Mais um lugar para Winnicott no Brasil
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Salta aos olhos a influência renovadora do pensamento winnicottiano em diversos campos, tanto no Brasil como no exterior – em desenvolvimentos recentes na psicanálise, em várias áreas de saúde (pediatria, psiquiatria infantil, psicossomática, serviço social psiquiátrico) e em discussões atuais sobre temas da vida social (infância, família, maternidade, identidade sexual e de gênero, democracia, questões ambientais) e cultural (criatividade na arte e na vida, educação, ética do cuidado, religião monoteísta, filosofia do existir humano).
O fato de Winnicott ter-se tornado hoje referência indispensável reflete-se em produção crescente e muito rica sobre sua obra, na forma de pesquisas, eventos, cursos, publicações, inclusive nas redes sociais, e no surgimento de instituições winnicottianas nacionais e internacionais.
Desde os anos 1990, a relevância teórica e clínica de Winnicott tem sido plenamente reconhecida pelo grupo de meus alunos e colaboradores na Unicamp e PUC-SP, hoje reunidos no Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiano (IBPW), que lhe atribui teses revolucionárias sobre a natureza de problemas fundamentais a cargo da psicanálise – a saber, os dos bebês no colo da mãe e não mais os de Édipo, o andarilho na cama da mãe – e sobre o quadro teórico que permite formular e solucionar esses problemas, composto de teoria do amadurecimento pessoal na dependência de um ambiente facilitador, em relacionamentos inicialmente duais, depois triangulares e, em seguida, multilaterais, acompanhada da patologia maturacional (falhas ambientais, conflitos internos) e a terapia maturacional (facilitação da retomada do amadurecimento).
Tomadas em conjunto, essas teses constituem uma mudança paradigmática do tipo kuhniano em psicanálise e em várias outras disciplinas na área de saúde e serviço social, com claras implicações filosóficas. De fato, essa interpretação da contribuição de Winnicott, baseada na análise estrutural da totalidade da sua obra, permite dizer que ele estabeleceu novos fundamentos para a ciência do homem, inserindo o estudo da mente humana, principal objeto de interesse da psicanálise tradicional, no quadro mais amplo da pesquisa sobre a natureza humana e concebendo o tratamento psicanalítico habitual de distúrbios mentais como um aspecto do cuidado-cura das distorções do potencial humano no tempo do amadurecimento.
Com uma vantagem adicional importante, a de permitir e mesmo requerer a criação, antevista por Michael Balint já em 1968, de uma “Escola do manejo” que, baseada nas ideias e na linguagem de Winnicott, ensinasse como entender os processos maturacionais e tratar distúrbios maturacionais não apenas pela análise, mesmo a modificada, mas também, quando preciso, fazendo “outra coisa que não análise”, como Winnicott quando atuava como pediatra e psiquiatra infantil, ou como assistente social e educador. Tal escola, portanto, ofereceria não apenas formação em análise como as escolas psicanalíticas tradicionais – freudiana, kleiniana ou mesmo bioniana –, mas também procedimentos de inspiração winnicottiana aplicáveis em outras áreas de saúde igualmente dedicados ao tratamento dos distúrbios maturacionais. Essa perspectiva inovadora é atualmente seguida na Escola de Formação Winnicottiana oferecida pelo IBPW e várias outras instituições winnicottianas que integram a International Winnicott Association (IWA).
Essa visão do caráter revolucionário do pensamento teórico e clínico de Winnicott, que o coloca ao lado de Freud, estabelecida no Brasil nos trabalhos meus e de Elsa Oliveira Dias nos anos 1990 (continuados por nós até hoje e expandidos por vários membros do IBPW), foi difundida internacionalmente por Jan Abram, que me honrou com o convite para pronunciar, em 2000, na Squiggle Foundation em Londres, a Madeleine Davis Memorial Lecture sob o título “Winnicott’s Paradigm”, estudo que retomava minhas teses dos anos 1990 e detalhava a estrutura do paradigma winnicottiano.
Uma versão revista e ampliada dessa palestra foi publicada em 2013 por Jan Abram na coletânea Donald Winnicott Today. Na capa de rosto desse volume, Abram reproduziu, em forma manuscrita, uma frase até então inédita de Winnicott, anotada nos últimos dias da sua vida. Nela, sabendo do estado muito precário de sua saúde, Winnicott dirige aos psicanalistas seu pedido final: “Estou pleiteando por uma espécie de revolução no nosso trabalho. Vamos reexaminar o que estamos fazendo”.
Hoje, dez anos após a publicação da frase, muitos autores deram ouvido a esse pedido e passaram a refletir sobre o caráter revolucionário das mudanças produzidas por Winnicott. Alguns aceitam e desenvolvem à sua maneira a tese Loparic-Dias de revolução científica à la Thomas Kuhn, que adivinhava e buscava atender o pedido calado de Winnicott. Abram, por exemplo, com base em seu esforço de fazer um estudo detalhado da totalidade da obra de Winnicott, sustenta que ele produziu um novo paradigma clínico que constitui uma revolução científica kuhniana na psicanálise e atribui ao meu texto de 2000, republicado por ela em 2013, o início da aplicação da teoria das revoluções científicas de Kuhn ao estudo das mudanças que separam Winnicott de Freud. Ofra Eshel, por sua vez, citando esse mesmo trabalho e vários outros de autoria de membros do IBPW, enfatiza que Winnicott não operou mera extensão, mas uma verdadeira revolução científica na psicanálise, no sentido de Kuhn.
Outros autores abordam Winnicott de outras maneiras e chegam a outros resultados sobre o alcance das suas contribuições, alguns radicalmente diferentes dos da Escola de São Paulo do IBPW. Com base na sua leitura de um livro de Winnicott, Natureza humana, André Green sustenta que ele não rompeu com Freud, mas que, antes, completou a obra deste. Lendo Winnicott da mesma forma, sem se comprometer com um estudo da totalidade de seus textos, J.-B. Pontalis afirma que ele não produziu uma grade teórica e que tampouco existiriam pacientes winnicottianos. Em outras palavras, Winnicott não teria elaborado, com base em pesquisa científica, uma teoria que pudesse ser reconstruída e sistematizada, como as de Freud, Klein ou mesmo Lacan, mas criado uma tradição de escrita pessoal da experiência analítica.
Isso teria lhe permitido fazer-se valer como escritor psicanalítico original e livre – visto existir uma proximidade evidente entre psicanálise e literatura –, e não como sistematizador submisso à lógica do discurso objetificante. Esse é o “efeito Winnicott”, ao qual Pontalis confessa ter permanecido sensível em toda a sua obra, mesmo quando escreve sobre Winnicott, deixando-se flutuar entre associação livre e estruturas mentais, entre fantasia e teoria, e, quando abordava teorias, entre uma concepção e outra, não fazendo mais do que expor suas preferências, muito à vontade no espaço forçosamente plural da escrita, reflexo incerto e necessariamente deformado da pluralidade e da perpétua mobilidade de espaços psíquicos, é ainda hoje festejado no Brasil e outros países.
Depois de Pontalis, diversos intérpretes, radicalizando sua posição, passaram a tratar os escritos de Winnicott não como científicos, mas explicitamente como peças de ficção literária a serem apreciadas pelos efeitos que produzem na capacidade associativa e na sensibilidade do leitor, excluindo, dessa maneira, qualquer possibilidade de se dizer que Winnicott produziu um novo paradigma científico do tipo kuhniano para o tratamento dos distúrbios do amadurecimento.
Thomas Ogden também dispensa o estudo do desenvolvimento da obra de Winnicott no seu todo e lê os artigos de Winnicott isoladamente, um por um, às vezes frase por frase, como se fossem peças de literatura que geram experiência imaginativa e sensibilizadora no meio da linguagem, e festeja a forte semelhança que existiria entre os artigos de Winnicott e os contos das Ficciones de Jorge Luis Borges e textos de prosa e mesmo de poesia de Robert Frost, enriquecendo, assim, o “efeito Winnicott” pontalisiano de referências literárias.
Ainda recentemente, em 2022, refletindo sobre os últimos 70 anos de mudanças radicais na psicanálise, Ogden propôs, como alternativa à tese da mudança paradigmática (paradigm shift), a afirmação de que as novidades revolucionárias atribuídas a Winnicott não consistem em mudança estrutural, de conteúdo, mas em mudança de ênfase (shift in emphasis), isto é, em deslocamento, na terapia psicanalítica, do modo tradicional de pensar e ser para uma nova sensibilidade, os dois modos coexistindo e se enriquecendo mutuamente. Essa afirmação é proposta como descrição de um movimento atualmente emergente entre os psicanalistas em direção a uma nova receptividade e acolhimento do que ocorre na sessão analítica, não de um conjunto de princípios e técnicas alternativos aos de Freud, que justificassem a criação de novas escolas psicanalíticas.
Nesse contexto, senti a necessidade de um veículo que espelhasse e acompanhasse de perto as pesquisas atuais sobre Winnicott e que se tornasse um espaço de debates sobre sua obra. Recordando minhas iniciativas institucionais e editoriais anteriores, em particular a criação, aqui em São Paulo, no mesmo ano de 2013, da International Winnicott Association (IWA), e na ausência de uma revista winnicottiana internacional, cheguei à ideia de lançar um boletim winnicottiano, que, por um lado, refletisse as teses e as atividades de ensino e pesquisa do IBPW; que fosse, ao mesmo tempo, brasileiro, aberto a discussões acerca de toda a variedade de posições sobre Winnicott existentes no país, e internacional, igualmente abrangente do ponto de vista teórico e publicado em várias línguas; e que, além disso, fosse ágil.
As diversas atividades atuais relacionadas a Winnicott sugeriram-me sua estrutura, que está refletida no índice: divisão em quatro áreas institucionais, onde se trabalha Winnicott – IBPW, Brasil, América Latina, IWA –, cada qual com as mesmas seções de conteúdo: artigos, resenhas, notas, comentários, discussões, entrevistas, autobiografias de estudiosos winnicottianos. O índice contém, ainda, seções com dados sobre ensino, pesquisa e eventos, além de notas editoriais, notícias e registros de publicações. No menu principal, estão incluídos botões dando acesso aos arquivos de atividades do IBPW relacionadas às do Boletim, para instituições winnicottianas e para uma bibliografia winnicottiana. O quesito agilidade sugeriu naturalmente o streaming como forma de publicação.
A realização de um projeto dessa envergadura, lançado em junho de 2022 pela DWWeditorial sob o título Boletim Winnicott no Brasil, só foi possível graças à colaboração de muitos participantes brasileiros e estrangeiros, de diferentes orientações teóricas, que contribuíram com competência e entusiasmo para muitos aspectos: a articulação do projeto editorial, desenho e desenvolvimento do site, constituição do corpo editorial e do conselho editorial, edição de textos propriamente dita, publicação online e divulgação no Brasil e no exterior. Em todo esse percurso contei com o apoio decisivo do pessoal da DWWeditorial, que incluiu o Boletim na sua programação regular, bem como de colegas e funcionários do IBPW e da IWA.
Em breve, será lançada pela DWWeditoral a versão impressa do Boletim, edição 2022. Espero que essa forma de divulgação das ideias expostas para debate na edição eletrônica de 2022, se some proveitosamente à versão eletrônica e contribua, a sua maneira, para o aumento do interesse por Winnicott, o estudo da sua obra e a aplicação de suas ideias à busca de soluções para os problemas da existência humana que nos interpelam a todos, tanto na saúde como na doença.
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Zeljko Loparic é filósofo, professor titular aposentado da Unicamp, fundador, com Elsa Oliveira Dias, do Instituto Winnicott e da International Winnicott Association. Publicou numerosos trabalhos sobre Kant, Heidegger e Winnicott. A totalidade da sua produção intelectual encontra-se disponível online em Acervo Loparic.