Arcas de Babel: Matheus Guménin Barreto traduz Rilke
Matheus Guménin: Dificilmente se consegue falar em modernidade literária contornando o nome de Rilke (Fotos: Divulgação)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Na edição de hoje, o poeta e tradutor mato-grossense Matheus Guménin Barreto transcria e apresenta poemas de Rainer Maria Rilke.
Barreto (1992) é autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Leipzig na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg. Teve poemas traduzidos para o inglês, espanhol e catalão; publicados em revistas no Brasil, na Espanha e em Portugal. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Publicou em periódicos ou em livros traduções de Brecht, Bachmann, Bobrowski, Nelly Sachs, Celan, Peter Waterhouse, Rilke e outros. Entre os cursos que ministra esporadicamente está o “Verso vivo: introdução ao verso livre e ao verso fixo de Shakespeare a Criolo”.
Em seu doutorado, traduz textos de Hans Sachs (1494-1576), Angelus Silesius (1624-1677), Sibylla Schwarz (1621-1638), Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Rainer Maria Rilke (1875-1926), Nelly Sachs (1891-1970), Ingeborg Bachmann (1926-1973), Herta Müller (1953), Peter Waterhouse (1956) e Ann Cotten (1982).
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Rainer Maria Rilke (1875-1926) foi alçado, ainda em vida, à condição de poeta exemplar, e a contínua reatualização de sua figura no cânone literário ocidental faz dele um dos artistas mais influentes dos séculos 19 e 20. Sua obra – retomada por figuras tão díspares quanto Martin Heidegger (1889-1976) e Lady Gaga (1986) ou Dmitri Shostakovitch (1906-1975) e Patti Smith (1946) – se espalha por poemas em alemão e em francês, textos em prosa, cartas, ensaios, peças teatrais, traduções e discursos; de modo que, ao fim e ao cabo, dificilmente se consegue falar hoje em modernidade literária contornando seu nome.
Já foram escritas centenas e centenas de páginas sobre a conturbada recepção de Rilke no Brasil – e, para apontar os mundos inteiros (e quase antagônicos) que coexistem na obra rilkeana, basta nos lembrarmos que Rilke foi evocado entre nós tanto pelos poetas classicizantes da chamada Geração de 45 quanto pelos poetas concretistas e neoconcretistas algumas décadas depois. A estilização de um Rilke quase místico, brumoso, coexiste ainda hoje com a recepção deste como um artista experimental, vanguardista. Sugiro aos que se interessarem por esse tema o ótimo artigo de Vagner Camilo (USP), “Nota sobre a recepção de Rilke na lírica brasileira do segundo pós-guerra”.
Escolhi trazer para a coluna Arcas de Babel (com curadoria da poeta e professora Patrícia Lavelle, a quem agradeço mais uma vez o convite) três traduções minhas de poemas bastante díspares e, por isso mesmo, representativos da obra de Rilke: “[O que farás, Deus, se eu morrer?]” de O livro das horas (livro publicado em 1905, poema escrito em 1899), que dá a ver algo da atmosfera nebulosa comumente associada à obra rilkeana, porém através de uma voz lírica radicalíssima, absolutamente moderna ante um Deus frágil e dependente; “O alquimista” de A segunda parte dos Novos Poemas (livro publicado em 1908), que traz o insólito ao campo do poema e que poderia, sem grandes ajustes, ter sido assinado por Jorge Luis Borges (1899-1986); e, finalmente, “A oitava elegia” de Elegias de Duíno (livro publicado em 1923, poema escrito em 1922), poema longo que radicaliza a antiga tensão entre poesia e filosofia e lhe traz uma voltagem toda nova, levando o poema a encontrar eco em alguns dos mais influentes filósofos de língua alemã do século 20.
Procurei criar em minhas traduções poemas estruturalmente análogos aos poemas de Rilke, ou seja, poemas que estivessem em uma relação “paramórfica” (pensando aqui no conceito de Haroldo de Campos) com os textos em alemão, mas sem ignorar a clareza sintática destes – a exceção estaria nos versos um pouco mais cifrados de Rilke em “A oitava elegia”. Em outras palavras, busquei recriar as assonâncias, aliterações, rimas internas e externas, tensões frasais e espelhamentos sintáticos dos poemas rilkeanos (aquilo que Campos chama de fisicalidade ou materialidade dos signos).
No primeiro poema, por exemplo, no qual a estrutura de estrofes e rimas não é consagrada, achei mais importante criar uma profusão de rimas e assonâncias no decorrer do poema do que criar rimas externas nos exatos versos em que Rilke as cria.
Em relação ao metro dos três poemas, busquei me limitar aos mesmos metros jâmbicos que Rilke emprega (sendo o jambo um par de sílabas no qual a primeira tende a ser fraca e a segunda tende a ser forte): no primeiro poema, versos tetrâmetros jâmbicos (sequência de quatro jambos); no segundo, variação entre tetrâmetros e pentâmetros jâmbicos (sequências de quatro e de cinco jambos); no terceiro, pentâmetros jâmbicos não rimados (sequência de cinco jambos).
Que aprendamos, aos poucos, a (re)ler essas outras – vertiginosas – modernidades. – Matheus Guménin Barreto
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[O que farás, Deus, se eu morrer?]
O que farás, Deus, se eu morrer?
Sou eu teu cântaro (e se quebro?)
Sou o que bebes (se apodreço?)
Sou tuas vestes, teu dever,
perdendo-me, perdes sentido.
Sem mim perdes um lar só teu
onde te acolham com carinho.
Cai dos teus pés já combalidos
tua sandália, que sou eu.
Teu amplo manto te abandona.
O teu olhar – que no meu rosto,
recosto morno, vê repouso –
vai procurar-me muito tempo –
e vai deitar-se, quase noite,
entre rochedos estrangeiros.
Deus, que farás? Tremo de medo.
O alquimista
Sorri amargo o alquimista e afasta
o frasco, que fumega um pouco ainda.
Já sabe do que carecia
pra que essa tal substância renomada
surgisse ali. Carecia de tempo,
de séculos pra si, pro frasco ardente;
de toda uma constelação na mente;
na consciência, do mar todo ao menos.
A enormidade que ele desejara,
ele a soltou na madrugada. E ela
voltou a Deus, sua medida antiga;
mas ele, como um bêbado, mal fala,
deitado sobre a arca, e desespera
pra ter o ouro que já tinha.
22.8.1907, Paris
A oitava elegia
Dedicada a Rudolf Kassner
A criatura vê, dos olhos todos,
o Aberto. Só os nossos olhos são
como invertidos e, como armadilhas,
armados ao redor do seu fugir.
O que lá fora existe só o sabemos
do rosto do animal; mesmo a criança
pomos de costas – pra que veja apenas
contornos, não o Aberto, tão profundo
na face do animal. Livre de morte.
Só nós a conhecemos; livre, o bicho
traz sempre atrás de si o seu ruir
e, à frente, Deus; e se se vai se esvai
na eternidade, qual se esvaem fontes.
Nós nunca temos, nem por um só dia,
o espaço puro à nossa frente, aquele
no qual as flores florem sem parar.
Só mundo – nunca há o Lugar Nenhum
sem Não: a liberdade ou a pureza
que se respire e saiba e não se anseie.
Crianças há que perdem-se em tal calma –
chacoalham-nas. Os que morrem, a são.
Pois perto de morrer ninguém vê morte
e olha além, talvez tal qual os bichos.
Amantes – se não fosse o outro, o outro
que embaça a vista – chegam perto, pasmam…
Atrás do outro, quase por descuido,
lhes surge… Mas não vem nada de lá
e logo o mundo volta a ser só mundo.
Virados sempre à Criação, nós vemos
somente, ali, reflexo do que é livre,
reflexo que encobrimos. Ou que o bicho
mudo nos olha e perfura de calma.
Isso é o destino: só se chegar quase
e sempre quase e nunca mais que quase.
Se o bicho audaz tivesse a consciência
que é nossa – ele que vem ao nosso encontro
de outra direção – nos mudaria
com sua mutação. Mas o seu ser
lhe é sem fim, sem tino, sem visão
daquilo que ele é; puro o que vê.
E onde vemos Futuro ele vê Tudo
e a si em Tudo e salvo para sempre.
Mas há, mesmo no bicho alerta e morno,
pesar e apreensão – melancolia.
Pois também ele é presa ainda disso
que às vezes nos domina – uma lembrança
de que aquilo que se anseia já foi
outrora quase nosso e seu unir-se
dulcíssimo. Aqui tudo é distância;
lá, ar. Após sua primeira pátria
lhe é esta segunda bruma e dúvida.
mmmAh, bendita a pequena criatura,
que se mantém no colo que a gestou;
alegria do inseto que, lá dentro,
saltita até o fim: pois colo é tudo.
Vê, pois, da ave a meia segurança:
por ser quem é, conhece ambas pátrias,
como se fosse a alma de um etrusco,
liberta, que habitasse ainda espaços,
porém só como estátua sobre a tumba.
E como abisma ter de ir pra longe
tendo vindo de um colo. Eis, assustado
de si, cortando o ar (qual fosse trincos
em uma xícara), eis o morcego
rachando a porcelana do crepúsculo.
E nós: espectadores só e sempre,
voltados para tudo e nunca lá!
Inunda-nos. Botamos ordem. Rui.
Ordem mais uma vez – ruímos nós.
E quem nos inverteu, malgrado nós,
pra que tenhamos sempre este aspecto
de quem se vai?, de quem para no topo
de um monte – o último de onde se vê
seu lar – e vira e olha e permanece.
Assim vivemos – sempre em despedida.
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[Was wirst du tun, Gott, wenn ich sterbe?]
Was wirst du tun, Gott, wenn ich sterbe?
Ich bin dein Krug (wenn ich zerscherbe?)
Ich bin dein Trank (wenn ich verderbe?)
Bin dein Gewand und dein Gewerbe,
mit mir verlierst du deinen Sinn.
Nach mir hast du kein Haus, darin
dich Worte, nah und warm, begrüßen.
Es fällt von deinen müden Füßen
die Samtsandale, die ich bin.
Dein großer Mantel lässt dich los.
Dein Blick, den ich mit meiner Wange
warm, wie mit einem Pfühl, empfange,
wird kommen, wird mich suchen, lange –
und legt beim Sonnenuntergange
sich fremden Steinen in den Schoß.
Was wirst du tun, Gott? Ich bin bange.
Der Alchimist
Seltsam verlächelnd schob der Laborant
den Kolben fort, der halbberuhigt rauchte.
Er wusste jetzt, was er noch brauchte,
damit der sehr erlauchte Gegenstand
da drin entstände. Zeiten brauchte er,
Jahrtausende für sich und diese Birne
in der es brodelte; im Hirn Gestirne
und im Bewusstsein mindestens das Meer.
Das Ungeheuere, das er gewollt,
er ließ es los in dieser Nacht. Es kehrte
zurück zu Gott und in sein altes Maß;
er aber, lallend wie ein Trunkenbold,
lag über dem Geheimfach und begehrte
den Brocken Gold, den er besaß.
22.8.1907, Paris
Die achte Elegie
Rudolf Kassner zugeeignet
Mit allen Augen sieht die Kreatur
das Offene. Nur unsre Augen sind
wie umgekehrt und ganz um sie gestellt
als Fallen, rings um ihren freien Ausgang.
Was draußen ist, wir wissens aus des Tiers
Antlitz allein; denn schon das frühe Kind
wenden wir um und zwinistgens, daß es rückwärts
Gestaltung sehe, nicht das Offne, das
im Tiergesicht so tief ist. Frei von Tod.
Ihn sehen wir allein; das freie Tier
hat seinen Untergang stets hinter sich
und vor sich Gott, und wenn es geht, so gehts
in Ewigkeit, so wie die Brunnen gehen.
Wir haben nie, nicht einen einzigen Tag,
den reinen Raum vor uns, in den die Blumen
unendlich aufgehn. Immer ist es Welt
und niemals Nirgends ohne Nicht: das Reine,
Unüberwachte, das man atmet und
unendlich weiß und nicht begehrt. Als Kind
verliert sich eins im Stilln an dies und wird
gerüttelt. Oder jener stirbt und ists.
Denn nah am Tod sieht man den Tod nicht mehr
und starrt hinaus, vielleicht mit großem Tierblick.
Liebende, wäre nicht der andre, der
die Sicht verstellt, sind nah daran und staunen …
Wie aus Versehn ist ihnen aufgetan
hinter dem andern … Aber über ihn
kommt keiner fort, und wieder wird ihm Welt.
Der Schöpfung immer zugewendet, sehn
wir nur auf ihr die Spiegelung des Frein,
von uns verdunkelt. Oder daß ein Tier,
ein stummes, aufschaut, ruhig durch uns durch.
Dieses heißt Schicksal: gegenüber sein
und nichts als das und immer gegenüber.
Wäre Bewußtheit unsrer Art in dem
sicheren Tier, das uns entgegenzieht
in anderer Richtung , riß es uns herum
mit seinem Wandel. Doch sein Sein ist ihm
unendlich, ungefaßt und ohne Blick
auf seinen Zustand, rein, so wie sein Ausblick.
Und wo wir Zukunft sehn, dort sieht es Alles
und sich in Allem und geheilt für immer.
Und doch ist in dem wachsam warmen Tier
Gewicht und Sorge einer großen Schwermut.
Denn ihm auch haftet immer an, was uns
oft überwältigt, die Erinnerung,
als sei schon einmal das, wonach man drängt,
näher gewesen, treuer und sein Anschluß
unendlich zärtlich. Hier ist alles Abstand,
und dort wars Atem. Nach der ersten Heimat
ist ihm die zweite zwitterig und windig.
O Seligkeit der kleinen Kreatur,
die immer bleibt im Schooße, der sie austrug;
o Glück der Mücke, die noch innen hüpft,
selbst wenn sie Hochzeit hat: denn Schooß ist Alles.
Und sieh die halbe Sicherheit des Vogels,
der beinah beides weiß aus seinem Ursprung,
als wär er eine Seele der Etrusker,
aus einem Toten, den ein Raum empfing,
doch mit der ruhenden Figur als Deckel.
Und wie bestürzt ist eins, das fliegen muß
und stammt aus einem Schooß. Wie vor sich selbst
erschreckt, durchzuckts die Luft, wie wenn ein Sprung
durch eine Tasse geht. So reißt die Spur
der Fledermaus durchs Porzellan des Abends.
Und wir: Zuschauer, immer, überall,
dem allen zugewandt und nie hinaus!
Uns überfüllts. Wir ordnens. Es zerfällt.
Wir ordnens wieder und zerfallen selbst.
Wer hat uns also umgedreht, daß wir,
was wir auch tun, in jener Haltung sind
von einem, welcher fortgeht? Wie er auf
dem letzten Hügel, der ihm ganz sein Tal
noch einmal zeigt, sich wendet, anhält, weilt,
so leben wir und nehmen immer Abschied.