Entre continentes: Winnicott e a realidade brasileira

Entre continentes: Winnicott e a realidade brasileira

 

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Em que medida a teoria do amadurecimento de Winnicott nos permite pensar uma clínica em chave decolonial? Uma clínica contextual, na verdade, sabendo que a própria ideia de descolonização/decolonialidade não deixa de ser “importada”? De que forma faríamos uma psicanálise para questões tão prementes na vida humana? Tenho refletido sobre isso, levantando mais perguntas para mim mesmo do que respostas, a partir de estudos teóricos e a partir da minha própria prática clínica.

Sendo a ética a capacidade de estarmos à altura do nosso tempo e de outrem, levar a sério a “ética do cuidado” proposta por Winnicott é considerar no fazer e no pensar psicanalíticos as demandas dos corpos negros negligenciados e não pertencentes ao pensamento “oficial” das áreas do saber. Ao propor isso, penso que estaríamos dando continuidade, na esteira aberta por ele, das dimensões humanas que ainda não tinham sido contempladas no interior da teoria psicanalítica, realidades próprias da dependência do par mãe/bebê, cuja inserção acabou por lançar luz sobre a necessidade de cuidados ambientais, ocasionando uma revolução no interior da psicanálise, pois esta, até então, olhava bebês e mulheres pela ótica dos homens, dos adultos e dos processos intrapsíquicos.

Olhar para os últimos anos da produção psicanalítica no Brasil entusiasma pelas inúmeras propostas para que a psicanálise leve a sério a questão. Cada vez que leio textos que me provocam, me questionam, me informam de outros psicanalistas atentos a respeito da questão racial, trago para mim a reflexão sobre a importância de pensarmos a racialidade a partir da ideia de amadurecimento, “espinha dorsal” da proposta teórica de Winnicott.

Parece-me que o racismo diz respeito a uma condição humana profundamente relacionada aos aspectos maturacionais, sendo esses anteriores aos psíquicos e servindo de base para os mesmos, como apontou Winnicott – seja a partir da sua prática clínica pediátrica, seja em sua clínica de adultos, especialmente os mais graves, chamados psicóticos e estados-limites. Dessa forma, as dimensões existenciais descritas por ele, condições básicas para o acontecer humano, deveriam ter prevalência e servir de guia para o psicanalista, se comparado ao quadro conceitual metapsicológico, compartilhado pela quase totalidade dos grandes autores de psicanálise. Antes mesmo do inconsciente, da linguagem, das pulsões (conceito não utilizado pela teoria psicanalítica de Winnicott) e de qualquer outro conceito convencional na história da psicanálise, o si-mesmo (self) é o cerne do impulso pessoal, cuja violação seria mais grave e com consequências danosas para o vir-a-ser do indivíduo.

Pensar a racialidade em psicanálise é fundamental, visto que todos os “grandes” autores de psicanálise foram europeus, a começar por Freud, passando por Klein, Lacan e mesmo Winnicott. Não se pode, nem se deve aventar a possibilidade de usar os conceitos como se, ao serem “preenchidos” com significados novos, ou transpostos para uma nova realidade, serviriam de base para produzir ideias e atitudes novas; seria ingênuo e perigoso, porque anularia justamente as diferenças próprias do norte e do sul do mundo, das pessoas brancas para as negras, mestiças e indígenas, como é o caso do nosso país.

Ao mesmo tempo, negar-se a pensar com tais autores e a partir deles, com todo o saber do Ocidente produzido na Europa, seria um equívoco. Pensar uma psicanálise contextual a partir do pensamento de um inglês como Winnicott, é justamente um gesto similar ao que ele operou dentro da psicanálise, oferecendo a possibilidade de entender a teoria do amadurecimento como uma antropologia. Nenhum dos autores da psicanálise usou tanto a palavra “ser” como Winnicott e de maneira tão presente em sua obra. Ainda que os outros não o tenham feito, eles criaram uma ontologia psicanalítica, e Winnicott, que usou tanto o termo “ser” e “continuar sendo” como uma das chaves de leitura da sua obra, nos legou não uma ontologia, mas uma ciência do homem. Isso permite entender que podemos, a partir de Winnicott, pensar as questões clínicas dos pacientes negros e observá-las em suas especificidades.

A ciência do homem, tal como proposta por Winnicott, com base na sua antropologia, aborda algo inovador em relação à história da psicanálise, que sempre privilegiou o ouvir em relação ao ver. Lembro a ideia de “ouvir com os olhos”, termo criado por Masud Khan, inspirado em Winnicott, de quem foi colaborador, e que sempre privilegiou a capacidade de ver e ser visto na vida e na experiência analítica.

Somos capazes de “ouvir com os olhos” pacientes negras e negros? Se o si-mesmo é uma experiência central na constituição do indivíduo, e ele é uma espécie de elaboração imaginativa das funções corporais, especialmente da pele, de que forma o si-mesmo das pessoas negras está atravessado por um aspecto traumático? Nesse sentido, as pessoas negras não poderiam se apropriar daquilo que seria a base da experiência “inicial” do si-mesmo em seu aspecto mais inaugural, o impulso para sua “aparição” para um outro e para si.

A pele, que é a nossa superfície, é a nossa experiência mais profunda, pois é constitutiva do dentro e do fora, da experiência de um si-mesmo. Pergunto (e com todas as consequências clínicas dessa pergunta) se as pessoas negras precisam de alguma maneira criar uma espécie de si mesmo branco, mais do que um si-mesmo negro. Isso levaria ao reviver do trauma; a um desenvolver-se não a partir da sua própria existência psicossomática, mas de exigências intrusivas vindas do ambiente discriminatório.

Recordo de um homem de meia-idade, que foi revelando uma intensa persecutoriedade ao longo do seu tratamento, carregando uma sensação extrema do perigo de despersonalização. À medida que o processo caminhou, ele me pediu que eu falasse com a sua mãe, oferecendo-a como que para me ajudar e confirmar as coisas que eu lhe dizia e me pareciam ter-lhe acontecido, e que ele sentia reverberar em si.

Quando recebi sua mãe, uma senhora acima dos 70 anos, compreendi por que em sua primeira sessão ele me perguntou se deveria deitar-se no divã. Disse que não, que um dia, talvez, se fosse preciso, se ele sentisse necessidade. “Não pensei em mim, pensei em você”, me respondeu. Surpreso, eu disse: “Mas por que você deitaria no divã por minha causa?”. E ouvi como resposta: “Você não vai querer todas as vezes que estiver aqui ficar olhando para um preto, né?”. O relato materno me revelou, dentre outras coisas, que logo que seu filho nasceu, ela tinha dentro de si a sensação de que não poderia mostrar para ele que o achava muito bonito, embora o achasse. “Eu olhava aquele bebê e ele parecia uma jabuticabinha, mas eu me continha, eu tentava não demonstrar para ele, porque eu tinha medo de que depois ele achasse que eu tinha mentido para ele.”

Embora Winnicott não tenha tratado diretamente das questões da racialidade, não deixa de ser interessante abordagens pontuais feitas por ele nessa direção. Recorro ao caso da menina Mollie, como mais um exemplo da proposta aberta por ele, inserido no final do capítulo “As bases do si mesmo no corpo”. De origem africana, a criança de oito anos havia sido adotada por uma família inglesa. A virada da consulta terapêutica com Winnicott se deu no momento em que ela pôde revelar a ele que não gostava da sua pele. O próprio Winnicott diz que “a sua descoberta, de que tinha pele escura, estava tendo sobre ela, fazendo-a sentir-se como se houvesse sido privada de um aspecto essencial do desenvolvimento da personalidade e da autorrealização muito inicial”.

É urgente uma psicanálise de matriz winnicottiana que nos ajude a ver a pele negra de mulheres e homens, levando-nos ao encontro de suas necessidades específicas, compreendendo no que puderam ter sido traumatizados e paralisados em aspectos individuais do amadurecimento, mas também com todos os desdobramentos políticos e sociais que a questão racial comporta – inclusive na necessidade de discutir o acesso da população negra à clínica psicanalítica. Uma possível psicanálise antropofágica e dos trópicos? Impossível não lembrar aqui do escritor Mário de Andrade, que dizia ser sua obra não “nacionalizante”, mas “racializante”. Nesse sentido, no contexto brasileiro, podemos atuar por um futuro da psicanálise nesses termos. Afinal, psicanálise não precisa ser “coisa de branco”.

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Rodolfo José Fenille Ferraz é psicanalista, membro do IBPW e da IWA e possui formação em filosofia, teologia e psicologia.

Uma parceria com o Instituto Winnicott


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