Melancolia e conservadorismo: o brilho do Sol Negro

Melancolia e conservadorismo: o brilho do Sol Negro
Arte sobre obra de Constance Marie Charpentier, Melancholy, 1801 (Museu Picardie / França)

 

 A Coisa melancólica interrompe a metonímia desejante,assim como ela se opõe à elaboração intrapsíquica da perda.  Como se aproximar desse lugar?
(O SOL NEGRO)

O acirramento do conservadorismo não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Com frequência ele dá as caras em tempos de crise e, em meio à radical crise do globalismo liberal que temos enfrentado, não seria diferente. Diversos países no mundo têm enfrentado semelhante acontecimento e as eleições na Alemanha, na França, na Argentina, nos EUA são um exemplo disso.

Sem dúvida vivemos um momento de crise, em que sentimentos conservadores ganham contornos fascistizantes. É sobre isso que gostaria de pensar. Qual a marca da subjetividade conservadora? Penso sobre isso, pois considero que a reflexão sobre o conservadorismo, sua humanização e sua localização afetiva são centrais no desvelamento das ferramentas fascistas tão em voga no conservadorismo da sociedade brasileira.

Roger Scrutton, o filósofo conservador, presente em dezenas de listas na internet intituladas “Tudo o que um jovem conservador precisa ler” ou coisa que o valha, escreveu  em Como ser conservador?:

“Contamos histórias reconfortantes sobre a inocência dos tempos idos e acalentamos a ambição de agarrarmo-nos ao passado — mas a um passado adulterado, cujas partes ameaçadoras foram cuidadosamente extirpadas. Depois, ao despertarmos, lamentamos a perda de um sonho. Não devemos resistir completamente a essa tendência. Em particular, devemos reconhecer as perdas da melhor maneira que pudermos suportá-las. Penso que isso é especialmente verdadeiro em relação à perda da religião”

Para Scrutton, o conservador tem o dever de alertar o mundo sobre a tragédia que a perda de certos valores morais conduziria nossa sociedade. Sua obra é a formulação fina do que pretendo chamar de melancolia conservadora. A ideia por ele expressa de um mundo de caos e guerra, pós-religioso, é resultado da articulação de dois dos principais instrumentos do conservadorismo: a fuga e o medo, sobre os quais falarei mais adiante.

Tenho dito, com frequência, que o conservadorismo é melancólico, como sentimento e como subjetividade. Nasce, em alguns casos, da recusa em  lidar com as mudanças do mundo, das pessoas, das amizades, e em outros, de um misto de apego com desesperança.

É tremendamente comum, todos nós enfrentamos, vez ou outra, com justeza ou não, sentimentos conservadores. “Na minha época era que se fazia música de verdade” ou “A criação das crianças da minha geração é que foi boa”. Sempre existe um passado pelo qual nos afeiçoamos e tendemos a considerar muito melhor do que o presente, ou muito melhor do que o futuro pode ser. Esse apelo a um mundo ideal ou drasticamente melhor no passado é que configura a tendência escapista do conservador.

Em relação ao escapismo, é muito importante compreender a desresponsabilização política que ele promove. A recusa do presente e o proselitismo do passado situam o conservador político em uma posição que se pretende, ao mesmo tempo, moralmente superior e distanciada. Desta maneira, semelhante ao criticismo destrutivo, não há, entre o conservador político e o mundo, compromisso algum. Onde não há compromisso com o mundo, não pode haver política, já propunha Hannah Arendt com seu amore mundi. É neste sentido que as saídas políticas nascidas do conservadorismo implicam quase sempre em controle, censura e toda sorte de instrumento anti-político de organização da vida.

Arendt propõe que o sentido da política deve ser a liberdade de ação e a política. É o “entre homens”, este espaço entre um e outro, que permite a ação, a palavra, a pluralidade. Contudo, essa não é uma condição dada. A política, como tal, está em constante risco e este foi, entre outras questões, o alerta que ela nos fez em As Origens do Totalitarismo. O Terceiro Reich pôs em risco a própria política. Num momento de crise a descrença na política, a busca de uma identidade no passado, a melancolia e o medo se conjugam na construção das saídas que negam a política.

Enfrentamos hoje, no Brasil, o acirramento de subjetividades anti-políticas, de figuras autoritárias e violentas como o Deputado Jair Messias Bolsonaro, o representante da anti-política autoritária. Ou ainda, figuras como o Prefeito de São Paulo, João Dória, que discursa pela negação da política em nome de uma suposta “técnica”, a Gestão como paradigma de resolução dos conflitos da pólis e não mais a política. Ou, como vemos frequentemente no avanço de setores do neopentecostalismo, os flertes com uma República conduzida por Deus, teocrática, portanto.

Não pensem com isso que a melancolia é sempre conservadora, seria incrivelmente equivocada tal afirmação. A psicanalista Julia Kristeva, em Sol Negro, constrói uma riquíssima análise da melancolia, propondo-a, não apenas como tristeza do rompimento ou como uma espécie de depressão, mas também como dotada de força imaginativa. A melancolia do bebê apartado de sua mãe  produz a linguagem, esforço criativo de reconciliação com o mundo. Aristóteles (Problemata 30), por sua vez, toma a melancolia (melania kole/bilis negra) como elemento dos grandes homens, o ethos do Ser filosófico, neste sentido a melancolia estaria muito mais próxima da angústia heiddegeriana.

Também Michael Löwy, em Revolta e Melancolia, dá a essa negação romântica do presente o estatuto de crítica da Modernidade. Neste caso, a crítica seria ao que a modernidade produziu, do capitalismo às guerras, destruição e crise ambiental. O pensamento romântico (marcado pela melancolia) seria, então, uma forma de crítica à modernidade.

Essa é uma afetação possível da melancolia, certamente. Julia Kristeva, em outra passagem do Sol Negro, ao aprofundar as temáticas de melancolia e depressão no campo da psicanálise, nos brinda com a contradição melancólica entre o esforço criativo e a destruição do ambiente sígnico.

É possível, então, que pensemos na melancolia, retirando-a do campo patológico em que foi encerrada pela psicanálise freudiana. Retomando, assim, seu lugar na pólis aristotélica como dotada da possibilidade de nos prender  ao passado, numa recusa/fuga conservadora do presente para  a reconstrução do passado. E, ainda, noutro sentido, como sendo um afeto capaz de produzir a crítica do presente, tomando o rumo do passado na construção de um futuro que não seja, nem como o passado, nem como o presente. O ponto distintivo de uma melancolia para a outra está no lugar a ser ocupado pela imaginação.

A melancolia, portanto, não é conservadora. O conservadorismo (e não apenas ele), este sim, é melancólico, pois se instala no corte, no rompimento de sentido com o mundo e num esforço criativo de retorno ao passado, o que é impossível. Se o bebê, que não pode novamente unir-se à  mãe, produz linguagem, o que produz o conservador melancólico ao atar-se ao passado? Essa potência imaginativa inversa é que nos interessa, pois ela, em associação com a extrema direita, resultará em um certo conjunto de formas políticas e de práticas políticas profundamente anti-políticas.

Considero muito importante para os nossos tempos entender o conservadorismo como um fenômeno humano que nos afeta a todos em alguma medida. É esse o caminho, penso eu, que nos permitirá conversar com os conservadores, dialogar com o medo, este afeto triste, que tem sido o adubo dos debates políticos mais atuais.

Por que dialogar com o medo? É preciso que progressistas e não conservadores se esforcem em dialogar com os conservadores políticos? Acredito que, em primeiro lugar, seja preciso distinguir os políticos conservadores, que ritualizam suas posições em uma espécie de performance de identidade política, ritmada e atualizada pela eleição de um alguém a quem odiar, das pessoas em geral, frequentemente desvinculadas do mundo formalizado da política e dos movimentos sociais, que é conduzido pela produção do medo.

A questão não é simplesmente o sentimento conservador ou uma percepção conservadora da vida, mas quando, este incômodo, este terror frente às mudanças se convertem em ativismo político de extrema direita. O medo, transformado em ação política com vistas a “conservar” o mundo tal qual é, ou, se possível, fazer com que ele torne a ser como antes.

Recentemente vimos no Congresso Nacional os debates sobre a “ proibição do funk”, os argumentos em defesa dessa proibição iam desde uma suposta degeneração moral da sociedade, impulsionada por estas músicas,  até a argumentação de que elas incentivavam a violência, o assédio, o aumento da criminalidade. Obviamente este debate, que soou bastante absurdo, tem como pano de fundo uma certa concepção de cultura, de música, de temáticas artísticas e uma geopolítica do que pode ser considerado como cultura, com frequência, nas manifestações de internet, as pessoas faziam comparações entre o funk e a música “da época delas”, projetando  no passado  maior valor, beleza, moralidade artística.

Assim como, no surgimento da Bossa Nova, diziam que aquilo não era música; ao contrário: era falado, não cantado. Como poderia ser música?

O Brasil vive hoje o contexto das guerras culturais, o eixo do debate político desloca-se para temas que envolvem, sobretudo, questões morais: aborto, transexualidade, feminismo, direitos humanos. Este paradigma favorece a conversão dos sentimentos conservadores em um ativismo político conservador.

O conservadorismo político, penso, nasce de certa melancolia. É romântico, seja o romantismo da pureza ultra-romântica, seja o das fugas, ou o heroico condor. Ele é romântico e redunda em frustração, eis a fragilidade dessa condição, porque nenhum sujeito ou grupo é capaz de pôr freio às mudanças que o tempo e as forças humanas operam no tecido social. A posição conservadora é, além de melancólica, frequentemente frustrante.

Nesse sentido, considero importante pensar nos efeitos políticos da frustração, que é, ela mesma, uma força política. Durante as manifestações que desembocaram no impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff era comum observar manifestações de ódio e violência  porque ela simbolizava uma espécie de “agente causador da frustração”. Há, certamente, uma dose de violência que resulta da frustração.

Percebemos isso quando somos confrontados por certa direita conservadora, que lida, dia após dia, com a tentativa de pôr freio às novas formas de organização das famílias, à desestabilização das identidades, a ascensão de questões políticas que antes não eram uma questão e que estavam dadas como certas.

Como será o mundo com a diluição dos elementos que sempre ordenaram nossa relação com a realidade? A família tradicional, a heterossexualidade, a noção biológica do que é homem e do que é mulher, a competição como dado intrínseco às nossas formas de agir. Que mundo virá?

O conservadorismo, melancólico, romântico e também medroso, às vezes travestido de prudente, também dá suas caras na esquerda, mas, aí, geralmente nasce não da incapacidade de lidar com as mudanças, mas da desesperança. Se estivemos melhor no passado, há nove anos, então o melhor é unirmos forças para reconstruir, no presente, o passado. Ora, existe sentimento mais conservador do que esse?

Quero frisar que pensar o conservadorismo no horizonte da melancolia não implica em uma defesa de uma postura “vanguardista” ou “novidadesca”, que para manter o campo semântico, poderíamos chamar de “euforia política”, a ânsia desmedida, apaixonada por produzir novidades, descartando as trajetórias, a história e o que foi pensado e construído até o presente. Contudo, e este é provavelmente o mais importante nessa conjuntura política, é preciso resgatar a imaginação como tarefa política. Precisamos, emergencialmente, imaginar uma saída, um mundo, uma utopia. Só existe, talvez, um sentimento capaz de mobilizar as pessoas contra o próprio medo, e é a esperança.


HELENA VIEIRA é escritora e pesquisadora do Núcleo de Políticas de Gênero da Unilab

(5) Comentários

  1. O “ativismo político de extrema direita” neste país decorreu do ativismo político de extrema-esquerda, personificado inclusive na “golpeada” Dilma Roussef – que agia, como linha de frente do seu partido, para implantar um programa socialista para o qual não foram eleitos.
    G.K, Chesterton disse bem sobre a oposição conservadores x progressistas: “Todo o mundo moderno se dividiu em conservadores e progressistas. O negócio dos progressistas é seguir cometendo erros. O dos conservadores é evitar que os erros sejam corrigidos. Mesmo quando o revolucionário possa ele próprio se arrepender de sua revolução, o tradicionalista já está defendo-a como parte da sua tradição. Assim, nós temos dois grandes tipos – a pessoa avançada que nos empurra para a ruína e a pessoa retrospectiva que admira as ruínas. Ele as admira especialmente à luz da lua, para não dizer sob um raio da lua. Cada nova tolice do progressista ou golpista se torna instantaneamente uma lenda ou antiguidade imemorial para o pretensioso. Isso é chamado de equilíbrio, ou contrapesos mútuos, em nossa Constituição.”
    “Progresso” demais pode nos jogar num abismo escuro.
    P.S. A escolha do trecho do Scrutton não foi feliz, se a intenção era apresentar sua noção de conservadorismo.

  2. No texto é mencionado como “autoritário e violento” o Bolsonaro (que surpresa…), mas não é flagrantemente “autoritário e violento” a atitude do lulopetismo (e satélites) de negar a legitimidade dos juízes decidirem se Lula é culpado ou inocente? Para não falar do apoio formal à ditadura venezuelana…

  3. INCRÍVEL!! PARABÉNS!! ESCREVO EM MAIÚSCULO PORQUE É ASSIM QUE MEUS PENSAMENTOS IDEIAS E CONSCIÊNCIA ESTÁ: MAIUSCULIZADAS!! KK
    AGRADEÇO PELAS PALAVRAS. QUE TEXTO INCRÍVEL. DESCULPE O EXAGERO, MAS ESTOU MUITO FELIZ POR TER LIDO TUDO ISSO. FELIZ QUE NÃO SOU O ÚNICO A TRATAR A esperança COM TANTO CUIDADO. E SIM! ELA ESTÁ MINÚSCULA DIANTE DA SITUAÇÃO NA QUAL NOS ENCONTRAMOS. ELA TEM QUE SER GRITADA TAMBÉM! NOVAMENTE. E SEMPRE.

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