Na poesia, a pulsão do nome

Na poesia, a pulsão do nome
O poeta Alberto Pucheu, autor de 'Para que poetas em tempos de terrorismos?' (Caio Meira/Divulgação)

 

 

Abre-se o livro Para que poetas em tempos de terrorismos?, de Alberto Pucheu, com o diálogo entre duas falas acerca da possível morte da poesia: sabe-se, então, que a poesia se encontra viva e que mortos estamos todos; alguns de nós, embora mortos e então fantasmas, conseguem vê-la; em outro poema tenso, expressam-se reflexões sobre a imagem: a imagem unida a juramento e centralismo; a imagem e sua incaptura; somos vistos sem sermos olhados, um poder espectral sobre nós paira e nos assombra; nos ardorosos versos-prosas, toda a sabedoria de um dizer que vibra: vigor, densidade e pensamento unidíssimos; os poemas têm carne e músculo e osso, declaram seu modo de modificar a primazia do sentido: valem-se de um sábio reverter; neles, a escolha do comum: gente, rio, mato; neles, a recusa das formas brutas do bruto capital: e que se entenda que o nomear alguém de terrorista se deve ao pavor reinante das forças da alteridade solto em toda parte.

Desfaça-se a ilusão do “nós somos”, esse sintagma a invadir e a aniquilar tudo que se inscreva na rubrica de “o outro” – o sempre posto como o bárbaro; um soco o livro dá nas modalidades múltiplas de colonização; faz-se do poema o manifesto contemporâneo: não um projeto, mas um mapeamento e um ímpeto; eis uma obra em ato e gesto; nela, índios, garotos do tráfico, homens-bombas; nela, as empresas, os mercados, as instituições de mando, a guerra; eis a obra em ato e embate; apesar de tudo, as mecânicas normalidades cotidianas mantêm-se ao redor, como se nada do terror houvesse, um susto isso; e os homens que se situam do lado assassino da história falam de suas famílias, brindam os crimes: parlamento, mídia, judiciário, o grande acordo de morte; os poemas sem cessar os expõem ao saber crítico-lírico-guerreiro e desmontam o senso comum, o conservadorismo, a violência diária, a expansão rápida do pior; e para a questão “em que se crê”, como resposta, o minimalíssimo sinal de exclamação; a afonia finca-se em versos de magnitude imensa, e há sangue, nervo, vômito.

Um escrever sobre este livro vive o que o livro leva à tela: o como o como o como dos começos, como? Diante de um cosmo de sensações e ideias, perdição e êxtase diante de; aqui também uma “anoficina” de escuta crítica; um berro altivo pelo amor ao fora clamam os poemas que decidem avocar os nomes dos amigos, dos pensadores, dos lugares, das coisas; poemas com nomes, poemas de nomes; na poesia esta, a pulsão do nome; e faz-se assim uma literatura tão menos europeia, viva!

E ali os sinais de vida: pintura chinesa, cheiros, barulhos aquáticos, e o enigma-peixe, o enigma-boi, o enigma-porco – a exuberante morte, enfim; culpa, paixão, dor; o término da avó, o término do avô; o seco crânio para que fale sua frase eterna o jovem Hamlet; junto a tal, os poemas-extrusivos, as quase mortes: a quase a quase morte do chofer que mataria na estrada a quase morta jamanta; o quase, o valor do quase: vence o reinante viver contra a truculência geral; e, ainda, Leonard Cohen, nevermind, ressurreição, o deixemos ir; não havendo crença, há amor no escrever; e mais há: há obsessão, assiduidade, o deixar o espírito ser apoderado por pathos; um arsenal de frases e musicalidades postas no livro em louvor à grande glória do não-dizer; teorias diversas acerca dos procederes de um verso que nem é verso nem é prosa: está o livro na amplitude do para além de; os poemas sim, curram, sim, trazem gozo, sim, desfazem língua, gramática, palavra: e tudo caminha não apenas para o não-dizer mas também para o terreno de o antes de, o antes do poema: um seu luminoso exterior arcaico absoluto.

Fuga, desarmamento, nudez no quanto ao ser-poeta: dissipar a assinatura, desfazer a identificação e, entre nadador e mar, dar-se mar; e então a alegria do depois; máquina de estranhezas, capturas de bugios e ressonâncias; o depois a instaurar a primariedade do segundo, a posterioridade: a festa do depois do poema, poema como um depois; odes ao vale do Socavão em que habitam a escrita e quem escreve: tempestade, céu, vento, plátano, cerejeira; fusões entre poesia e espaço; nos poemas, o pujante tema do resta-a-dizer; matérias históricas e sociais em proximidade com os animais que gestam para ali a lira clássica: as ovelhas e suas tripas, as vacas e o couro seu, as tartarugas – o canto das tartarugas; guerra e vitalidade; grito e carícia.

A pergunta do título conduz a possibilidades de respostas, todas multiplicadas por questões a envolverem tanto a arte da escrita intensiva do poema quanto a arte da escrita intensiva da política; trata-se de livro de poemas com proposições crítico-epistêmicas, o que o torna diverso de tudo ou de quase tudo feito no âmbito da poesia entre nós: um livro, pois, diferido, bravo e efetivamente contemporâneo: pioneiro; em suas linhas gráficas, o pensamento ele-mesmo e seu tanto de ideias; o poema-pensamento dispõe-se a trabalhos de construção de armas de aprendizagem e de luta com teor tão poético quanto libertário; elabora-se como se um especial tratado, composto de teses sobre o existir em geral e sobre o existir no solo da cultura presente aqui e fora do Brasil; havia desaparecido na literatura do Ocidente essa natureza discursiva que tem em Shakespeare seu mais direto modo de fazer, a de, com cuidadas e tantas palavras, levar a público um pensar ininterrupto, abrangente, vibrante: poemas-de-pensamento são raríssimos entre nós; poemas entre nós apoiam-se especialmente na escuta rítmico-amorosa, bem mais do que na escuta crítico-heterotópico-reflexiva; fazer em arte poético-verbal uma epistemologia do espaço de natureza geopolítica, eis uma marca da contemporaneidade radical do livro; à questão Para que, o livro desenha caminhos; diz em suas curvas: para marcar as vozes que se empenham pela horizontalidade dos bens; para frisar haver diferidos modos de guerrilha, para indicar que haja pulsando não o construtor mas o constructo – a poesia; canta-se inteiramente a poesia: seu caráter insurrecional, sua poderosa capacidade de recusa ao poder quando em sua forma vil; por toda parte, pontos de interrogação; interrogações a seguirem outras e mais outras e mais outras; no livro de mil sinais da perplexidade pós-dramática de uma escrita-inquietude-e-gozo, alastram-se poemas arrebatadores; poemas em papel como se grafando a inquietude e o espanto a um só instante e, neles também, os sinais da interjeição coletiva, ora direta ora tácita – interjeições sempre necessárias nessas horas de sanguinário desmonte da pólis-Brasil; nascem os poemas desse estado de empenho e de entrega e de batalha; formam-se pela luta com o estupor; os poemas todos os poemas ali executam sua pragmática plástico-política, sem hesitações; traços do que estava de afirmativo na história sendo escrito e daquilo de monstruoso que então de tal escrita com truculência se apossa; assinala-se o desmonte de uma escrita geral e partilhada que se estava tentando plasmar; com esse gesto ativista, desfaz-se uma tradição europeia de escrita submissa a certa ideia de beleza, isso sem descuidar dos lugares e modos epifânicos dessa arte-ato; poemas largos e exigentes a desenharem desde aquele golpe de retirada do governo de uma presidenta legitimamente eleita e sem qualquer fato que justificasse a violência de seu rapto sórdido até seu ininterrupto seguir, um seguir feito de mais golpes em nossa inaugural conquista de direitos; expor, compreender e conclamar; acontecimentos com seus distúrbios e uivos.

Como continuarem de pé poetas e poemas e todos nós, se de pé já não se sustentam ideias, valores, ações? Como escrever, se a casa que abrigava a escrita e as gentes quase de uma só vez desaba, como? Assim, diz o livro: prosseguindo; indo ao fulgor.

 

Para que poetas em tempos de terrorismos?
Alberto Pucheu
Azougue Editorial
136 págs. – R$ 32

Roberto Corrêa dos Santos é doutor em Semiologia pela UFRJ

 

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