Depois de Lula, o lulismo
Ato em apoio a Lula na Esquina Democrática, em Porto Alegre (Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação)
No último fim de semana antes do impeachment de Dilma, ninguém foi às ruas defendê-la ou protestar contra o desfecho do drama político que se anunciava, inexorável. O assassinato político da presidente aconteceu no Senado, mas as ruas, tão supervalorizadas pela esquerda, ou se fizeram presentes apenas para garrotear a presidente já sem fôlego, nos meses precedentes, ou aceitaram em cúmplice silêncio o ritual que pôs fim à sua agonia. No final do ato, por suprema ironia, vimos Cássio Cunha Lima, adaga à mão, declamar que fazia o que fazia atendo ao apelo do povão. Ato contínuo, apontava para a galeria, na direção de Kim Kataguiri, o chefe de uma startup digital de ódio político recém-incubada justamente para representar uma metonímia do “povo brasileiro” na luta para tomar do PT o governo que este acabara de ganhar pelo voto popular.
Como em 1964, quando a tempestade parecia inevitável, foram criadas enormes expectativas de “o povo nas ruas” para defender o “governo dos pobres” ou, pelo menos, a própria soberania, a exclusividade da prerrogativa de escolher quem governa e qual plano de governo seria implementado. Mas, de novo, ninguém veio. O povo ficou na TV, assistindo ao espetáculo, o STF limitou-se ao papel de mestre de cerimônias e diretor da liturgia, de modo que o único protagonista em cena foi o sistema político.
Lula, porém, não é Dilma e o lulismo é maior e mais compacto que o petismo. A este ponto, Lula já foi condenado por quatro juízes, em duas instâncias do Judiciário, e não parece nem um pouco menor ou mais sozinho. Ao contrário, a sensação que temos é que entre a sentença de Moro e a decisão do TRF4, a massa acordou e todo o sistema entrou em ebulição. As ruas, as físicas e as digitais, passaram a ser ocupadas e disputadas com energia redobrada.
O dia 24 de janeiro de 2018 é, neste sentido, um marco. Perguntaram-me o dia todo se eu estava assistindo à leitura dos votos dos desembargadores que julgavam o recurso de Lula e as pessoas ficavam chocadas quando eu dizia que não, que seria como assistir à reprise de um jogo cujo resultado eu já sabia e que, além disso, não iria ter nem um lance imprevisível ou memorável. O que de fato se comprovou. Eu é que fiquei chocado quando vi tanta gente nas ruas e nos ambientes digitais, mobilizados, ativos, em sentinela. Por que nos meses precedentes ao impeachment de Dilma, quando o jogo ainda estava sendo jogado e a pressão popular poderia cumprir um papel importante, as ruas ficaram desertas, enquanto agora, quando manifestações e mobilizações não têm mais a menor possibilidade de influenciar decisões do Judiciário, as multidões estão novamente acesas?
Bem, embora houvesse, por parte de muitos, expectativas reais de alguma surpresa no julgamento de ontem, não creio que as pessoas esperassem realmente influenciar o Judiciário. Aliás, acho que na esquerda, a este ponto, a sensação dominante é que o Judiciário já está fora de alcance da imparcialidade, operando sem peias na roleta política, enfim, é um caso perdido. Toda manifestação política é um ato de comunicação, resta saber a quem se endereçava a mensagem de exibição de força e densidade, uma vez que se dirigia aos atores que tomavam a decisão naquele momento.
A resposta mais óbvia é que o lulismo quer mostrar força sobretudo ao antipetismo. Está rugindo e mostrando os dentes para mostrar que não é cachorro morto. Está avisando aos adversários que está encurralado, mas ainda é, curiosamente, a principal força eleitoral deste país. Que está compacto ao redor de Lula. E, de certo modo, tem razão: não é à toa que mesmo sendo Lula um candidato cada vez mais improvável, ele continua liderando a corrida eleitoral, enquanto que o seu adversário mais próximo não passa de um poste do antilulismo. O que quer dizer que, a dez meses das eleições presidenciais, ao redor do lulismo (Lula e o antilulismo) gravitam mais de 50% das intenções de voto e o resto é fragmentação.
O lulismo faz exibição de força e mobilização ao redor de Lula e por causa de Lula. Afinal, bastou Lula sair do semiostracismo de 2014, e ir à rua e à cena para fornecer sonoras e citações e, sobretudo, para disputar a interpretação dos fatos políticos – em vez de morrer calado e encurralado-, para inflamar a massa. A dúvida é se o lulismo, a este ponto, já não é maior que Lula.
A minha hipótese é que Lula preso, ou submetido a qualquer possibilidade mais trágica, mostrará que o lulismo sobrevive sem o seu corpo e os seus discursos. Que, ao contrário do que pensam os seus detratores, as condenações de Lula da Silva a este ponto não têm mais a menor possibilidade de atingir e desconstruir Lula, o mito. Que, ao contrário, cada nova condenação, cada nova dancinha da vitória, cada novo meme da direita dizendo que “o molusco” é cachaceiro, corrupto e analfabeto, tudo isso será assimilado na narrativa do conluio das forças do mal contra Lula, o Guerreiro do Povo. E a reforçará. Assim como cada pedido de arquivamento de inquérito contra Serra, cada recusa do Congresso de que Temer ou Aécio sejam processados, cada decisão do ministro Gilmar Mendes em favor deste ou contra aquele, cada PowerPoint da Lava-Jato, cada post antipetista de membros do MP ou da PF reforçará a narrativa da seletividade política do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal contra Lula.
A este ponto, e paradoxalmente, o antipetismo passou a alimentar e a reforçar o lulismo. Se, enfim, para coroar, Lula for impedido de concorrer a próxima eleição e de correr o risco de ser derrotado nas urnas, como parece o cenário mais provável, estará definitivamente lançada a semente da narrativa da sua invencibilidade eleitoral e popular. E de que só um grande conluio de interesses poderosos, violando todas os princípios que respeitam a soberania popular, foi capaz de tirá-lo do jogo.
(7) Comentários
Subserviência e culto embaraçoso à personalidade, a gente vê por aqui!
Na mosca…!
O senhor acha que esse lulismo teria força e coesão, no sentido de apoio político, no caso da provável inelegibilidade? A um Ciro Gomes, poe exemplo?
Lula é a força em torno da qual o povo gravita.
Minha modesta opinião é: o autor do artigo vive numa bolha de pessoas que pensam como ele. Porque não vi toda essa movimentação popular em defesa de Lula.
Não é o “lulismo”, no estádio atual, uma espécie de comportamento bárbaro fundado em impulsos intrapessoais complexos cujo maior fenômeno é o reconhecimento do outro como um igual a mim? Não se trata de solavancos de instintos rastaqueras?
Para: Wilson Gomes.
Caro professor Wilson, foi com muita alegria que o encontrei na revista CULT. Confesso que mais uma vez fiquei encantado com os seus textos.
Para facilitar sua lembrança deixo um breve histórico: fui seu aluno na UFBA, na Faculdade de Comunicação(na disciplina Comunicação e Política), em 2002, da turma dos colegas Odilon Sérgio, Jamil e outros.
Depois de nove anos em Salvador, voltei para Belo Horizonte, Minas Gerais.
Parabéns, muita saúde e um forte abraço.
Atenciosamente, Carlos Roberto da Costa.