Necrose ideológica e práticas sociais
A ideologia necrosada se apresenta como bloco social-histórico pretensamente coeso. Este é o terreno da transpolítica (Foto: Alan Santos/PR)
Contextualização
O primeiro artigo da série “Transpolítica da ideologia”, publicado pela Revista Cult, abordou a trama imperceptível entre violência cotidiana de trabalhadores e dinâmica socioestrutural da ideologia.
O segundo artigo expôs a radiografia ideológica da extrema direita no aparelho de Estado no Brasil a partir de 2018. A reflexão mapeou a maioria dos traços típicos da necropolítica neofascista representada pelo bolsonarismo; e o associou ao processo transpolítico de reprodução social-histórica do capitalismo.
O terceiro texto aprofundou a dissecação da necrose da ideologia na dinâmica do funcionamento material da existência sob condições político-estruturais conservadoras.
A série de textos esclarece injunções sociofenomenológicas básicas do capitalismo como modo de produção tecnológico tardio.
Esta quarta e última reflexão é feita sob o arco das relações entre necrose ideológica e práticas sociais na vida cotidiana.
Ideologia hipostasiada nas práticas sociais
Necrose sistêmica do habitus
Como facilmente se presume pelos artigos, a reificação da ideologia na materialidade da existência não deixaria impune a dimensão pragmática da vida cotidiana. A ideologia hipostasiada se refugiou igualmente no reduto pré-verbal do ethos, do simplesmente ser e estar, na qualidade de simples existir em contexto. Essa incrustação abrange, em conjunto, a decisão sobre como ocorre esse ethos e as repercussões (imediatas ou postergadas) das escolhas envolvidas: atitudes e procedimentos, atos ou ações, atuações ou performances, para não dizer gestos, mesmo trejeitos faciais – tomemo-los como for (em regime presencial ou via rede) –, contêm, diretamente, ideologia. Diretamente: dispensam a utilização de recursos discursivos ou narrativos para sua justificação histórica, legitimação política e/ou validação socioeconômica.
A ideologia reificada lateja no recorte social do corpo, exatamente onde e a partir de onde ele se encontra. Além de introjetada mentalmente, ela segue incorporada: mutatis mutandis, é seu modo de “aterramento” na carne, aculturada (e jamais inteiramente domesticada) por várias formas epocais de racionalidade técnica.
A apreensão integrada dos dois influxos – introjeção e incorporação – clarifica a ocorrência com maior ganho de profundidade. Como psique e soma são hibridados, a sistemática introjeção da ideologia ao longo do processo de socialização – da infância à fase adulta – culmina na sedimentação corporal completa e tensa, jamais muda ou surda, da violência invisível do mundo como valor estrutural de perpetuação das condições de vida vigentes. Para camadas mais desfavorecidas da população, essa “objetalização” ideológica – na e sobre a pele do próprio ente, por assim dizer –, não se realiza sem sacrifício e dor profundos, aquém do trabalho recorrente de simbolização racional. A sedimentação da ideologia no corpo e em torno dele independe de processos de conscientização, eficazes ou tênues. No corpo e em torno dele: a ideologia reificada se esgueira na malha de objetos utilizados de forma inconsciente ou espontânea, nas marcas e produtos consumidos sem justificativa razoável, nas réplicas e designs da moda desejados – dos tecidos aos hardwares portáteis, dos óculos ao couro dos sapatos, dos fármacos à alimentação, dos cremes às cirurgias plásticas, e assim por diante. As práticas de consumo (de bens materiais e simbólicos) são inseparáveis do corpo que produzem. Como disse certa vez Marcondes Filho, a ideologia se joga, por isso, no cerne do próprio agir, a partir de cada ato banal, acompanhado ou não de verbalização. Isso significa que a ideologia também se necrosa e “desaparece” em todas as formas de ação culturalmente conservadoras, aquelas com função pró-sistêmica, desdobrada na vida cotidiana.
Recontextualizando Bourdieu, a hipóstase da ideologia no âmbito da pragmática diária se opera no e com o habitus, reverberando socialmente a partir dele. Para Bourdieu, o habitus é um diagrama comportamental não inteiramente consciente, mas também não totalmente involuntário, pelo qual as regras sociais (de conservação) de uma época não deixam de pulsar em cada sujeito: sem suplício físico imposto por centros externos, esse diagrama o leva a conceder à sociedade o que ela majoritariamente necessita para se reproduzir no tempo histórico. Grosso modo, o habitus, como vórtice de mediação entre subjetividade e realidade sociocultural, funciona como matriz impessoal e, ao mesmo tempo, idiossincrática no perfil e na trajetória individuais. Em regra, esse vórtice matricial e imperceptível responde, em cada ente e a partir dele, pela multiestruturação contínua e aleatoriamente concatenada de uma época ou atmosfera social, sem planejamento determinístico identificável, seja de viés político-institucional e/ou econômico-financeiro, seja de tipo sociocultural ou moral. No mesmo compasso, a potência organizadora da ideologia reificada no habitus – do corpo individual à multiplicidade de corpos na coletividade, e vice-versa – reage, de forma igualmente autopoiética, ao próprio mundo que ela erige e desdobra. Como tal, o habitus não deixa de ser uma necrose sistêmica atitudinal na qual, com a qual e através da qual a dinâmica do social se realiza, por cada segmento particular de atuação e vivência, bem como pela totalidade deles.
O ato de consumir, tomado diretamente em sua práxis, no modo processual pelo qual ocorre, é tão ideológico quanto jogar videogame ou praticar esporte. Os bastidores da ação, desde o cerne não verbal da vontade, recobram característica idêntica. A efetivação da escolha entre ir a um shopping center ou a um parque de diversões, passar o dia num clube de lazer ou na internet, imergir num show público ou numa balada, dirigir na cidade sem destino ou viajar para o litoral, ficar em casa ouvindo música ou assistindo a séries, ou a preferência pela mescla de atividades similares – todos exemplos emblemáticos de práticas sociais conservadoras –, é tão mais ideológica quanto mais inconsciente for. A estrutura socioeconômica dessas oportunidades encerra tanta ideologia hipostasiada quanto o simples pendor individual a uma das alternativas. Elas sustentam, como vigas processuais, o mesmo edifício sistêmico que, nas entrelinhas, envolve, ainda, a própria possibilidade de se poder fazer ou não uma escolha. A crítica psicanalítica politicamente orientada revela que a cena impalpável da ideologia necrosada ocorre muito antes do que a razão sociológica costumeiramente esquadrinha.
Por outro lado, o húmus ideológico está igualmente presente, com sinal trocado, em práticas de contradito ao status quo, tenham elas caráter acerbo e incondicional, sejam, ao contrário, propositivas e reformistas. Participar de manifestações antibélicas ou contra a violência policial em comunidades vulneráveis; engrossar a defesa dos direitos humanos e da igualdade de gênero, contra o racismo, a xenofobia, a homofobia e o feminicídio; reivindicar a abolição de prisões psiquiátricas, a ampliação do número de leitos em hospitais públicos e a aceleração da vacinação em massa; aderir a protestos de rua e nas redes contra o avanço do neofascismo e em prol do impeachment de um presidente – todas essas práticas constituem exercício de contraideologia.
Eis, em outros termos, a armadilha já sinalizada: a contraideologia, na qualidade de ideologia crucial per se, integra a própria dinâmica sociopolítica combatida; e, no miolo dessa dialética, embora se distinga da lógica do edifício, não deixa de nutri-la. Essa aparente fatalidade, porém, nunca foi – nem será – determinística em seus resultados: a céu descampado, a indispensabilidade do embate político assume a incerteza de todos os riscos e consequências (entre eles, o da deglutição em prol do status quo) com a mesma intensidade com que se abre a horizontes transcendentes.
Na agudização de conflitos dentro da armadilha, eis também a ironia de ribanceira, de tão fake, influente em bolhas algorítmicas de extrema direita: o discurso bolsonarista, no interior da histórica cegueira ultraconservadora, considera que a contraideologia (antigovernamental, anti-status quo, anticapitalista etc.) é a ideologia, como se o fenômeno fosse mero monopólio do campo partidário de centro-esquerda. O sinistro atribui como início do processo ideológico o que, na verdade, não representa senão o segundo momento da gramática do embate: aquele contra a ideologia originária, necrosada no próprio modo de produção, com seus adornos discursivos e narrativos. O neofascismo, por sua rusticidade voluntária (aqui, como estratégia dissuasiva), nega o próprio espelho: parasitário da tradição hipostasiada, isenta-se como ideologia, à sombra da organização material da vida social… Trata-se de um corolário cínico do “desaparecimento” da ideologia – apenas para as hostes implicadas e simpatizantes. A obtusidade positivista que o anima, no entanto, autodemonstra seu próprio despreparo, como um guarda-chuva puído sob borrascas: o processo de reificação da ideologia que a crava como “realidade” histórica e como “verdade” de referência é o mesmo que, simultaneamente, faz as narrativas que o defendem e promovem não se considerarem como ideologia.
A menção ao inconsciente parágrafos acima descarta igualmente titubeios: embora seja uma dimensão psicossocial jamais devassável e domesticável integralmente pela sanha espoliadora do poder macroeconômico organizado (como força transpolítica), o inconsciente também pode transbordar ideologia no “entremeio” de esquemas reativo-saudosistas, repetitivo-presenteístas e/ou projetivo-conservadores. Essa teia de arranjamentos mentais temporalmente emaranhados, ainda que apenas parcialmente aculturada, lastreia, em sua propensão de desejo, a frágil condição do ego como refém de balizas de época. Tal precariedade psíquica coincide, como sintoma renovado, com o ápice de tendências de customização digital e algorítmica conforme “gostos” pessoais. Baudrillard já o havia apontado há décadas, no rastro de Adorno e Horkheimer: o excesso de individualismo, expresso na hipérbole de bolhas sígnicas que o simulam, equivale, como efeito reversivo, ao ocaso do próprio indivíduo. Nessa direção, o entretenimento como moeda estrutural – de programas de TV ao YouTube, de espetáculos de arte a megaeventos esportivos etc. – cumpre papel imperativo e, ao mesmo tempo, “amaciado”, de redução extrema da complexidade de conteúdos, de catalisação reiterada das flutuações inconscientes da percepção e de gratificação compensadora. Essa leveza imperativa do ludismo sistêmico entrega a mercadoria para pronta adesão tácita e em massa, antes de qualquer escolha racionalizada ou formação de convicção.
Nos flancos conexos e já reportados (nos artigos anteriores da série) – a saber, o do macrofuncionamento político-econômico e o do microcosmo da ação cotidiana, afluxos que retroalimentam a dinâmica diuturna da vida social –, a ideologia reificada se configurou, portanto, como “fenômeno puro”, algo aquém-discurso ou pós-narrativo, tão concretizado quanto supostamente blindado, longe do código letrado e da comunicação que dele deriva. Não carece mais de validação legitimatória.
Para relembrar o panorama argumentativo, com outro passo estratégico atrás, o fenômeno ideológico inteiro pode ser sintetizado conforme segue. Na agonia da disputa política (como para decisão sobre vida e morte), a semiose do mundo, ou melhor, o frenesi de suas tensões no plano simbólico, sempre se arma (e se rasga) entre ideologia e contraideologia, ambas dependentes de narrativas. Não obstante, do ponto de vista da objetivação dessa semiose – do subsolo à crosta, abrangendo valores e objetos, bem como relações surdas entre eles –, a ideologia necrosada se apresenta como bloco social-histórico pretensamente coeso. Este é o terreno da transpolítica.
Hipóstase ideológica e desigualdades sociais
No coração processual da hipóstase ideológica, encontram-se as rígidas regras de todas as desigualdades sociais. Não deixa de configurar um “estado de exceção” que, a propósito, cabe numa equação axiológica elementar: se o absurdo é mais profundo quando perverso, é também mais perverso quanto mais invisível. O cúmulo, tão inaceitável quanto majoritariamente olvidado, estende o chão dourado: as regras da desigualdade passam a servir, sobretudo, para trajetórias de ascensão no horizonte do status quo. O que todos fazem sempre foi a escola mais eficaz da conservação.
Como se sabe, esse foi o principal pomo pelo qual Adorno advogou peremptoriamente porque o todo é falso. Foi a segunda célebre injunção filosófica que, em perspectiva crítica ao existente, re-esculpiu a perspectiva de Hegel. O primeiro foi Marx, que sacudiu o influente metafísico de Jena, Heidelberg e Berlim para que suas ideias descessem ao solo concreto da vida: a dialética do compatriota, fundada na transubstanciação da Ideia ao longo dos séculos, era muito valiosa para permanecer cativa da arcada celeste. Marx concedeu a essa dialética as cores da terra para que, debaixo dos pés e às mãos dos humanos, especialmente os trabalhadores (detentores da parte mais ínfima da riqueza coletiva produzida, o salário), operasse superações vitais e sucessivas que Hegel vislumbrou no diapasão de categorias abstratas. O segundo a re-entalhar o pensador das formas do espírito foi Adorno, mediante mudança diametral de sinal – também à esquerda – no fundamento dialético do idealismo alemão: para este, o todo, como sistema objetivo, era verdadeiro em si.
Sob lastro póstero e conservador na obra de Comte, a consciência voluntariamente reificada dos positivistas (dogmáticos ou arejados) prossegue, em essência, atribuindo razão a Hegel. Contra a longeva organização da vida social na forma econômica pós-renascentista do status quo, todas as vertentes de pensamento simpáticas à equivalência entre todo e logro soma louros à memória de Adorno, desde os cuidados de mínima moralia à escala da Negative Dialektik.
Ideologia necrosada e dispositivo
Como ideologia reificada na dinâmica socioeconômica e nas práticas cotidianas, a realidade se tornou gigantesco dispositivo, dissuasivamente tão escancarado quanto imperceptível. Esse argumento se assenta na perspectiva biopolítica de Foucault a Agamben e da psicopolítica de Han. A ideologia necrosada como realidade equivale a um logro autocamuflado na forma de armadilha de enredamento para a percepção e para a subjetividade: ela enlaça a ambas e as amalgama no horizonte presenteísta do status quo, para que nele esgotem sua energia. O lugar do desejo de consumo na estrutura social, junto com a função sistêmica desempenhada pelos veículos de comunicação de massa e digitais conservadores, galvaniza, voluntariamente e não sem loas, a armadilha que deveria, antes, ser objeto de reserva e combate. Esse desejo, que hoje joga com o gozo cidadão do pertencimento, da participação e do compartilhamento em redes digitais privatizadas, conflui para a reprodução social-histórica do existente, mesmo que o considere longe do melhor dos mundos.
Paradoxo do fenômeno ideológico
A rigor – reconheça-se –, a ideologia reificada não precisa ser atirada ao plano da percepção para ser pilhada. Como lembra Zizek, seu estado trivial, materializada ou não, já é o de estar escancarado, embora passível de ser conhecida com profundidade apenas através de depreensão intelectiva, após as mediações atinentes. Esse trabalho de re-elaboração pode requerer um metaprisma conceitual contraposto aos prismas usuais da vida cotidiana – vale dizer, uma angulação heterodoxa para legibilidade das manifestações da ideologia como dispositivo, na forma-fluxo da semiose do mundo. Essa condição reforça o estranho paradoxo sociofenomenológico da ideologia: aparentemente oclusa, constituindo o tecido objetal e simbólico da realidade e forrando seus interstícios, ela permanece totalmente disponível para ser percebida e dissecada a qualquer momento.
Politização da transpolítica
A contraposição a essas modalidades conexas de “ideologia aterrada”, em nome da crítica como instrumento vital de trabalho e sobrevivência psíquica (para lembrar Lasch e Adorno), deve começar obviamente pela nomeação reescalonada do próprio fenômeno e pela explicitação de suas filigranas e ciladas. O procedimento, recolocando a ideologia na mesa de discussão, permite tratá-la justamente na esfera de referências da qual ela escapou para se hipostasiar e se necrosar – ou seja: a esfera do léxico e do conceito, da linguagem (verbal) e da política (lato sensu), à luz da ética da transparência.
O contradito estrutural à ideologia reificada é a politização da transpolítica, visando interceptar, mesmo que minimamente, seu desdobramento como condição transcendente, irreversível e inapelável. O labor dessa politização equivale a um modo de tensionamento sine qua non e incondicional do status quo, mais radical (de raiz) que a crítica institucionalizada corrente, geralmente desempenhada pelos media corporativos e conservadores e pelos partidos políticos e instâncias adjacentes ao aparelho de Estado. A destranspolitização contraideológica se posiciona, por assim dizer, à esquerda filosófica da esquerda tradicional do espectro político.
Como sucinta contribuição nessa direção, a série de artigos “Transpolítica da ideologia” não deixa de exercitar, à sua maneira, essa operação cognitiva, no plano do confronto reflexivo com a dinâmica hipostasiada das relações sociais.
Epílogo
A ideologia de conservação, depois de necrosada nas condições materiais da existência, não tem mais para onde escapar. Não pode ser revertida, isto é, desmaterializar-se.
À luz da experiência histórica, não seria equivocado nem inverídico arriscar que, nessa etapa, a ideologia, em regra, se avoluma ao limite, assume ápice e entra em ocaso, ainda que tal processo consuma séculos ou até milênios para cumprimento de seu arco completo. Essa ocorrência não se realiza sem comprometer o conjunto objetal em que a ideologia se necrosou como dispositivo. Mutatis mutandis, guardadas as escalas de tempo histórico, implica-se aí o destino do próprio modo de produção (material e simbólico): o de desaparecer como a própria ideologia que ele deglutiu no banquete das narrativas reacionárias e conservadoras, sem saber que era veneno.
EUGÊNIO TRIVINHO é Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Este artigo é o quarto e último da série “Transpolítica da ideologia”, que evoca e desdobra o conceito de ideologia, incluindo uma radiografia da regressão histórica e estrutural no Brasil, representada pela ascensão do neofascismo como política de Estado.