Os dois modos de vida de um homem

Os dois modos de vida de um homem
Winnicott: os dois modos de vida de um homem

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por Zeljko Loparic

Winnicott não mudou a psicanálise por ter trazido respostas novas para problemas já velhos. A sua revolução consistiu em reconhecer a existência de problemas até então recusados para tratamento psicanalítico ou mal diagnosticados, e em propor um quadro inédito para a sua formulação e solução. Ele usará o mesmo quadro, em seguida, para também reformular e solucionar problemas antigos.

O problema básico da psicanálise de Freud, todos sabemos (deixo de lado os desenvolvimentos posteriores e Lacan), diz respeito à vida sexual. Trata-se de descobrir como é possível viver realizando o programa do princípio do prazer. Viver, aqui, significa envolver-se com objetos sexuais e administrar esses relacionamentos de modo a, pelo menos, diminuir o desprazer. As dificuldades surgem das situações da vida sexual. Do princípio de realidade. O menino freudiano vive na situação familiar triangular, onde o seu único objeto sexual possível é a mãe, sendo que lá está o pai que faz sexo com ela e não deixa que o menino faça o mesmo. É ameaçado de castração ou pelo menos teme que é. As defesas identificadas por Freud são também conhecidas: regredir na linha do desenvolvimento instintual (o lugar do sexo volta a ser ocupado pelo apetite), tornar-se neurótico mesmo, ou sublimar, isto é, aceitar a condição de castrado. A angústia de castração pode reaparecer na vida sexual de adultos, quando esta é complicada pelas pressões da vida social, na qual a vida psíquica no seu todo é submetida à ditadura da razão pelo processo cultural, que sublima os instintos, dirige o desejo (a “energia psíquica”) para objetos mais “elevados”, abstratos, mas ao preço de gerar o “mal-estar na cultura”.

Em todos os momentos, o destino do indivíduo freudiano é o da sua libido, a qual passa por deslocamentos inevitáveis, eventualmente fantásticos, sempre tentando realizar o programa do princípio do prazer, que determina o propósito da vida: repetir a mãe em tudo que encontro, achar substitutos pela perda da mãe. Viverá assujeitado, como alguém dominado por três Senhores implacáveis: o corpo, com os instintos; o mundo externo; e os outros seres humanos representados pelo seu super-eu. Não poderá criar o seu destino, só poderá escolher a sujeição mais elevada das três. Sendo assim, qual é a tarefa básica da clínica recomendada por Freud? Ajudar o paciente a aceitar a sua condição de castrado, como um “sujeito”. Com isto, Lacan fez fortuna.

Repetidas vezes Winnicott enfatizou que o seu problema central teórico e clínico é saber se a vida humana, considerada em toda a sua extensão do começo ao fim, inclusive a conduzida de acordo com o programa do princípio do prazer, vale a pena ser vivida. Seria errôneo pensar que, ao formular esse problema e a sua resposta, Winnicott se fez filósofo e se afastou não só da psicanálise, mas também da clínica em geral. Seu ponto de partida, como o de Freud, é clínico, apenas relacionado a um outro tipo de distúrbio, que é gerado não por repressão do instinto (ou da “pulsão”), mas pelo não atendimento à necessidade de existir, o que não é um tormento dos neuróticos. Estes regridem ou ficam reprimidos ou, na melhor das hipóteses, sublimam, mas não enlouquecem. Nem se suicidam. Não ficam aniquilados. Freud de fato se recusou a tratar psicanaliticamente da loucura e não tem qualquer diagnóstico clinicamente aproveitável do suicídio. Tal como a questão do sexo, a questão do valor da vida também surge nos primórdios, antes mesmo dos problemas edípicos, já entre os bebês ainda no colo da mãe, quando não recebem dela o que necessitam. Os bebês que ainda não integraram os instintos e que, portanto, não são movidos por eles (nem por pulsões), não têm condições de ativar mecanismos mentais (comportar-se como se tivessem aparelhos psíquicos); estão aí para ser, isto é, para se integrar e se relacionar, que são necessidades decorrentes do potencial herdado que distingue a natureza humana. Essas necessidades não podem ser “satisfeitas” em termos de relacionamentos objetais; precisam ser atendidas em termos de cuidado parental constante com a dependência absoluta do bebê. Quando não atendidas, o bebê não acontece como um si-mesmo unitário com capacidade de relacionamentos futuros, um existente. Flutua entre a vida e a morte, ser e não ser, comer ou não comer, entre o amor e o isolamento, entre o absurdo e o que faz sentido. É tomado pela angústia. Não pela angústia neurótica de castração, da perda de uma parte do corpo, mas de aniquilamento, da perda de tudo. Por não ser decorrente dos distúrbios de relacionamentos objetais externos, como os sexuais, essa angústia é irrepresentável; propriamente dito, impensável; razão pela qual não é experienciada como tal, mas sim em termos de fracasso na não realização das tarefas iniciais do amadurecimento: não integração no espaço e no tempo (cair em pedaços, cair para sempre), perder o corpo, perder a capacidade de relacionamento aos objetos, ficar fechado em si mesmo (retraimento).

Os psicóticos, que são os bebês malsucedidos, reeditam as mesmas experiências de angústias impensáveis. Vivem o tempo todo, como os bebês não cuidados, suspensos entre viver e não viver. Agonizam. Por isso mesmo desprezam os neuróticos e seus mesquinhos problemas todos internos ao viver. E forçam o clínico atento a diagnosticar o problema do que está em jogo. Mesmo os adultos sadios sabem do perigo, embora momentâneo, de se sentirem irreais, de não serem eles mesmos, de sucumbirem para sempre, de perderem a orientação, de serem desligados do próprio corpo, de não serem nada e não estarem em lugar nenhum, de se sentirem aniquilados. De ver sendo desfeita a sua integração.

A questão sobre a vida dos bebês e dos psicóticos, temida pelos adultos, mesmo os sadios, reaparece na experiência cultural ao longo dos tempos. Ela remete imediatamente à filosofia, à teologia, à literatura. A filosofia se debruça, desde que sabe de si, sobre o mesmo problema que já aflige o bebê humano malcuidado, o de saber se o mundo externo (a mãe) já existe lá, fora de mim, confiavelmente, mesmo quando não olho para ele (me afasto dele). A teologia nunca se livrou da dúvida de saber se existe um Deus criador de tudo, protetor, salvador, senhor dos destinos humanos. A literatura, e a arte em geral, traz múltiplos testemunhos do problema do existir: não nasci, a minha vida é uma hesitação que precede o nascimento (Kafka), meu nascimento é um inconveniente a ser desfeito, “des-criado” (Cioran), eu não sou nomeável (Beckett), eu não sou um (Pessoa), eu não tenho cara (Bacon), eu não tenho corpo (Giacometti)….

A solução para o problema do valor da vida, tanto clínico como humano em geral, não está na sujeição acompanhada de sublimação, mas no uso da espontaneidade criativa do “si-mesmo”. Esse é o nome winnicottiano para o centro de operações experienciadas como espontâneas, operações que não são vividas como efeitos de estimulações externas ou internas. Desse núcleo da personalidade, do si-mesmo, verdadeiro, porque espontâneo, surgem os diferentes modos de viver. Trata-se de criações absolutamente originais. Existe, portanto, uma criatividade primária, anterior às operações mentais de introjeção, que pertence ao estar vivo, a qual se desenvolve ao longo da vida, no início, pelo brincar e, em seguida, pela vida cultural e pelo viver no seu todo. De fato, em que consiste criar? Em integrar no todo de uma vida, no espaço-tempo dos relacionamentos, o que quer que se encontre; juntar o que está presente com o passado e futuro, consigo e com os outros, mas só depois de destruí-lo; não copiar (o plágio é pecado imperdoável no campo cultural), dar sentido novo a tudo que é antigo, velho e convencional, abrir espaço que permita viver e desfrutar a vida como expressão pessoal do si-mesmo, mesmo que haja sofrimento.

Winnicott identifica várias de uma série infinita de criações que, na saúde, se estendem ao longo do processo de amadurecimento, na prática do viver e na cultura. Nos estágios iniciais, o bebê cria, dá sentido ao seio da mãe que encontra, cria a própria mãe, cria seu próprio gesto, que é, diz Winnicott, o si-mesmo verdadeiro em ação (dou isso à mãe), cria os objetos transicionais que não dão prazer, mas asseguram, cria símbolos que, inicialmente, fazem as vezes da mãe. Em seguida, em estados excitados, cria a realidade externa, a mãe como pessoa inteira, a capacidade de brincar, a capacidade de ser responsável, de se colocar na pele dos outros (identificação cruzada); cria – percebe apercebendo –, árvores e relógios. Já criança, cria a família, os deuses dos lares, o Deus do monoteísmo. Os meninos sairão do conflito edípico sem precisarem se submeter à vontade do pai, pois poderão criar, assim como fizeram com a mãe, outras mulheres que eles encontram, dando sentido pessoal ao relacionamento. Os adolescentes sadios a caminho da independência, essencialmente rebeldes, criarão novos sentidos de sociedade. Os adultos maduros serão autores das mais variadas abstrações culturais e de sua inserção na história da humanidade. Criatividade e variação, não sujeição a padrões eróticos tradicionais: é nisso, na ars amatoria, que está a saída winnicottiana madura para os problemas edípicos. De acordo com isso, a tarefa básica da clínica winnicottiana é ajudar o paciente a recuperar a sua espontaneidade e a retomar, em primeira pessoa, o processo de amadurecimento a partir do momento em que este foi bloqueado ou começou a ser distorcido. A refazer a vida.

Essas são as duas vidas de que estou falando. A vida freudiana, conduzida de acordo com as metas do princípio de prazer sob o controle ditatorial do princípio de realidade externa. E a vida winnicottiana, realizada segundo o princípio fundamental da existência: o que quer que se faça na vida, mesmo o mais agressivo e destrutivo, é experienciado como real se, e só se, proceder do si-mesmo verdadeiro; só é bom e vale a pena o que for experienciado como criado e por isso real (veja-se o texto da Bíblia: Deus criou o mundo do nada, olhou e acho que era bom); o que é adaptativo, complacente, por prazeroso que seja, é experienciado como não real e como vão, fútil. O princípio de (obediência à) realidade externa é o arqui-inimigo da espontaneidade, uma afronta.

Aqui surge para Winnicott uma pergunta cuja resposta se revelará um ponto central da sua teoria da natureza humana e da sua clínica: qual é o lugar em que podemos viver criativamente?

Zeljko Loparic é filósofo, professor titular aposentado da Unicamp, fundador, com Elsa Oliveira Dias, do Instituto Winnicott e da International Winnicott Association. Publicou numerosos trabalhos sobre Kant, Heidegger e Winnicott. A totalidade da sua produção intelectual encontra-se disponível online em Acervo Loparic.

 

Uma parceria com o Instituto Winnicott

 

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