Arcas de Babel: Fernanda Morse traduz Diane di Prima

Arcas de Babel: Fernanda Morse traduz Diane di Prima
Diane di Prima aborda assuntos tão fundamentais como o amor e a sua existência enquanto mulher escritora (Divulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.

Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta edição, a poeta e pesquisadora Fernanda Morse traduz e apresenta a poesia provocadora e feminista de Diane di Prima, importante poeta da geração beat, ainda inédita em livro no Brasil.

Fernanda Morse cursa atualmente o mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, estudando as poetas Diane di Prima e Ana Cristina Cesar. Como poeta, tem textos publicados em diversas revistas e lançou duas plaquetes: a primeira em 2014, pela Coleção Kraft, da editora Cozinha Experimental e a segunda em 2015, intitulada Impossíveis, pelo selo Cactus. Abaixo, ela escreve sobre a vida e obra de Prima.

***

Diane di Prima nasce em 6 de agosto de 1934, no Brooklyn, NY, filha de pai e mãe descendentes diretos de italianos. A sua infância foi marcada pelo espectro da Segunda Guerra Mundial, por uma relação conflituosa com o seu pai e pela proximidade com o seu avô anarquista, Domenico Mallozzi, o que aparecerá em seus poemas e relatos.

Em 1951, di Prima começa a estudar no Swarthmore College, na Pensilvânia, mas rapidamente se frustra com a experiência na universidade e, dois anos depois de seu ingresso, abandona o curso – sendo esse o primeiro gesto significativo de ruptura com as expectativas e imposições de seus pais e do american way of life.

A ele seguiram-se muitos outros, como realizar o desejo de ser mãe solo aos 23 anos e buscar uma experiência de família e de comunidade em que os laços construídos seriam baseados na vontade espontânea de se estar perto, de trocar artística e intelectualmente, de amar sem o peso do controle e dos códigos sociais. A mudança de Diane di Prima, em 1953, para o bairro de Greenwich Village, Manhattan, abre caminho para essas vivências e marca o início da sua trajetória artística.

Como poeta, não era nem fama, nem prestígio, nem dinheiro o que di Prima buscava: ela almejava a liberdade. A liberdade de não fazer parte de uma sociedade que ela e a sua geração desprezavam: “Ao nos colocarmos de fora, nós sentíamos que aquelas não eram nossas guerras, nossos assassinatos, nossos erros”. Essa busca marca o tema e o estilo de sua produção sobretudo entre 1955 e 1965, quando viveu em Nova Iorque, período em que a maioria dos poemas aqui selecionados foram escritos.

Assim, a poeta aborda, como que em um esforço de reinvenção, assuntos tão fundamentais como o amor, a sua existência enquanto mulher escritora, as construções de amizade e família e inquietações políticas através de um estilo que, por vezes, comunga com a chamada Geração Beatnik um apreço pela coloquialidade e pelo uso do slang, mas que não raro se mostra menos eloquente e mais sintético, como se pode verificar nos poemas a seguir.

O primeiro livro de poesia publicado por di Prima data de 1958, This kind of bird flies backwards (Aadvark Press). Três anos mais tarde, funda, em colaboração com John Herbert McDowell, James Waring, LeRoi Jones, Alan Marlowe e Fred Herko, o New York Poets Theatre, para o qual experimentou escrever algumas peças. Também com LeRoi Jones (Amiri Baraka) coeditou, entre 1961 e 1971, o periódico mimeografado The floating bear, para o qual escritores como Frank O’Hara, Charles Olson, John Ashbery, Robert Creeley e Michael McClure contribuíram.

A autora muda-se para São Francisco em 1968. Ao chegar, une-se aos The Diggers, um grupo de teatro e ativismo que distribuía comida gratuita e realizava espécies de happenings nas ruas para convocar os passantes à ação política. Dessa experiência, urgiu a produção de poemas que pudessem atingir de forma mais contundente os ouvintes apressados – e assim nasceram as Revolutionary letters, cuja primeira seleção em livro foi publicada em 1968, de modo independente. O trabalho conta com diversas reedições que agregam novos poemas, sendo a última versão expandida datada de 2007, contando com 93 poemas – está prevista para outubro de 2021 uma nova edição a ser lançada pela editora City Lights.

 

 

A obra mais robusta de Diane
di Prima é o livro Loba, que
veio a público em diversas
edições, através das quais se
expandia e se modificava – a
última versão disponível até
agora, que contém dezesseis
partes, foi publicada pela
Penguin em 1998.

 

 

Espécie de épico da entidade feminina figurada como loba, nessa obra Diane di Prima explora os limites da passagem do corpo ao espírito e vice-versa, escrevendo um grande poema mítico que consegue ser, ao mesmo tempo, transcendental e atado à terra. No livro I, vemos sobretudo a influência de seus estudos e pesquisas sobre o gnosticismo e o cristianismo; já no livro II, explora as tradições do budismo tibetano, o mito da deusa indiana Kali, assim como do deus Toth, do Egito Antigo.

Em 1990, publica pela editora City Lights a coletânea Pieces of a song, fonte de onde retiramos os poemas aqui selecionados. Em 2001, lança a sua autobiografia Recollections of my life as a woman: the New York years, em que aborda o início de sua carreira e sua juventude em Nova Iorque. Em 2009, é nomeada Poeta Laureada de São Francisco, um reconhecimento da cidade que ela reconhecia como o seu “verdadeiro lar”. De 2010 em diante, a sua saúde se torna cada vez mais debilitada e a escritora passa a enfrentar, entre outras coisas, a doença de Parkinson e a síndrome de Sjögren.

di Prima vive os últimos anos de sua vida em uma casa de repouso onde segue lendo, escrevendo e trabalhando nos seus manuscritos, que são muitos. Há mais livros seus não publicados do que editados – em 2010, foram listados quatorze no total.

Sua maior preocupação era deixar todo esse material ao menos organizado para, caso partisse antes de publicá-lo, pudessem fazê-lo em seu lugar. Diane di Prima morre na manhã de 25 de outubro de 2020, “em paz, sem medo e acompanhada do seu amado marido Sheppard”, segundo nota publicada pela sua filha Dominique di Prima. Daqui, aguardamos a chegada das suas tantas obras inéditas. – Fernanda Morse

 

A PRÁTICA DA EVOCAÇÃO MÁGICA



A fêmea é fértil, e a disciplina
(contra naturam) só
a confunde
– Gary Snyder

eu sou uma mulher e meus poemas
são de mulher:     fácil dizer
assim.     a fêmea é dúctil
e
(golpe após golpe)
criada para uma calma
masoquista.           O nervo amortecido
faz parte dela:
sexo acordado, retina morta
olhos de peixe;                na raiz do cabelo
abalo mínimo
e a arquitetura funcional pélvica
por dentro & por fora atacada
(dá à luz)     a boceta se alarga
e meio molhada
só dá à luz filhos homens
                                a fêmea
é
dúctil

mulher, um véu pelo qual a Vontade dedada é
duas vezes rasgada
duas vezes rasgada
                por dentro & por fora
o fluxo
qual ritmo dar à inércia
qual elogio?

 

THE PRACTICE OF MAGICAL EVOCATION

 

The female is fertile, and discipline
(contra naturam) only
           confuses her
– Gary Snyder

i am a woman and my poems
are woman’s:   easy to say
this.      the female is ductile
and
(stroke after stroke)
built for masochistic
calm.            The deadened nerve
is part of it:
awakened sex, dead retina
fish eyes;                 at hair’s root
minimal feeling
and pelvic architecture functional
assailed inside & out
(bring forth)     the cunt gets wide
and relatively sloppy
bring forth men children only
female
is
ductile

woman, a veil thru which the fingering Will
twice torn
twice torn
inside & out
the flow
what rhythm add to stillness
what applause?

 

ESSES DIAS

 

 

Para Bill Vitt

descaradamente serelepe & dada
a danças espevitadas. Definitivamente
longe de me preocupar c/
a minha cozinha. O amor é uma bebida
que esquenta o sangue. É eficaz
quando se mexe em mim ao amanhecer
& eu vejo a névoa se dissipar & as
águas paradas. Então o vento
surge. Eu não chamo ninguém, só
ando para o prado c/ Rudi.
Boiamos como narcisos e olhamos
o campo todo branco. Quando
voltamos, o amor nos desperta assim
como o bom café de Celebes que preparo
a xícara de cerâmica roçando áspera
sob meus dedos. Elton John
dá lugar a Monk quando Alex
levanta. O vento forma espumas
na Baía e o amor é um gosto
em minha boca, uma penugem
de luz em meus olhos.
Talvez eu ligue mais tarde.
Talvez eu chacoalhe
na sua estrada de terra & apareça
com as crianças.

 

THESE DAYS

 

 

For Bill Vitt

undisguisedly mirthful & given
to lavish dancing. Permanently
removed from concern abt my
kitchen. Love is a liquor that
warms the blood. It is useful
in that it stirs in me at dawn
& I see the mist burn off & the
waters still. Then the wind
rises. I don’t call anyone, but
walk to the meadow w/ Rudi.
We float narcissus & stare
at whitened wood. When
we return, love is rousing as the
good Celebes coffee I brew
the stoneware cup tingles rough
under my fingers. Elton John
gives way to Monk when Alex
gets up. There are white caps
on the Bay & love is a taste
in my mouth, a fur
of light on my eyes.
Perhaps I’ll call you later.
Perhaps I’ll pump
over yr dirt road & visit
with the children.

 

MENSTRUAÇÃO, SETEMBRO DE 1964

 

 

Como perdoá-lo por esse sangue?
Que não deveria correr outra vez, mas agarrar-se feliz ao meu útero
para crescer, e virar um filho?

Quando me aproximo de noite, você suspira, e vira pro lado
Quando me aproximo de tarde, na nossa cama,
Onde você fica lendo, você me afasta dizendo
Que faz calor, que está cansado.

Você protesta, você fala de violência, você tira sangue
mas só o meu, infértil & faminto sangue
que deveria ser outra coisa.

 

I GET MY PERIOD, SEPTEMBER 1964

 

 

How can I forgive you this blood?
Which was not to flow again, but to cling joyously to my womb
To grow, and become a son?

When I turn to you in the night, you sigh, and turn over
When I turn to you in the afternoon, on our bed,
Where you lie reading, you put me off, saying only
It is hot, you are tired.

You picket, you talk of violence, you draw blood
But only from me, unseeded & hungry blood
Which meant to be something else.

 

CANÇÃO PARA MEU BEBEZINHO, POR NASCER

 

 

Querido,
quando você me romper
você vai achar
uma poeta aqui
nada que alguém escolheria.

não prometo
que você nunca passará fome
ou que não se sentirá triste
nesse mundo
desentranhado
rompido.

mas posso te mostrar
meu bebê
amor o suficiente
pra partir seu coração
pra sempre

 

SONG FOR BABY-O, UNBORN

 

 

Sweetheart
when you break thru
you’ll find
a poet here
not quite what one would choose.

I won’t promise
you’ll never go hungry
or that you won’t be sad
on this gutted
breaking
globe

but I can show you
baby
enough to love
to break your heart
forever

 

CAMINHO ESTREITO PARA O CAMPO

 

 

Para Audre Lorde

1
Você está voando para Daomé, voltando
pralgum sonho, ou pra terra do nunca-nunca
mais proibida & perfeita
que Oz. Vai aterrissar num aeroporto do Oeste
barulhento, pequeno e fuleiro, vai procurar
por Oxum, enquanto ela permanece
esperando a bagagem. Bem, nós levamos
o paraíso da terra pura por dentro, você o leva
para Daomé, desde Staten Island.

2
nós resistimos. estamos certas disso. sem mais.
nós resistimos: fome, terremoto, depressão,
peste, guerra, inundação, estado policial,
inflação
comida ersatz. cidades em chamas. você resiste,
eu resisto.  Está escrito
no rosto de nossos filhos. Alegria elástica,
persistente; a Vontade como montanhas, a esperança
que bate no seu coração e no meu. (Ouça-os gritar)
E eu não vou pular fora, não vejo
a sua guerra diferente da minha. Território tomado
de você e de mim; praticamos magias
clandestinas, todas nós, para a proteção deles.
Pra que eles tenham fruta pra comer & arroz & peixe
até ficarem fortes.
(Se lembra do polvo que não cozinhamos
à moda siciliana/oeste-africana – ele alimenta
os sonhos da sua filha)    Eu me recuso
a te deixar com as tuas batalhas, eu com as minhas

minha garota
coiote branca caçada, irmã da minha loba
& não pelas mesetas.

3
como colocar a comida na mesa
como curar
o que sobrevive a esse turbilhão:
povo e terra. O mar
se agita febril; grita em delírio.
Ter a erva certa secando na cozinha:
Seu mundo e o meu/ todos os outros: não o Terceiro
este é o Quarto Mundo caindo, dizem os Hopi.
Contudo, resistimos.

4
E mais, nós voamos para a luz, voamos
pro paraíso da terra pura, Nova Iorque
Daomé, Marte, Jacarta, País de Gales
Crianças persistentes, teimosas portando sementes
todas as raças; tempo de avançar & bom o suficiente
bem forjado o suficiente para nossa alegria.
Para toda a nossa alegria.

 

NARROW PATH INTO THE BACK COUNTRY

 


For Audre Lorde

1
You are flying to Dahomey, going back
to some dream, or never-never land
more forbidding & perfect
than Oz. Will land in Western airport
noisy, small & tacky, will look around
for Oshun, as she stands
waiting for baggage. Well, we carry
pure-land paradise within, you carry
it to Dahomey, from Staten Island.

2
we endure. this we are certain of. no more.
we endure: famine, depression, earthquake,
pestilence, war, flood, police state,
inflation
ersatz food. burning cities.  you endure,
I endure.  It is written
on the faces of our children. Pliant, persistent
joy; Will like mountains, hope
that batters yr heart & mine. (Hear them shout)
And I will not bow out, cannot see
your war as different. Turf stolen from
yours & mine; clandestine magics
we practice, all of us, for their protection.
That they have fruit to eat & rice & fish
till they grow strong.
(Remember the octopus we did not cook
Sicilian style/West African style – it fills
your daughter’s dream)    I refuse
to leave you to yr battles, me to mine

my girl
chased white coyote, sister to my wolf
& not thru mesas.

3
how to get the food on the table
how to heal
what survives this whirlwind:
people and land.  The sea
tosses feverish; screams in delirium.
To have the right herb drying in the kitchen:
your world & mine/ all others: not the Third
this is Fourth World going down, the Hopi say.
Yet we endure.

4
And more, we fly to light, fly into
pure-land paradise, New York
Dahomey, Mars, Djakarta, Wales
The willful, stubborn children carrying seed
all races; hurtling time & fine enough
fine-wrought enough for our joy.
For all our joy.


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