versão de austeridade econômica que eles pregam também tem algo errado. Pois, se o país está em crise econômica eles poderia diminuir os privilégios que gozam os três poderes da República, mas só visar cortar investimento onde não deveriam cortar. Um governo que já começou errado disseminando muitas mentiras dificilmente enganará o povo também até o fim do seu governo. Vejo um futuro incerto para tal governo para todos nós, infelizmente
Leio com muito pesar o texto onde vejo apenas militantes de esquerda desejando que o país continue na lama da corrupção e desgraça do povo que a muito vem sofrendo nas mãos de vagabundos petistas.
Wow….que clareza!