Uma possível Ana Cristina Cesar

Uma possível Ana Cristina Cesar
Ana Cristina Cesar, em 1982 (Reprodução do acervo Ana Cristina Cesar/IMS)

 

“Tantos poemas que perdi / Tantos que ouvi, de graça, / pelo telefone”. Os versos que abrem “Samba canção”, uma das entregas poéticas daquela que é talvez a obra mais conhecida de Ana C., A teus pés, são capazes de nos levar a pensar: quantos e que tantos poemas a poeta carioca não teria perdido, ouvindo-os de graça, ao telefone, se daqui não tivesse partido em 29 de outubro de 1983. A linguagem de Ana C., programadora, mixeuse de afetos numa pickup de palavras, buscava e encontrava sua força no lapidar desse registro recolhido: a conversa ao telefone, a confissão, a carta, a anotação, o rabisco, feito os lunch poems de Frank O’Hara – e desses fragmentos costurava todo um universo de planos polifônicos de discurso e de intervenção. Poesia que articula e efetiva um real possível na linguagem.

Foi em meio à geração do mimeógrafo que Ana C. despontou. Geração fruto de um novo senso de mobilização que assomava sobre o país, da figura do poeta guerrilheiro de Terra em transe, aquele cuja poética se cruzava com a política, se fazia ato e ação. Um novo perfil de mobilização se imprimia na produção independente daqueles jovens autores cuja experiência coletiva nos finais dos anos 1970 consolidava um legado cultural, comportamental e social do maio de 68. Ana se distinguia valendo-se de um repertório intelectual arguto e de um senso estético ímpar (sua opção “pelo olhar estetizante”). E assim, em meio aos poetas marginais da “Geração 77”, como batizou Elio Gaspari, ela atravessou outros níveis de discurso, fez seu percurso para além das agendas ideológicas, num texto marcado pela declaração do corpo, legado moderno de Walt Whitman – “recito WW para você. Amor, isto não é um livro, sou eu que você segura e sou eu que te seguro” –, em que o poema se faz próprio corpo do poeta, fragmentando fronteiras comportamentais, políticas, íntimas e confessionais e fazendo da poesia sintoma de uma época. Políticas do desejo advindas da guinada de 1968. Fôssemos ecoar Deleuze, de quem Ana C. era leitora, diríamos que o que interessava a ela – a instigava? – era a esfera molecular: os microacontecimentos, o discurso menor.

Retalhos cotidianos

Silviano Santiago deu um título sintomático a seu ensaio de 1985 sobre a poeta: “Singular e anônimo”. Posto que o estado intrínseco da linguagem poética é a constante travessia em direção ao outro, em Ana C., esse “outro”, o leitor, não é um coletivo, e sim um destinatário que, embora sempre singular, “não é pessoal porque necessariamente anônimo”. Leitor este que não tem nome próprio, mas a quem é endereçado, por exemplo, o livro/poema Correspondência completa: o assinalado “My dear”. Uma carta que traz crivada em si uma “grande história passional, guardada a sete chaves”, mas que sangra em cumplicidade e comunhão com o leitor – conosco –, cuja alteridade está ali para ser atravessada num ato de (re)conhecimento.

A trilha que seguiu Ana C. na afectuação da poesia moderna é aquela do corpo que se faz na tecedura do texto, a de Whitman, que articula a vida e a contemporaneidade ditas “pequenas”, fragmentárias/fragmentadas, retalhos cotidianos, na tentativa de traçar a biografia de uma voz. É essa a voz da entrega de A teus pés, do processo encantatório de Luvas de pelica, sedutora travessia para uma dimensão alheia na linguagem, e mesmo do estilhaçamento dos sentidos numa construção ou montagem cinematográfica (remontando a Eisenstein e, também, Godard). No plano de Ana C., o corpo, como para Rimbaud, é primário – ao contrário duma linguagem cerceada, que reifica, o corpo guarda seu significado em reserva e é, antes de tudo, sentido e experimentado através das sensações físicas e movimentos abraçados pelo ato poético.

Numa de suas dobras com a poesia moderna francesa, Ana C. tomou o “Cisne” de Baudelaire pelas asas e fez a travessia do verso alexandrino para o poema em prosa na “Carta de Paris”, um de seus Inéditos & dispersos. Escrita sintonizada “no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno” – estes que aparecem, num imaginário de exílio, justapostos ao “Baudelaire querido” de “21 de fevereiro”, Charles anjo-mito urbano, recuperado no confronto com um momento decisivo na vida cultural, quando tudo devém espetáculo e desponta então a performance.

Nesta mesma carta, Ana C. cruzou o ponto limítrofe em que o poeta se situa entre uma estética da tradição do moderno e o novo, o esboçar (o recolher, recueillement) de uma nova poética presentificada, de força reconstrutiva e rearranjadora de planos: “A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo”. Visão em êxtase um presente tomado por “campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas” – sempre pontuado pela palavra – veículo de esboço daquele campo de estratégia cultural da vida urbana nas décadas de 1970, 1980 e adiante, já visado como memória.

Cartografia do desejo

Muito mais do que uma reescrita de Baudelaire ou do moderno, Ana C. realizou um trabalho de trâmite entre níveis diversos de discursividade, de contaminação de falas, que irrompem em sua própria voz. Assim como os Journaux Intimes do poeta francês não se tratam de um diário íntimo “real” ou “verdadeiro”, sua escrita constituiu-se a partir de fragmentos do cotidiano e da esfera íntima, dispostos como um universo próprio, um novo terreno de linguagem, cujo mapeamento é um shuffling, um embaralhar de história e subjetividade sob o prisma contingente e feminino da escrita confessional.

O que marca a atividade poética de Ana C., em conversa com o contemporâneo, é a poesia em seu conceito mais legitimado de construção do real, como universo autônomo de manipulação, recriação e (re)descoberta, reeducação de si – exercício de cartografia do desejo. Seu legado é uma escrita nova e insurgente, escrita de rupturas e transformações, transmutações até. A subjetividade, o individual e a libido como cosmos, de modo a cruzar o outro, efêmero e passional, em abraços de fato, com direção infinita.

Outro de seus poemas, “Protuberância”, diz: “No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e / serei uma rainha / Rainha de quem, quê, não importa / E se eu morrer antes disso / Não verei a lua mais de perto / Talvez me irrite pisar no impisável / E a morte deve ser muito mais gostosa / Recheada com marchemélou […] Uma palavra me delineia / VORAZ / E em breve a sombra se dilui, / Se perde o anjo”. Trinta anos depois da partida, e doze depois do cálculo versado, é muito improvável que sua mixagem de versos nos elucide sobre o pisar no impisável. “Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?”. Porém, talvez na busca do anjo que se perde, possamos recitar WW por ela: jovens poetas, sou eu quem lhes alcança através dos tempos.

Paulo Ricardo Alves é tradutor e meste em Letras pela USP, onde defendeu a dissertação “Micropolítica do feminino e estética de confrontamento em Patti Smith e Ana Cristina Cesar”

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