As duas verdades de Winnicott

As duas verdades de Winnicott

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Winnicott não é homem de uma verdade só. Suas verdades são várias, de diferentes idades, suas e dos outros, e da humanidade toda, e ele as tem todas em si. E são de diversos tipos: científicas, poéticas, filosóficas, religiosas, míticas. E ele as expressa em uma multiplicidade de dizeres: no jargão dos especialistas, que usam termos técnicos com significados convencionais em perpétuo fluxo; na língua comum, atento à poesia das etimologias das palavras (Heidegger dizia que a língua comum é a poesia fundamental de um povo), às histórias das palavras em luta com outras palavras pela sua identidade, às estórias contadas pelas palavras, ao poder que elas exercem sobre os usuários; ele as expressa no que escreveu, citando pacientes; nos versos de poemas que menciona ou que escreve; ou no que disse, por não dizer. E ele as obtém por diferentes caminhos. E as usa para diferentes fins.

Winnicott se detém especificamente em duas verdades: a científica e a poética. A primeira resulta da pesquisa científica. Deixando de lado as ciências formais (matemática, lógica etc.), a pesquisa em uma ciência factual é uma atividade de resolução de problemas em um determinado campo de fatos dirigida por um projeto de pesquisa. Os assuntos são a natureza física, desde os gregos, a natureza animada da vida, sobretudo a partir de Darwin, a natureza humana, a partir de Freud

O nosso conhecimento empírico do que está acontecendo é notoriamente lacunar. Falta-nos conhecimento de fatos ou da ordem temporal e causal entre eles. O cientista não apela para explicações em termos de fatores supranaturais do tipo religioso, o que poderia sugerir medo do desconhecido. Nem adivinha um sentido secreto por detrás dos fatos e das conexões que faltam. Nem se propõe à via rápida da intuição e da fantasia. Ele assume sua ignorância e delineia um programa de pesquisa para a busca, passo a passo, de fatos ou nexos desconhecidos. Sim, ele isola e destitui de significado subjetivo os seus dados e as suas incógnitas; ele os objetifica. E se permite esperar até achar o que falta.

Isso significa que ele tem algum tipo de fé – não uma fé nisto ou naquilo, mas uma fé de que é possível formular e solucionar os problemas observados no quadro do programa delineado. Formular um problema significa transformar uma expectativa em uma pergunta que faz sentido, isto é, que pode ser respondida na tradição de pesquisa usada como referência. Esse é o passo essencial.

As respostas dizem respeito ao problema em consideração ou articulam adicionalmente o corpo da teoria. Nos dois casos, são acompanhadas de provas e justificativas, que, no entanto, enfatiza Winnicott, sempre geram novas perguntas. Porque as respostas são parciais; ou porque as justificativas se revelam falhas; ou porque simplesmente não há qualquer resposta. Isso não é o fim da pesquisa, mas a fonte de novas perguntas. Para o cientista, ir formulando questões é quase tudo, é a verdadeira manifestação do impulso criativo no domínio da ciência. Assim, as verdades científicas, tanto aquelas sobre assuntos particulares, como as gerais, teóricas, são obtidas passo a passo, por meio de um jogo de perguntas e respostas, que nunca para. Elas nunca são absolutamente certas, nem, menos ainda, completas. A ideia do conhecimento acabado é o verdadeiro pesadelo para o cientista. Ele estremece, diz Winnicott, só de pensar numa coisa dessas. A dúvida, a dúvida metodológica, que é o exato oposto do dogmatismo, é o principal motor da pesquisa criativa na ciência.

Mais do que a verdade alcançada, o que é importante na ciência é a construção de um caminho satisfatório para a verdade – o método. É por isso que a formação científica é tão importante: ela nos capacita testar intersubjetivamente nossos pequenos fragmentos do mundo. Nossos sentimentos pessoais podem facilmente fugir ao controle; nossa imaginação, permitindo-se sonhar – tal como a pomba da razão especulativa de Kant dada aos sonhos dogmáticos, não disciplinada pela experiência –, pode nos fazer subir às alturas, até não haver mais ar, até sentirmos que ficamos sem qualquer apoio, e que já estamos caindo e caindo, e, então, não nos resta outra coisa a não ser acordar. O que significa, esclarece Winnicott, retornar à ciência, à realidade externa bem-vinda, objeto de pensamento livre, conquistado no Ocidente por duras lutas durante séculos, livre sim, não de teorias bem testadas, mas de filiações impostas pela doutrinação ou pela repressão, as quais, no passado não muito longínquo, tentavam destruir ideias queimando pessoas; hoje, isso já pode ser feito online pelas militâncias.

Como e quando um indivíduo humano começa a se tornar um cientista? Desde criança, desde o berço, se puder contar com o suporte materno suficientemente bom. No início, o real e o imaginativo são uma única e mesma coisa, pois a criança não apreende o mundo de modo objetivo, mas vive num estado subjetivo, em que é a criadora de todas as coisas. Todos começamos a vida maravilhados, mas, em seguida, ficamos assustados pelos sonhos e pelo pensamento mágico, que nos dá controle sobre tudo, mas nos mantém na ilusão de onipotência e na incerteza.

Se a realidade externa é apresentada à criança em pequenas doses, cuidadosamente calibradas de acordo com sua capacidade de compreensão, a criança pouco a pouco se dá conta do mundo do não-eu e, ao perceber a realidade externa, busca apoio nas coisas reais externas, que, por existirem no tempo de forma independente dela e terem natureza própria, prometem ser mais confiáveis do que os sonhos. Gradualmente, a criança talvez desenvolva a possibilidade de adotar uma abordagem científica dos fenômenos, podendo chegar até a empregar o método científico no estudo de todos os aspectos da natureza humana e no planejamento da vida. Muitas vezes, entretanto, um interesse científico pela realidade externa representa a fuga da abordagem intuitiva e subjetiva à vida.

Esse caminho científico em direção da verdade, o qual, se realmente for importante, é imaginativo, criativo e não repetitivo, difere, observa Winnicott, de um outro, que se vale da intuição. É fácil ver o contraste. A intuição pode pretender chegar a toda a verdade em um clarão, mas, se for errônea, pode, em um instante, nos induzir ao erro sobre tudo o que há. O poeta que há em nós acede à verdade em um clarão. Esta não diz respeito apenas aos fatos externos, nem é feita de criações meramente subjetivas do bebê, mas sim do tecido do mundo em que reunimos, num padrão pessoal, coisas que experenciamos no passado com as coisas do agora e as que aguardamos no futuro. O valor poético de um sonho meu não está em ter sido criado por mim, mas nas camadas sobrepostas de sentido relacionadas ao passado, presente e futuro, ao interno e ao externo, e sempre a mim mesmo como alguém aí no mundo.

Os americanos aportaram na Lua. Ela perdeu sua poesia. Mas os poetas podem voltar a escrever sobre a Lua, diz Winnicott, como se ninguém tivesse lá pousado, como se ela com seu brilho e esplendor, majestade e mistério, ainda significasse coisas para os que a veem daqui. Então, podemos nós todos retroceder à época em que sabíamos o que significava sombra e luz. Se pudermos voltar à poesia e nos recuperar do pouso norte-americano na Lua, poderemos sentir que a civilização ainda tem alguma esperança na época da técnica.

Winnicott não esperou pelos poetas e escreveu ele próprio um poema de protesto contra a objetificação tecnológica da Lua, em que se lê: “Esta não é minha Lua/ Esta não é a Senhora das marés/ Nem a que governa a fase do corpo da mulher”, poema que foi precedido pelo seu pedido de que conservemos o lado emocional, de fantasia, das coisas. Pois, ainda que se aceite ir ao extremo da lógica, acreditando na objetividade, e se queira olhar para as coisas de um modo direto e fazer algo em relação a isso, não se deve tornar as coisas tediosas pelo esquecimento da fantasia, da fantasia inconsciente.

Assim como a verdade científica, a verdade poética tem suas vantagens e desvantagens. Ela promove integração pessoal acompanhada de profunda satisfação pessoal e oferece oportunidade para uma nova experiência, a da beleza. A intuição é mais rápida. Precisamos de poesia para articular o problema geral dos universais da natureza humana – em particular, para saber o que está verdadeiramente em questão numa vida humana.

A objetificação científica desconecta as coisas dos seus sentidos pessoais. Mas é muito difícil usar a verdade poética, que é uma questão de sentimento, para formular problemas comuns e para criar práticas sociais comuns. Os grandes poetas podem ter tratado do colapso psicótico, mas os clarões de intuição que vêm da poesia não podem nos eximir, diz Winnicott, da penosa tarefa de superar cientificamente, passo a passo, a nossa ignorância a respeito dessa questão. Para estudar os caminhos da criação e manutenção da máquina democrática sem cair na mera militância, precisamos de uma teoria científica do amadurecimento pessoal e social. E para que um juiz de menores possa ser capaz de tomar decisões responsáveis sobre casos de delinquência juvenil, convém ele ter a sua disposição uma psicologia da delinquência estabelecida como ciência.

Há indivíduos que escolhem uma via em oposição à outra. Da mesma forma, a cultura ocidental, em geral, tende a uma exclusão dos sentimentos em favor do pensamento científico, ao passo que na cultura oriental o método científico é relativamente desprezado. Winnicott sustenta que precisamos de ambos os caminhos para viver e até mesmo para fazer ciência. Não há como deixar de incluir o estudo do inconsciente no vasto campo da teoria científica. Mas, ao mesmo tempo, ficamos culturalmente pobres se não tivermos familiaridade com a poesia das palavras e a capacidade de criar imaginativamente. No melhor da nossa cultura ocidental, nós temos um método científico de abordagem dos fatos e ao mesmo tempo reconhecemos na arte e na religião a importância da abordagem não objetificante da vida – da fantasia e da expressão espontânea de impulsos instintuais.

Winnicott seguiu as pegadas de Freud ao considerar a psicanálise uma ciência, a saber, uma atividade de resolução de problemas baseada em um método e um corpo crescente de teoria; uma matriz disciplinar adquirida por acumulação de resultados de resolução de problemas, interrompida, muitas vezes, – devido a situações de crise gerada pelos problemas anômalos, legítimos, mas não solúveis – por mudanças revolucionárias do corpo da teoria.

Partindo do problema da administração da vida humana nas relações familiares, do triângulo edípico, Freud elaborou uma teoria geral do desenvolvimento da instintualidade sexual, das tensões intrapsíquicas que acompanham necessariamente esse desenvolvimento (patologia sexual) e uma terapia desse tipo de distúrbio baseada na verbalização do material transferencial. Winnicott reparou que a matriz freudiana centrada na sexualidade (Édipo) era desafiada por anomalias – não podia dar conta de distúrbios iniciais dos bebês e das crianças. Mais: tendo concebido o seu humano como essencialmente relacional, ele formulou então, como problema básico, o relacionamento mãe-bebê; substituiu a teoria do desenvolvimento da sexualidade pela teoria do desenvolvimento emocional, que culmina na teoria do amadurecimento pessoal, estendeu radicalmente o conceito de transferência incluindo a psicótica e propôs, como terapia, a análise modificada (manejo completado pela verbalização). Winnicott operou uma revolução na psicanálise, mas esse foi o preço a pagar para o progresso dessa disciplina.

Freud foi mais do que um cientista. Ao ganhar o prêmio Goethe em 1930, ele foi consagrado em vida como pensador da cultura. Winnicott nunca foi premiado, mas inscreveu o seu nome entre os grandes pensadores da experiência cultural, ao publicar, no ano da sua morte, O brincar e a realidade.

 

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Zeljko Loparic é filósofo, professor titular aposentado da Unicamp, fundador, com Elsa Oliveira Dias, do Instituto Winnicott e da International Winnicott Association. Publicou numerosos trabalhos sobre Kant, Heidegger e Winnicott. A totalidade da sua produção intelectual encontra-se disponível online em Acervo Loparic.

 

Uma parceria com o Instituto Winnicott

 

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