A necrose da ideologia

A necrose da ideologia
O homem controlador do Universo, Diego Rivera, 1933 (Foto: Reprodução)

 

O avanço da extrema direita no Brasil e no mundo robusteceu a importância da noção de ideologia. A tarefa de evocação renovada desse conceito passou a cumprir função estratégica de esclarecimento sobre as regressões históricas e estruturais em curso no país. Tais regressões desenterram, sem cerimônia ou vergonha, vezos clássicos da ideologia. Conforme esperado, os advogados do descalabro, porém, o atribuem, como pecha, aos inimigos. O desenterro de antigos diagramas e sentidos – sendo o primeiro o escamoteio e a ocultação, galvanizados pela mentira e má-fé da desinformação politicamente calculada – ocorre ao mesmo tempo em que o gritante coro cinzento do reacionarismo convive com a dinâmica transpolítica do capitalismo, doravante em fase-neon de expansão infotecnológica e algorítmica, no rastro arruinador da globalização neoliberal e financeira.

A série de artigos “Transpolítica da ideologia”, publicada pela Cult, contribui para destrinçar os liames multilaterais e subsumidos da questão. O conceito de ideologia prevalece tão esgarçado e mal compreendido quanto fortemente presente entre tantas ameaças antirrepublicanas e antidemocráticas.

No contexto da série, a transpolítica abrange fenômenos, acontecimentos e tendências cujo modus operandi escapa ao arco de potência, controle e transformação – em última análise, poder de permissão e proibição, vida e morte – da política institucionalizada e, mais extensamente, de seu diâmetro imaginário conservantista, tais como ambos se apresentam formalmente na teia de instâncias e relações legadas pela modernidade política dos séculos 18 e 19.

A temática deste terceiro artigo é a necrose sociofenomenológica da ideologia, espelho do modus operandi transpolítico. (A reflexão foi desdobrada num quarto texto, dedicado aos nexos umbilicais entre necrose ideológica e práticas sociais).

Hipóstase absoluta da ideologia

A tradição epistêmica de Marx cedo viu-se, com honrarias, provocada a contextualizar e esclarecer o fenômeno. A “cortina de fumaça” aí implicada (com aspas, para ressaltar seu caráter suposto, como será visto), chama-se ideologia hipostasiada no e como modo de produção. A Escola de Frankfurt, de Adorno e Horkheimer a Habermas e Honneth, foi a vertente que melhor apreendeu o processo. Essa teoria crítica percebeu que, nos países economicamente afluentes, a ideologia de conservação havia, por assim dizer, descido dos céus – do pensamento, das ideias e da linguagem – e se materializado: abandonando o universo das narrativas (teleológicas ou não), tinha se “aterrado” nas estruturas objetivas do estrato jurídico, socioeconômico e tecnológico do capitalismo tardio; havia, em suma, se reificado (para utilizar uma conhecida expressão marxista, recentemente reelaborada por Honnett no âmbito do reconhecimento do outro). Como tal, a ideologia justificatória da reprodução do status quo não carecia mais de “vocalização” (por códigos verbais ou orais), à sombra do plano simbólico da vida social. O movimento histórico da reificação estava consumado.

Essa hipóstase absoluta equivale ipsis litteris a uma realização, isto é, um processo de conversão objetiva e progressiva de determinado vetor ou fator em realidade banalizada, com resultados pretensamente eternos. No arco desse acontecimento sinistro, o que é convertido “evapora” do plano simbólico e perceptivo. Sua existência como coisa particular, no reino extenso das coisas, dispensa o vetor ou fator objetivado (e também “objetalizado”) de produzir pretextos em seu favor. Em outro registro, a ideologia não precisa ser acompanhada de códigos verbais porque, sendo o mundo sígnico e organizado por linguagens diversas e em diferentes camadas, tudo o que se apresenta como aquém ou além de qualquer verbo (escrito ou oral) já é semiótico em seja qual for a veia. Se a semiose é a tessitura do real, a ideologia a habita desde o cerne.

Essa inexigibilidade universal e impessoal da ideologia como narrativa não significa, porém, desaparecimento de sua falácia dissuasiva. Como Marcuse já o havia sinalizado em meados da década de 1960, a ideologia como eixo descentrado de conservação socioestrutural foi, a começar pelos Estados Unidos, levada às últimas consequências. A falácia dissuasiva realizada corresponde a um estágio histórico mais aprofundado do processo de reificação. Sua força de objetivação, vale dizer, de transposição estrutural e projetiva na forma operacional de um mundo específico, incluindo a própria sofisticação da coisificação como infraestrutura tecnoeconômica, contribui para que a materialização da ideologia seja majoritariamente tomada como referência “estável” da vida humana, bem como fator de “estabilidade” para as relações sociais.

Esse processo sociofenomenológico se coloca para além do perímetro da política instituída: equivale, antes e em síntese, à lógica da transpolítica. Para todos os efeitos, é como se não houvesse ideologia, mas – na miragem da “normalidade” – apenas “obviedade”, “realidade verdadeira”, “vida”, numa demonstração de que o absurdo, ao mesmo tempo que se materializa, muda de natureza e “desaparece” à luz do dia. O ápice crônico da reificação ocorre quando o fetiche materializado é baliza permanente, legal ou consuetudinária. A transpolítica do fenômeno ideológico coincide com o momento autoeclipsante de sua necrose.

A desnecessidade histórica de que esse logro objetivo-dissuasivo seja acompanhado por uma narrativa não significa que ele não se apresente como discurso idiossincrático e assim possa ser apreendido. Analiticamente, narrativa e discurso são, grosso modo, dimensões distintas do plano da expressão, explícita ou não. Narrativa equivale a um modo de organização do sentido, desde a estrita lógica formal até a oralidade cotidiana. Discurso é a linha ou tendência do conteúdo que articula estrutural e internamente a narrativa, não raro fora da explicitação no código utilizado.

Em especial a partir da década de 1980, o caráter facultativamente dispensável de um centro ideológico de produção narrativa, exógeno à subjetividade individual e com poder jurídico-político de controle, repressão e/ou coação, tem combinado, nos países ocidentais (sobretudo os desenvolvidos), com a seguinte condição antropológica: durante o processo de socialização, a maioria dos indivíduos já recalca o fundamental para enquadramento às regras e tendências correntes, sem a necessidade de flagelo corporal.

Essa “entronização regularizadora” da violência estrutural do mundo contribui para que cada qual saiba administrar e amenizar o terror psicoemocional ligado a exclusões ou segregações na disputa por espaços de trabalho, expressão e reconhecimento sob condições de gargalo capitalista. Como a Escola de Frankfurt o demonstrou amplamente, o controle social “incorporado” pelos indivíduos engendra, pela própria lavra deles, até mesmo versões de crítica social com potencial domesticado, passíveis de circulação sistemicamente aguardada, independentemente de eventuais distúrbios temporários que possam provocar.

O argumento não traz novidade. A biopolítica, com sua liminar inovação teórica, não precisou constatar pela primeira vez que cada modo de produção, assim como cada época, labora perfis de subjetividade compatíveis com a reprodução social-histórica das condições materiais e simbólicas vigentes. O freudomarxismo alemão, de Reich a Marcuse, bem como a sociopsicologia norte-americana, com Lasch, já o haviam especificado. A notação data, pelo menos, dos anos 1930.

Como se sabe, esse fluxograma sistêmico de conformação entre indivíduo e sociedade não deixa de abarcar a produção simbólica de todos os ramos da visibilidade mediática, dos jornais impressos tradicionais aos meios digitais miniaturizados. Em alçada macroestrutural, pouco importa a tendência política pressuposta desses media, se ultraconservadora, reformista ou de extrema-esquerda.

Conforme apontado no segundo artigo desta série, narrativas conservadoras e reacionárias, que jamais desaparecem, incluindo agora fake news e desinformação, absolutizam regressões na esfera simbólico-discursiva simplesmente porque disputam regimes e tendências políticas para controle do aparelho de Estado, em favor da hegemonia de estratos sócio-hierárquicos alinhados ao neofascismo e ao neoliberalismo. O caudal de disputas políticas, como observaram Laclau e Mouffe, alcança a agudização de conflitos envolvendo “significantes vazios”, vocábulos que, como unidades voláteis de sentido (“democracia”, “liberdade”, “igualdade” etc.), operam como eixos multiarticulatórios de catalisação e aglutinação (temporária ou durável) de forças políticas heterogêneas em prol de causas específicas (circunstanciais e/ou estruturais). Não obstante, por mais abrangentes e intensos que sejam, os resultados da disputa – enfatize-se –, não atingem (ou, ao menos, não têm atingido) o coração do próprio modo de produção (material e simbólico).

Processada no terreno da institucionalidade, a disputa o ajuda, ao contrário – e sempre –, a se reproduzir praticamente ileso, galgando fase a fase sociotecnológica, a saltos ora planejados pelo Estado, ora aleatórios e precários, todos não-lineares. Fica, assim, afastado o ocaso essencial: a ideologia “aterrada”, como antídoto de “pressão autopoiética” por permanência, remedia a entropia.

Reificação da ideologia: contextualização histórica

Evidentemente, a ideologia não se incorporou à dinâmica infra- e macroeconômica do social apenas no século 20; e a hipóstase fetichizante não é exclusividade histórica do capitalismo.

A rigor, a reificação da ideologia já vigia embrionária nas subjetividades e coisas, nos processos, relações e tendências desse modelo societário desde seu surgimento, no celeiro europeu renascentista. O transcurso secular de robustecimento expansivo da hipóstase na materialidade social acabou por fazer a dissuasão típica da ideologia prescindir de qualquer acompanhamento narrativo-justificatório. Tudo funciona como se à sombra metafísica de uma colossal melancolia histórica: mutatis mutandis, o encapsulamento reificado da ideologia no capitalismo tardio evoca, em certos aspectos, a fase consolidada do feudalismo europeu.

Exceção feita ao verbo religioso, com incidência diária, esse modo de produção, fincado na autoridade normativa dos valores de casta, linhagem consanguínea e juramento de fidelidade, igualmente objetivados, não precisava, em seu apogeu, de validação discursiva ou narrativa contínua por parte de um centro de poder político: vigorava per se como acontecimento social-histórico e cultural autolegitimado desde os primeiros raios de opressão do dia, a justificar, como “fluxo inquestionável de vida”, coerções e punições a “desvios” de conduta.

Por certo, o liberalismo econômico e sua corruptela mais soberba, expressa no pacto neoliberal e financeirista dos anos 1990, como macrovisões de cobertura ao orbe intercontinental do ocidente, perduram com força, sob lastro na “eficiência tecnocientífica” celebrada pelo sistema publicitário dos principais ramos de produção e atuação (do bélico ao bancário, do mediático à eletrônica de consumo, do agropecuário ao de transporte, do biomédico ao astrofísico etc.).

Como protocosmogonias sobre a história e sobre o futuro, no entanto, sua função sociopolítica é outra. Longe da mera legitimação do status quo, eles visam garantir sobrevida ao capital monopolista após crises presumidas e recorrentes. O processo se realiza segundo a cartilha historicamente objetivada: expansão planetária com a maior longevidade possível e com adiamento intermitente da entropia, além, claro, da neutralização institucional e internacional das forças endógenas e externas de oposição, se necessário com emprego de força militar e policial.

Hipóstase ideológica e velocidade

Em fases socioculturais pregressas da ideologia, quando ainda no terreno exclusivo da linguagem e, mais amplamente, no plano simbólico da vida social, havia, entre narrativa conservadora emergente e materialização hegemônico-massificada no comportamento e ação individuais, um considerável intervalo de tempo – aquele da maturação ideológica hipostasiada em escala ampliada. Nesse hiato volátil, subsumiam-se mediações simbólicas necessárias (institucionais ou não) entre um momento e outro.

A partir da segunda metade do século 20, constatou-se a contração paulatina desse “intervalo operacional” até a sua obliteração (para não dizer asfixia) propriamente dita. O processo culminou no acontecimento antes assinalado: a hipóstase completa da ideologia na infraestrutura sociotecnológica e econômico-financeira que sustenta, com dinâmica peculiar, o modelo de mundo vigente. Tudo se passa como se o valor de uso das mediações discursivas e narrativas de legitimação pudesse ser descartado.

Até nesse recorte, pode-se observar o estatuto funcional da velocidade, sob o prisma de sua própria corrosão. Eliminado o tempo de maturação ideológica expansiva, em que a disputa pela velocidade de materialização jogava papel exponencial, ela, a velocidade, como valor social, pode ser totalmente abandonada: perdeu utilidade, por ultrapassagem de seu prazo histórico de validade.

Essa notação merece desdobramento sucinto. Entre realidade ideologizada como mundo circundante e percepção individual (e, vice-versa, desde o ambiente residencial até a paisagem metropolitana, incluindo a atmosfera mais recôndita das subjetividades), míngua, cada vez mais, o intervalo apontado. Em seu lugar, há, em regra, retroalimentação direta e endógena, independentemente de o circuito simbólico conservador (de notícias, imagens, mensagens, dados etc.) ser “interceptado” por versões diferenciadas de crítica social como instrumento de trabalho e de vida. Essa retroalimentação, desenrolada como se no âmbito protegido de uma proveta social-histórica, mostra-se obviamente mais homeostática (isto é, sem tensões importantes) e constantemente intocada nos estratos sociais reacionários e conservadores.

EUGÊNIO TRIVINHO é Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Este artigo é o terceiro da série “Transpolítica da ideologia”, que evoca e desdobra o conceito de ideologia, incluindo uma radiografia da regressão histórica e estrutural no Brasil, representada pela ascensão do neofascismo como política de Estado. 


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