Celebrar a ditadura é pavimentar o caminho para repeti-la
(Arte Revista CULT)
A máquina presidencial de criar escândalos verbais continua a todo vapor. O “golden shower” da semana foi a ordem de Jair Bolsonaro para que as repartições militares comemorassem, no dia 31 de março, os 55 anos do golpe que introduziu o país em uma longeva ditadura de duas décadas.
Ao longo da semana, e diante da péssima repercussão política, que constrangeu até mesmo a ministros militares, o presidente reconheceu que, de fato, houve “alguns probleminhas” no período e, afinal, que os comandos deveriam apenas “rememorar” a data. Apesar do tímido recuo, o site oficial da presidência amanheceu divulgando um vídeo exaltando o golpe.
Na última sexta (29), atendendo a uma ação civil pública da Defensoria Pública da União, a juíza federal Ivani Silva da Luz havia proibido a manifestação – que já havia sido contestada por inúmeros membros do Ministério Público Federal, em recomendações para que as chamadas ordens do dia laudatórias à ditadura não fossem lidas nos quartéis. Antecipadas em face do fim de semana, boa parte das recomendações foi solenemente ignorada. No plantão do sábado, por fim, a liminar foi cassada, em nome de uma suposta defesa do “pluralismo”.
O desatino de um comando presidencial para celebrar o desfazimento da ordem democrática e comemorar a tirania que resultou em centenas de mortes, desaparecimentos e torturas ao longo dos anos de chumbo, revoltou a muitos, em especial aos parentes de desaparecidos que jamais puderam enterrar os corpos de seus entes queridos, arrancados que foram ilicitamente das famílias, e os sobreviventes das torturas, cujas marcas de violências ainda trazem em seus corpos e mentes.
Celebrar a morte é o cúmulo da desfaçatez. Mas verdade seja dita: em se tratando de Bolsonaro isso não causou propriamente nenhuma surpresa.
Em toda a sua carreira política, o atual presidente da República fez questão de espezinhar as vítimas da ditadura, lamentar que mais mortes não foram provocadas, e cultuar a memória de um dos mais cruéis torturadores do regime: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem homenageou durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, ela mesmo uma de suas vítimas. “Ustra vive”, aliás, é a estampa de uma camiseta com que seu filho Eduardo Bolsonaro, deputado federal e chanceler informal, desfila com relativa frequência.
Escarnecendo com a dor alheia, Bolsonaro mantinha na porta do seu gabinete na Câmara dos Deputados um cartaz com a inscrição: “Quem procura osso é cachorro”, em referência ao desespero dos familiares em busca do paradeiro dos corpos dos entes queridos – vários deles, como se apurou, enterrados em cemitérios clandestinos, arremessados ao mar ou até incinerados.
O golpe que provocou a ruptura institucional e a ditadura sangrenta que a ela se seguiu, já foram assim reconhecidos oficialmente pelo Estado brasileiro, no relatório “Direito à Memória e à Verdade” da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, bem como pelas Comissões de Anistia e pela Comissão Nacional da Verdade.
As violências têm sido, ainda, reconhecidas internacionalmente. A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund, por exemplo, determinou ao Brasil que não apenas estabeleça um ato público de reconhecimento dessas atrocidades, como que realize o julgamento dos agentes nelas envolvidos. Esta última recomendação remonta, enfim, a uma enorme dívida judicial.
Diversamente do que ocorreu com praticamente todos os países do continente, nosso Judiciário tem se recusado, de forma sistemática, a apreciar os crimes contra a humanidade dos anos de chumbo, alegando ora a prescrição, ora a anistia, institutos que, diante da firme jurisprudência do direito internacional, não poderiam servir de obstáculos para a responsabilização nestes casos. O cientista político Anthony Pereira costuma dizer que os crimes da ditadura jamais foram reconhecidos e julgados no Brasil, exatamente porque parte da repressão foi desde logo judicializada por aqui – com prisões e condenações mantidas, inclusive pelo STF, ainda que com fundamentos em confissões policiais.
Se um efeito positivo involuntário pode ter sido provocado pelo escárnio de celebrar a ditadura, foi o de trazer à lume, ainda com mais intensidade, as memórias sofridas e as marcas políticas e corporais do regime. Paulo Coelho, o escritor brasileiro mais conhecido no exterior relatou as torturas a que foi submetido em contundente artigo para o Washington Post. As mobilizações do fim de semana, pautadas pelo luto e pela memória, também evocaram as lembranças do terror. Afinal, se é certo que jamais podemos comemorar a ditadura, tampouco devemos esquecê-la.
O exemplo do Holocausto é um paradigma para as vítimas que vieram depois: lembrar para jamais esquecer. Por mais doloroso que seja penetrar nos museus que mantêm vivas as lembranças dos campos de concentração, nos detalhes mais cruéis e perturbadores, como os objetos pessoais recolhidos junto às entradas das câmaras de gás, é justamente esse incômodo que tem algum potencial para evitar a repetição das atrocidades. Consta que o próprio Hitler dizia que ninguém se lembrara do genocídio que décadas antes, pela ação da Turquia, havia vitimado os armênios.
Em Liverpool, situa-se um Museu da Escravidão (International Slavery Museum) que, aliás, faria muito bem ser replicado no Brasil, onde a longevidade desta tragédia humana não só bateu recordes mundiais, como deixou legados de uma sociedade extremamente desigual e marcadamente autoritária. A cidade britânica fez questão de reconhecer que ali se situara um dos principais entrepostos de escravos. É possível conhecer nas dependências do museu os instrumentos empregados na tortura, a logística dos arrebatamentos na África e a dinâmica da mercancia dos corpos negros, inclusive com a referência aos comerciantes locais, imortalizados nos nomes das principais ruas da cidade.
Os erros da humanidade são pesados demais para desaparecerem apenas com o reconhecimento. Mas o revisionismo histórico que tenta escondê-los e o negacionismo criminoso, que assassina as vítimas uma vez mais, têm objetivos muito claros: evitar as responsabilizações, naturalizar as violências, consagrar as dominações.
Celebrar a ditadura é pavimentar o caminho para repeti-la.
A falsa ideia de anos gloriosos, construída pela violência que anulou as contrariedades e a censura que ocultou as contradições, é combustível para todo tipo de nostalgia autoritária. Por alguns anos, vimos esse movimento com uma certa excentricidade, mas aos poucos estamos nos dando conta de que há muito mais método do que insanidade neste fúnebre saudosismo.
A criminalização da política e a glorificação da lógica e eficiência militares; a consternação da “perda de valores morais” e a elegia à disciplina da educação fardada; a suposta desideologização da administração que já nem disfarça o macarthismo de que é imbuída; a condenação às minorias, acusadas de “vitimismo” e a redução dos direitos fundamentais numa reação falsamente liberal ao “politicamente correto”; o gigantismo da repressão e a imposição da morte como política de combate à criminalidade.
Há muito mais que memória do período autoritário em nosso entorno político.
A proposta do ex-juiz e ministro Sérgio Moro de isentar de responsabilidade penal o agente de segurança que mata ao se antecipar a um possível conflito, é um exemplo. Chamado falsamente de Projeto Anticrime, o pacote poderia ser conhecida como programa “Mais Mortes”. A proposta é justificada por Moro em uma incipiente, porém tétrica, exposição de motivos, com um lastro de inequívoca distinção social: o suposto risco dos agentes que atuam em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas, onde mal conseguem distinguir pessoas de bem dos meliantes. Ou seja, a morte é mesmo para os mais pobres.
Pelo andar da carruagem, a proposta de Moro nem precisa ser efetivamente aprovada para gerar gravíssimas consequências, como o incremento do elevado índice de violência policial. No Rio de Janeiro, em 2019, uma morte a cada três já é de responsabilidade das forças de segurança.
Os militares costumam estar na linha de frente, mas sempre há muito de civil na construção dos autoritarismos, do financiamento empresarial à omissão das autoridades constituídas.
Numa ditadura, muitos sujam as mãos de sangue, mas nem todos estão fardados.
MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
(2) Comentários
10, como sempre!
Excelente texto, alias, como é praxe do Dr. Marcelo Semer.