Transpolítica da ideologia: dinâmica socioestrutural incólume

Transpolítica da ideologia: dinâmica socioestrutural incólume
O castigo das quatro estacas nas colônias, Marcel Verdier, 1843 (Reprodução)

 

Como alguém escaparia diante do que nunca se põe?
Heráclito

A ideologia recobrada

Em abril passado, a imprensa nacional divulgou o conflito fatal entre um porteiro de condomínio de luxo e um motoboy responsável pela entrega de encomenda no local. O desentendimento, ocorrido na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, girou em torno da porta de saída do motoboy – se pela “principal”, proibida pelas regras do condomínio, ou pela de “serviço”, não utilizada pelo profissional após a realização do trabalho. A segregação arquitetônica (que, no fundo, é cultural e política) motivou a violência física dentro do próprio edifício. O porteiro sacou de um guidão de bicicleta na guarita. O motoboy, porém, o tomou na sequência. Após ser golpeado várias vezes pela barra de ferro, o funcionário do edifício foi hospitalizado e faleceu dias depois.

Esta enésima tragédia não deixa de, sempre em tempo e com sangue, lançar luz na visibilidade esfumaçada dos dias, tão escancarada quanto paradoxalmente obliterada. Na berlinda do facho, repousa, silente e garbosa, a dinâmica socioestrutural da ideologia.

A aparente coincidência desse grave soluço de luz com as tendências políticas e sociais no Brasil não espanta os mais avisados. A violência da banalidade necrosa o inacreditável como normalidade absoluta. A impressionante posição regressiva da República brasileira a práticas políticas e morais similares às de séculos passados, reaviva, na totalidade, a semântica de conceitos que vertentes teóricas como o pós-estruturalismo e o pós-modernismo haviam enterrado com convicção. Essas concepções se pressupunham fiéis à ontologia sociofenomenológica do capitalismo, expressa na fase histórica de sua dinâmica financeira e interativa, sem levar em consideração a variabilidade independente de franjas escabrosas intempestivas no plano político e cultural.

Não por acaso, a regressão nos trópicos brasileiros, por sua envergadura antropológica, consegue chacoalhar e arrastar consigo até mesmo a legitimidade da recuperação de esquemas ideológicos sub-hegemônicos – esquemas historicamente sucateados, mas nunca totalmente superados; vale frisar, relativamente “desempoderados”, mas nunca desaparecidos. Essa evocação, progressista em esclarecimento público, enquadra, em retorno, o conflito de rua antes mencionado. A sucinta reflexão abaixo pode ser generalizada para casos similares.

Transpolítica da ideologia

As rígidas regras da desigualdade econômica, que a subjetividade conservadora, em particular a de patamares superiores da pirâmide social, converteram historicamente em estranha ética naturalizada, sempre serviram para desvalorizar, exterminar e reciclar corpos na planície.

Os “estamentos” sociais condicionadores dessa desigualdade, especialmente os mais blindados em privilégio, assistem a tudo como se do cimo de uma abissal segregação: ao referendarem a pressão social para condicionar, desde terreno consuetudinário (sem a necessidade de leis expressas), as regras de distinção no interior da cidadania, gestam a animosidade generalizada que acaba por fazer com que, na própria planície, uns matem outros, sejam punidos os homicidas e/ou morram nas prisões, não sem antes pensarem, eles mesmos, os pobres engalfinhados e suas famílias, que tudo se realiza por razões exclusivas de personalidade, caráter ou índole individual.

O “engenho feiticista” da dinâmica social que envolve, por dentro, a consciência cotidiana reduz tudo e todos, exclusivamente, a processos microssociais, no reduto da interação entre pessoas. A estrutura dessa dinâmica, ela mesma, resta ilesa. O questionamento mais acerbo, coletivo e organizado não tem conseguido granulá-la.

O ardiloso artifício dessa transpolítica no capitalismo é o da invisibilização total e permanente da vera culpa (se de culpa se trata) e dos culpados indiscutíveis, com faces e nomes: tudo se desfaz numa cortina de fumaça, subtraída, por sua vez, do campo de visão cotidiano. Qualquer responsabilidade, por assim dizer, “motora” (propositora, fomentadora e atiçadora) por parte dos autointitulados e pretensos “proprietários” desse modelo social de mundo fica ausente do panteão perceptivo comum, alijado, em geral, de instrumentos conceituais que otimizem a apreensão da dinâmica do processo inteiro, macroaculturador e civilizatório por natureza.

Ainda pouco explorada, esta engenhosa “arte” da transpolítica opera numa escala para além da política convencional, disputativa de poderes de Estado. Cabe ao esforço teórico dar-lhe concreção e lançá-la de volta à mesa de discussão pública, justamente a da política (agora aberta, lato sensu), de suspeita producente e tensão contínua, sob o crivo da razão democrática.

Como se sabe, a partir do início do século 20, os meios de comunicação de massa começaram a se implicar nessa espiral transpolítica e dissuasiva, à sombra da preservação invariável (voluntária ou não) do status quo, colaborando para a blindagem do processo legitimatório da ideologia como forma de segregação e confinamento de diferenças no terreno da invisibilidade. No estrato oposto, o da (super)exposição mediática, passou a comparecer, nos terminais de consumo, apenas o “permitido”, seja por filtragem de interesses e autocensura corporativos, seja por ressonância estrutural da agenda multimediática, regulada por intensa concorrência nos segmentos comerciais do ramo.

A proliferação de meios digitais (fixos e miniaturizados), a partir de meados da década de 1980, alterou significativamente o processo de conservação social-histórico do modo de produção majoritário, sem, no entanto, afetar fundamentalmente a sua futuridade. Do ponto de vista macrossocial, o necessário engalfinhamento interativo de milhões de indivíduos, de vertentes políticas distintas, no rodamoinho de um excesso simbólico diuturno – essa espuma nacional e internacional de discursos e narrativas vindos de todos os lugares e apontando para todos os caminhos – faz, por proeza de outro lado, que as vigas de sustentação material, simbólica e subjetiva desse modo de produção prossigam incólumes. Tais sustentáculos integram vetores ou magmas tradicionais conhecidos, entre eles o político-hierárquico, o econômico-financeiro, o corporativo-organizatório e o jurídico-contratual – todos coercitivos, de algum modo e em algum grau de intensidade.

Desse ângulo de observação, a aguda resistência política de lugares de fala democráticos contra tendências neofascistas atuais é, por certo, crucial para a disputa dos poderes de Estado e para a proteção de instituições e horizontes republicanos. Não obstante, tornou-se, ao mesmo tempo, ingrediente sistêmico utilíssimo ao hipostasiamento historicamente necrosado da ideologia; e, não se tenha ilusão, passou a ser esperado pelos ultraconservadores mais abastados, conscientes e discretos. O capitalismo tardio, por injunções tão façanhosas quanto perversas, fez que o vespeiro simbólico essencial de todos os dias colaborasse para a pavimentação de seu próprio cenário – aquele, inóspito, da própria luta. Por diferença de escala dimensional, a disputa pelo regime político e pela forma de governo não alcança – ou, ao menos, não tem alcançado – a transpolítica do processo inteiro.

A defecção do Estado

Em relação à contenda fatal entre os dois pobres trabalhadores no Rio de Janeiro, bem como de todos os conflitos agudos na sociedade civil, Hobbes já o havia sinalizado, no século 16, que o Estado precisava se desenvolver como solução de mediação social para impedir que os indivíduos se matassem uns aos outros, sem julgamento e punição justos, correspondentes aos atos praticados.

Nessas condições, focando exclusivamente o perímetro brasileiro, o Estado – res pública içada pelo bolso da população e que, em nome e em prol dela, deveria abolir o fundamento maior de grande parte dos conflitos sociais, isto é, a desigualdade material entre indivíduos, grupos, categorias e classes – deixa, no caudal de governos conservadores, de tocar na ferida principal para, quando muito, mitigar, de modo populista, os efeitos colaterais devastadores de um desenvolvimento capitalista indiscriminado. Esse reducionismo malquisto e permanente, típico de uma defecção histórica e cultural, pendura a questão da ideologia no imaginário de um atraso que o Brasil jamais merecia.

EUGÊNIO TRIVINHO é Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Este artigo é o primeiro da série “Transpolítica da ideologia”, que evocará e desdobrará o conceito de ideologia, incluindo uma radiografia da regressão histórica e estrutural no Brasil, representada pela ascensão do neofascismo como política de Estado. 


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