Arcas de Babel: Marcelo Lotufo traduz C. D. Wright

Arcas de Babel: Marcelo Lotufo traduz C. D. Wright
Marcelo Lotufo: "Wright trabalha no limiar do que entendemos por poesia" (Fotos: Cláudia T. Tavares e Divulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta edição, Marcelo Lotufo apresenta uma série de poemas de C. D. Wright, importante poeta estadunidense ainda inédita entre nós que ele está traduzindo para as Edições Jabuticaba.

Marcelo Lotufo é professor, tradutor e editor nas Edições Jabuticaba. Já contribuiu, entre outros, com o Jornal Rascunho, o Suplemento Pernambuco e a Revista Pessoa. Traduziu, para as Edições Jabuticaba, coletâneas de poemas de John Yau, Adrienne Rich e Rosmarie Waldrop. No momento trabalha em seu primeiro livro de contos.

 

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D. Wright (1949-2016) foi uma poeta estadunidense nascida na região montanhosa dos Ozark, no estado do Arkansas, no sul dos Estados Unidos. Autora de quase vinte livros de poesia, Wright também foi professora de escrita criativa e de literatura norte-americana na universidade de Brown, onde foi colega de poetas como Robert Creeley, Rosmarie e Keith Waldrop, e Forrest Gander. Numa tradição fortemente marcada por escolas e movimentos literários, como a estadunidense, Wright foi alguém que traçou um caminho próprio, sempre escapando de enquadramentos rígidos e percursos previsíveis.

De forma bastante geral, é possível dizer que sua poesia se caracteriza por uma investigação constante do seu país, muitas vezes a partir da sua região de origem, marcada por uma história de segregação e violência racial; mas isto sem abrir mão de um forte lirismo que reconhece os desejos e limites da poeta e do corpo que existe por trás dos seus poemas. A relação entre o indivíduo e o coletivo, muitas vezes apresentada como tensão, também marca seus livros, que costumam abrigar outras vozes para além da sua, esboçando de forma sutil uma crítica a uma cultura que consegue normatizar e automatizar tudo o que encontra em seu caminho, mas  é incapaz de verdadeiramente democratizar oportunidades e direitos.

Wright se destaca por trabalhar no limiar do que costumamos entender por poesia, buscando intersecções com o jornalismo investigativo e a pesquisa histórica. Penso que seus livros têm uma voracidade formal verdadeiramente norte-americana, que nos remete a textos impossíveis de classificar, como Moby Dick ou Folhas de relva, mas escritos com um toque de delicadeza que torna tudo etéreo e reconhece a fragilidade do momento, sempre prestes a desaparecer. Há em sua poesia uma atenção ao detalhe que merece destaque e que pode por vezes ser bastante desafiadora para o tradutor. A simplicidade e a oralidade de um verso, ou de uma linha solta na página, esconde às vezes construções sinuosas e todo um processo de descoberta e pesquisa. As escolhas lexicais demasiadamente específicas para o aparente contexto revelam subtextos que resistem a se apresentar por completo. Nestes lugares está a chave que pode abrir o poema para uma nova interpretação, um momento frágil, que nem sempre sobrevive à pressa do leitor.

As traduções que se seguem foram retiradas do livro Steal away: selected and new poems, de 2002. – Marcelo Lotufo

 

LAGO ECHO, QUERIDO

 

A mulher banhada em luz está
realmente lendo ou só olhando
para o que está escrito

O homem andando na garoa está
nu ou é a chuva
que deixa a sua camiseta transparente

O menino na cama de ferro
está dormindo ou ainda
apalpa as molas do colchão

Será que você realmente acreditou
que três vidas poderiam estar completas

Será que é real esta garrafa
de líquido verde no parapeito

A garrafa no parapeito descascado
está cheia de verde

Ou será o líquido uma ilusão
de preenchimento

Como filhos do verão se tornam
peixes e a chuva amolece os homens

Como os elementos das noites de verão
nos convocam a deitar uns com os outros
no assoalho rústico

E isto nos parece dolorosamente belo
transforme ou não
uma gota que seja no mundo

 

PESSOAIS

 

Algumas noites eu durmo de vestido. Meus dentes
são pequenos e alinhados. Não tenho dores de cabeça.
Desde 1971 ou antes, caço um banco
onde possa comer meu patê de pimento cheese em paz.
Se aqui fosse o Tennessee e atravessando aquele rio, o Arkansas,
te encontraria no West Memphis esta noite. Poderíamos
nos divertir a beça. Perigo, macio como um ombro.
Não deite ou se apoie em mim. Ainda estou tentando encontrar um trabalho
que uma simples máquina não execute melhor do que eu.
Vi pessoas morrerem de dinheiro. Olhe para o Almirante Benbow. Gostaria
que viéssemos equipados, como certos peixes, com órgãos luminescentes.
O que me faz lembrar de um fato pouco conhecido:
se estivéssemos indo na velocidade da luz, essa cúpula
encolheria enquanto nós ganharíamos peso.
A rua é sinuosa e íngreme, não é.
Com esta umidade, eu faço os consertos de noite. Não estou
dentre os milhões que viram o rosto de Monroe
na lua. Eu fico pasma olhando para aquele rosto.
Se eu pudesse pagar, moraria em hotéis. Ganhei prêmios
de soletrar e de nado livre. Há muito muito tempo.
Vovó casou com um homem chamado Ivan. Os homens o chamavam
de Eva. Estranho, para dizer a verdade, mas em anos caninos já cheguei lá.

 

ÊXTASE INUNDOU A NOSSA AUSÊNCIA
EM DIREÇÃO A TUDO NA ESCURIDÃO CRESCENTE

 

A leve coloração do seu desejo num ambiente
indiferente nunca me desertou.
Meu marido guardando o espermacete para acender
nossos fios. Meu marido mapeando minhas obsessões
com seu jeito tipicamente cool. Cantando sacerdotalmente
no chuveiro, meu marido entoando cada fissura da minha pele.
Nossa respiração sincopada. Meu marido que voava de noite
com frequência quando criança. Sobre o próprio solo
da nossa escrita (mesmo quando postes de energia caíam
em volvos). Meu marido igualmente popular entre mulheres
de todas as idades. Os restos de suas unhas, as suas pernas de corrida,
o seu scriptorium. Ah, a sua lúdica cabeça-dura. Quem cortou
o próprio cabelo com uma faca de cabo de osso. Sua arara
de belíssimas gravatas não usadas. Meu marido tocando
até mesmo os homens insulares; sempre que o medo cultivava
seus cogumelos sob os tapetes, começava um frenesi de limpeza.
Nossa cama irrigada com meu sangue. Assistindo eu me queimar
de dentro para fora; me oferecendo a sua caneta cross. Ah, culpa
predominantemente branca. Sempre que chovia

 

NO NOSSO TEMPO ÚNICO.

 

“Me siga,” a voz há muito, muito desejada interrompe
a mão que escreve. “Estão aqui os seus sapatos”. Exceto
por um ventilador que gira, movimentos no mínimo. O plano,
se podemos chamá-lo de plano, é estar naquilo que alguns
conhecem como o presente perene; começando
com algumas frases escritas numa cozinha enquanto outras
apegam-se às suas próprias imagens em folhas de calor retorcidas.
Um guardanapo flutua do balcão em vez de uma carta. Portais
da vida passada partem em silêncio: Ah, limiar
de uma canção. Ah, grandes ilhós de luz diurna. Deixando o leite e a tigela
na mesa, saindo de casa como um monge descalço. Todo esse
mistério levemente erótico. Mesmo se alguém estiver aterrorizado
tanto com a morte quanto com a cor vermelha. Mesmo se uma mensagem for enviada
para cada um de nós em sigilo, ninguém pode obrigá-la a ficar.
Apesar da escala – tudo tem o seu próprio sentido,
toda coisa tem importância; ninguém significa que todos somos um fim
Aproximadamente para sempre,
C.D.

 

***

LAKE ECHO, DEAR

 

Is the woman in the pool of light
really reading or just staring
at what is written

Is the man walking in the soft rain
naked or is it the rain
that makes his shirt transparent

The boy in the iron cot
is he asleep or still
fingering the springs underneath

Did you honestly believe
three lives could be complete

The bottle of green liquid
on the sill is it real

The bottle on the peeling sill
is it filled with green

Or is the liquid an illusion
of fullness

How summer’s children turn
into fish and rain softens men

How the elements of summer
nights bid us to get down with each other
on the unplaned floor

And this feels painfully beautiful
whether or not
it will change the world one drop

 

PERSONALS

 

Some nights I sleep with my dress on. My teeth
are small and even. I don’t get headaches.
Since 1971 or before, I have hunted a bench
where I could eat my pimento cheese in peace.
If this were Tennessee and across that river, Arkansas,
I’d meet you in West Memphis tonight. We could
have a big time. Danger, shoulder soft.
Do not lie or lean on me. I’m still trying to find a job
for which a simple machine isn’t better suited.
I’ve seen people die of money. Look at Admiral Benbow. I wish
like certain fishes, we came equipped with light organs.
Which reminds me of a little known fact:
if we were going the speed of light, this dome
would be shrinking while we were gaining weight.
Isn’t the road crooked and steep.
In this humidity, I make repairs by night. I’m not one
among millions who saw Monroe’s face
in the moon. I go blank looking at that face.
If I could afford it I’d live in hotels. I won awards
in spelling and the Australian crawl. Long long ago.
Grandmother married a man named Ivan. The men called him
Eve. Stranger, to tell the truth, in dog years I am up there.

 

ELATION WASHED OVER OUR ABSENCE TOWARD
EVERYTHING IN THE INCREASING DARKNESS.

 

The soft coloration of his longing in the indifferent
environment has never deserted me.
My husband saving the spermaceti to light
our strings. My husband charting my obsessions
with characteristic cool. Singing sacerdotally
in the shower, my husband intoning every cleft in my skin.
Our syncopated breathing. My husband who flew often
at night as a child. Above the very ground
of our writing (even as power poles were falling
on volvos). My husband equally popular with women
of all ages. His nail parings, his running legs, his scriptoria.
O his ludic hard head. Who cut down
his own hair with a bone-handled knife. His rack
of gorgeous unworn ties. My husband touching
even the insular men; whenever fear bred
its mushrooms under rugs, a cleaning frenzy commenced.
Our bed irrigated with my blood. Watching me burn
from within; tendering his cross pen. O predominantly
white guilt. Whenever it rained

 

IN OUR ONLY TIME.

 

“Follow me,” the voice, the long, longed-for voice stops
the writing hand. “I have your shoes.” Except
for a rotating fan, movement at a minimum. The plan,
if one can call it a plan, is to be in what is known
to some as the perennial present; beginning
with a few sentences written in a kitchen while others
cling to their own images in twisted sheets of heat.
A napkin floats from a counter in lieu of a letter. Portals
of the back life part in silence: O verge
of a song, O big eyelets of daylight. Leaving milk and bowl
on the table, leaving the house discalced. All this
mystery, mildly erotic. Even if one is terrified
of both death and the color red. Even if a message is sent
each of us in secrecy, no one can make it stay.
Notwithstanding scale – everything has its meaning,
every thing matters; no one means every one an end
Aproximately forever,
C.D.


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