Tornar-se mulher

Tornar-se mulher

 

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Winnicott foi um autor que se debruçou sobre o universo feminino. Em sua longa trajetória como pediatra e psiquiatra infantil, ele atendeu e acompanhou de perto milhares de mulheres com seus bebês ao longo de décadas, aprofundando-se como nenhum outro psicanalista na experiência da maternidade, essa complexa aventura, e uma face do universo feminino, que muitas vezes acompanhamos em nossos consultórios, testemunhando as enormes dificuldades que cada mãe enfrenta nas diferentes etapas da vida de seus filhos, ou se atrapalha para enfrentar, de acordo com os percalços na própria experiência quando bebê, criança, adolescente.

Winnicott uma vez afirmou que só uma mulher pode sentir – e talvez até imaginar, quando lhe faltou a experiência concreta da maternidade – o que se sente ao ver ali embrulhado no berço uma parcela do seu próprio ser, um pedaço de si vivendo uma vida independente, mas, ao mesmo tempo, dependente e transformando-se pouco a pouco numa pessoa.

Diferentemente de Freud, que se colocou de fora, perplexo, frente ao desejo feminino, proferindo a frase “afinal, o que querem a mulheres?”, Winnicott, em sua clínica psicanalítica, ao contrário do que ele mesmo disse na citação acima, demonstrou, como talvez só mesmo Chico Buarque em suas canções, que foi, sim, capaz de imaginar como se sente uma mulher, buscando se colocar no lugar delas. Essa enorme capacidade de identificação cruzada justamente talvez por ele ter integrado o próprio lado feminino lhe deu uma espécie de lugar de fala sobre esse tema, além da legitimidade que vem da pesquisa cientifica.

Nesse sentido, é curioso notar como Winnicott, por meio da pesquisa psicanalítica, acabou enveredando por alguns caminhos sintônicos aos de mulheres contemporâneas dele que na época lutaram por direitos, espaços de atuação na sociedade e buscaram encontrar palavras para saber mais de si, dos próprios potenciais, da condição feminina, e vislumbraram novos modos de se olhar, de se reconhecer, de se apropriar dessa condição.

E que fizeram críticas à psicanálise, mostrando que a teoria psicanalítica não conseguiu criar imagens a respeito do feminino a não ser a partir do referencial masculino, ou seja, da ideia da falta, da castração, de uma identidade feminina que se constitui como uma espécie de espelho negativo do falo.

Winnicott ultrapassou essa imagem e pode conceber todo um processo de construção da identidade feminina tendo como referência, entre outros aspectos, o próprio corpo da menina e a experiência de elaborar imaginativamente esse corpo, incluindo o genital feminino com suas características próprias e os resultados disso em termos de sexualidade e psique.

Nessa maneira de conceber a construção da identidade e sexualidade feminina está implícita a ideia de vir a ser. Diria a mulher feminista Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, se torna uma mulher, e Winnicott, indo além, mostrou que não só não se nasce uma mulher, mas também não se nasce um bebê, não se nasce um indivíduo e nem mesmo um corpo.

Nascemos um pedaço de carne que, se não for enrolado cuidadosamente numa mantinha, embalado e amparado amorosamente pelos braços e olhar da mãe, vai ser despedaçado, cair para sempre e perder, talvez também para sempre, a oportunidade de construir conexões entre esse corpo e a psique, de construir a própria capacidade de ter experiências e, portanto, uma identidade sexual com base em experiências. Assim, a encarnação, ou o modo como esse pedaço de carne se transforma numa pessoa, ou as dificuldades da realização dessa tarefa, vão estar na base da constituição da identidade de modo geral e, claro, da identidade sexual e de gênero.

Se pensarmos na discussão ainda presente nos dias atuais entre as visões biologizantes dos que defendem que a identidade sexual, e de gênero, estaria ou deveria estar pautada inteiramente na biologia, e as concepções culturalistas, dos que defendem que são construções inteiramente culturais, Winnicott não pende nem para um lado nem para o outro, já que ele concebe o ser humano como uma espécie de ponte entre a fisiologia viva e o ambiente humano e descarta qualquer possibilidade de analisar os fenômenos pertencentes ao animal humano, a não ser a partir desse lugar de entendimento, ou seja, entre a natureza e a cultura.

Anatomia não é destino: a gente nasce com uma fisiologia viva, mas precisa criar um corpo pessoal; a gente nasce com um sexo biológico, mas precisa criar uma identidade sexual. Agora, um dos elementos que compõe essa identidade é, sim, a anatomia, porque não somos seres abstratos, sujeitos unidimensionais, incorpóreos, meramente culturais, que sobrevoam algum espaço, somos seres potencialmente encarnados. Assim, a maioria das pessoas acaba criando uma identidade sexual que, embora com infinitas potenciais variações e nuances em termos de qualidades, tendências e fantasias, tende a se afinar com o sexo biológico, mas isso não é à priori nem menos ou mais patológico, só é, diz Winnicott, de modo geral, conveniente socialmente.

Winnicott parte da ideia da bissexualidade intrínseca ao ser humano. E ele destacou no percurso de amadurecimento, além de uma linha instintual, relacionada à integração das demandas do corpo, todo um conjunto de fenômenos que compõem uma linha identitária, na qual está o potencial com que todo ser humano nasce: se identificar seja com um homem ou com uma mulher.

Não cabe aqui entrar no que o autor chamou, em sua fase madura, de elementos feminino e masculino puros, conceitos importantíssimos que permitem refletir sobre os efeitos das identificações primarias na construção da identidade sexual e de gênero. Me restrinjo a considerar as identificações cruzadas, que têm lugar quando o bebê já atingiu a condição de ser “um” e começou a se relacionar com o outro fora dele.

Independentemente do sexo biológico, a partir da etapa do “eu sou”, quando adquire um primeiro contorno, a criança se identifica ora com a mãe, ora com o pai, mais predominantemente com um ou outro, ou com outros membros da família, estabelecendo inclusive o que ele chama de pactos homossexuais, incorporando em sua personalidade qualidades ora mais femininas e/ou mais masculinas, que podem advir dos aspectos femininos e/ou masculinos da mãe e/ou do pai.

A bissexualidade humana também pode se manifestar na linha instintual, em termos do acento da elaboração imaginativa dos elementos e partes corpóreas. Quando o acento gira em torno das partes masculinas, o falo no menino e o clitóris na menina, as fantasias orgásticas podem se configurar em termos do confrontar, lutar, explodir, penetrar, enfiar coisas em buracos, furar, rivalizar ativamente etc.

Quando gira em torno das partes que se adentram no corpo, das cavidades, das entranhas, boca, ânus, orelhas etc., as fantasias podem adquirir colorações da ordem do receber, reter, ser penetrado (a), guardar, guardar segredo, gerar, relacionadas ao interior do corpo, ou mesmo a preocupações hipocondríacas.

Além disso, na consolidação da construção da identidade sexual, Winnicott considera um fator importante que é por qual progenitor a criança está apaixonada no momento edípico.

As fantasias se constituem de acordo com região do corpo, ambiente e etapa do amadurecimento: quando a amamentação e os laços gerados em torno dela são os acontecimentos mais importantes da vida, o bebê elabora imaginativamente as inúmeras experiências excitadas em torno do aparelho responsável pela ingestão, o que leva ao desenvolvimento de fantasias orais.

Se o período de amamentação foi satisfatório, levando em conta comunicação, contato, o conjunto de cuidados e não só a satisfação instintiva, o erotismo oral poderá ter relativa predominância dentro da complexidade da fantasia total no futuro.

Quando, além da ingestão, o bebê começa a se interessar pela digestão, o caminho do alimento, o interior do corpo como um receptáculo de coisas vividas significativamente e a experiência anal podem ganhar importância e diferentes sentidos, por exemplo, a defecação pode adquirir uma tonalidade erótica para um bebê, mas para outro pode haver um deslocamento do erotismo oral para a experiência anal receptiva, talvez por conta de manipulação, ou um treinamento rígido pode conferir qualidades sádicas ou masoquistas às fantasias etc.

No momento em que as sensibilizações periódicas mais frequentes ocorrem em torno do clitóris na menina e do pênis no menino, se dividem as águas entre as crianças do sexo masculino e feminino e a ênfase recai sobre a performance. Nessa hora, o menino pode se sentir completo e a menina, ao se comparar, pode ter a fantasia, que pode magoá-la, de que tinha algo de que foi destituída e, ao levar em conta a ausência do órgão visível, sentir-se inferior, precisando de recursos compensatórios, como usar uma boneca ou o próprio corpo como falo.

Mas embora importante, porque nessa etapa há o reconhecimento das diferenças – e a negação da diferença entre sexos é delirante – e porque algumas mulheres podem padecer de uma inveja do pênis inconsciente que precisa ser trabalhada, na saúde essa é só uma passagem, em que a menina integra seu elemento masculino. A menina prossegue e se torna capaz de elaborar imaginativamente o genital feminino em sua radical diferença, incorporando o órgão em seu esquema corporal e mundo de fantasias.

Nessa hora, apropriando-se do corpo inteiro, ela junta na fantasia total e no mundo pessoal as elaborações imaginativas pregressas e as atuais, integrando e mesclando inclinações e potencialidades, masculinas e/ou femininas, que se revelam em escolhas profissionais, de parceiros amorosos, na decisão de tornar-se ou não mãe etc.

A história é longa, cheia de detalhes e, claro, não para por aí, já que as poderosas experiências instintuais que nos chacoalham existência afora e a própria continuidade da vida nos convocam a transformações contínuas. O ponto é justamente a imensa revolução que Winnicott fez no modo como a psicanálise pode pensar a mulher, ao trazer a ideia de um vir a ser que se faz a partir da condição da mulher mesma – e não como um arremedo ou copia mal ajambrada do macho.

 

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Vera Regina Ferraz de Laurentiis é psicóloga, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, psicanalista pela SBPW, professora, supervisora, orientadora e editora científica na Escola Winnicottiana de Psicanálise e no Sino-Brazilian International Training Programe em Beijing pela IWA (International Winnicott Association). Escreveu o livro Corpo e Psicossomática em Winnicott e artigos.

 

Uma parceria com o Instituto Winnicott

 

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