Dossiê | Arte e psicanálise
Gradiva, de Wilhelm Jensen, personagem sobre o qual Freud se debruçou (Museu Chiaramonti, Cidade do Vaticano / Divulgação)
A primeira pergunta que precisa ser feita, a fim de abordar o problema das relações entre psicanálise e a arte, é a seguinte: com que direito, ou a que título, ou ainda com que credenciais a psicanálise se investe da tarefa de emitir juízos sobre a arte e sobre os artistas? Esta primeira pergunta imediatamente se desdobra em outras. Até que ponto uma teoria do inconsciente psíquico está em condições de extrapolar seu campo primeiro de aplicação e se enveredar por teatros, museus, salas de concerto, telas, esculturas, instalações etc.? Sendo uma disciplina eminentemente clínica, não corremos o risco de transformar a psicanálise em uma visão de mundo, em um sistema totalizante capaz de decifrar o sentido de tudo o que se apresente diante do olhar suspeito e da escuta atenta do psicanalista?
São bem conhecidas as incursões de Freud nos diversos domínios da arte, desde o teatro e a literatura até as artes plásticas. Comecemos por seu interesse pela tragédia clássica grega. Um conceito como o de “complexo de Édipo”, que qualquer pessoa medianamente informada sabe mais ou menos o que quer dizer, é o resultado mais evidente da aproximação entre a psicanálise e o teatro grego. Mas trata-se muito mais de um empréstimo da arte à psicanálise, e não do contrário. Trata-se muito mais de fornecer coordenadas acerca da relação do desejo às leis, do que de analisar a tragédia de Édipo sobre o prisma dos efeitos poéticos que ela ocasiona.
No terreno da literatura de língua alemã, no qual Freud privilegia Friedrich Schiller, Goethe e Heinrich Heine como interlocutores de maior monta, ocorre algo dessa natureza. Em muitos momentos, trechos desses autores ilustram conceitos e/ou arejam a argumentação às vezes demasiado árida. Mas, sobretudo, cumprem a importante função de fornecer um ponto de apoio quando as longas cadeias de raciocínio parecem se esgotar diante de impasses teóricos e conceituais. Só isso já seria suficiente para demonstrar a importância prática que Freud conferia à arte e à autoridade dos artistas.
Além disso, temos, ainda, as conhecidas incursões de Freud na psicologia de alguns artistas proeminentes, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Goethe, Jensen e Dostoiévski. Em geral, estes textos procuram desvendar mecanismos psíquicos e pulsionais subjacentes à criação artística. Muitos autores, como Ernst Gombrich, assinalaram a “disposição racionalista e analítica” de Freud, que parece se interpor como uma espécie de anteparo entre ele e a obra em questão, fazendo ressaltar, em primeiro lugar, uma análise que privilegiaria o conteúdo das obras, muito mais do que aspectos formais ou mesmo materiais. Foi assim que Gombrich apontou os limites da abordagem freudiana das obras de arte, levando consigo uma miríade de leitores e críticos de Freud. Essa leitura, no entanto, se mostra parcial, como recentemente demonstra Ernani Chaves em seu primoroso prefácio de Arte, literatura e os artistas, primeira coletânea dos textos estéticos de Freud publicada no Brasil.
Quanto às soluções que determinados sujeitos dão aos seus conflitos psíquicos pela via da sublimação, o que interessa investigar é justamente o que faz com que determinados objetos estéticos se prestem melhor a estas soluções. É por isso que François Regnault, um especialista em estética lacaniana, tem razão ao afirmar que Freud tenha conseguido evitar, pelo menos no essencial, a “reduzir a arte a uma economia dos afetos”. O conceito central da estética freudiana é a sublimação. Nem perversão, nem recalque: eis o espaço tênue em que a sublimação se vê encantoada. Sua principal característica seria a eleição de alvos dessexualizados para satisfação de moções pulsionais originariamente sexuais. Ou seja, a satisfação é obtida através do desvio da pulsão para objetos “culturais”.
Mas este desvio ocorreria sem a participação do recalcamento e, portanto, este não implicaria uma formação substitutiva, um sintoma clássico. Isto é, embora o objeto de satisfação seja não sexual – um objeto culturalmente valorizado –, a forma da satisfação e da produção de prazer conservaria o modelo de satisfação próprio à satisfação sexual, ao deixar quase intacta a excitação originária. Por isso, a enorme atratividade da arte e o fascínio exercido pelos artistas.
Lembremos a célebre analogia proposta por Freud em seu Totem e tabu, de 1913: “uma histeria é imagem distorcida de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, uma imagem distorcida de uma religião, e uma mania paranoica, uma imagem distorcida de um sistema filosófico”. O que Freud sublinha é exatamente o caráter associal da neurose, o que fornece um contraponto perfeito à arte vista como produto social. Nesse sentido, fica mais clara a oposição entre o recalcamento e a sublimação do ponto de vista dos modos de interação entre o sujeito e a cultura. Não se trata, pois, de sistematizar uma teoria freudiana da arte, mas de como determinados modos de subjetivação podem ser pensados a partir da desfiguração de um modelo emprestado das produções sociais. Por seu turno, Lacan acrescentaria que o pano de fundo é sempre o modo como os saberes lidam com o vazio.
O vazio aqui é tomado como a impossibilidade de encontrar uma representação simbólica ou pictórica que dê conta da radical singularidade dos desejos inconscientes. Diante do vazio deixado pela impossibilidade de dar sentido à frustração do desejo, à falta de um objeto adequado à fantasia, três saídas se apresentam: a religião, a ciência e a arte. Nesse contexto, Lacan introduz o problema do vazio como uma questão fundamental no tratamento da problemática da sublimação. Pensar a sublimação como um modo de satisfação libidinal caracterizado por uma “conciliação fácil entre o indivíduo e o coletivo” parece a Lacan uma verdadeira “cilada”. É esta a razão que o leva a denunciar o engodo de situar a sublimação na vertente do narcisismo. Pensar a sublimação segundo o modelo do narcisismo implica tomar o objeto como algo “perpetuamente intercambiável com o amor que o sujeito tem por sua própria imagem”.
Por essa razão, a sublimação lacaniana não oferece ao sujeito um horizonte de reconciliação qualquer com o desejo cujo objeto lhe escapa. De fato, poetas, pintores, músicos, artistas em geral, não menos do que não artistas, se matam, se automutilam, se deixam devastar pelo gozo até a morte. O problema da sublimação vai apontar a diferença entre o objeto narcisicamente investido e a Coisa, que é o nome do objeto quando este não mais tem nome, nem imagem.
Assim, a estética da psicanálise, ou, mais precisamente, o domínio de reflexões inspiradas no dispositivo conceitual da psicanálise que se volta para questões relativas à arte, não é uma aplicação da psicanálise à arte, mas, ao contrário, uma aplicação da arte à psicanálise, conforme insiste Regnault. Não se trata de submeter à interpretação analítica a obra ou o artista, colocando a arte no lugar de objeto ou o artista no divã. Trata-se, diferentemente, de recolher, no campo freudiano, os efeitos de verdade ocasionados pela simples existência de determinadas obras. Os textos reunidos neste Dossiê buscam, cada um a seu modo, superar a lógica instrumental contida na fórmula “x aplicado a y”, como nos alerta Célio Garcia com as ideias de “interface” e de “psicanálise implicada”.
Uma estética à lacaniana seria uma estética que se pergunta por que certos objetos se prestam melhor a essa inadequação com a ordem simbólica. A arte, principalmente certa vertente da arte contemporânea, seria então figura de certo excesso de real − que desnuda a precariedade do simbólico − espécie de ruína, de catástrofe das imagens da reconciliação. O caminho que vai da imagem simbólica ao objeto retirado da imagem, isto é, ao objeto extraído de toda relação de duplicidade, caracterizaria, na visão deste autor, a arte do século 20. E nesse sentido, Judy Wajcman tem razão em afirmar que “Lacan é contemporâneo desta arte do século 20, que se singulariza por enquadrar o objeto como singularidade absoluta, sem duplo e sem imagem”. Nisso residiria a corresponsabilidade entre a arte e a psicanálise.
O presente Dossiê é composto de quatro ensaios. O primeiro deles, de Ernani Chaves, visa situar algumas balizas freudianas para a discussão das relações entre arte e psicanálise. Em seguida, três ensaios abordam a arte contemporânea. Tania Rivera trabalha uma obra de Helio Oiticica sob a perspectiva não hierárquica das relações entre arte e psicanálise. Em seguida, Edson de Sousa aborda a obra de Evgen Bavcar, sublinhando o caráter sempre utópico da criação artística. Finalmente, a complexidade da “arte pobre” do artista italiano Giuseppe Penone é problematizada por Guilherme Massara e Marina Dayrrel.
Gilson Iannini é doutor em Filosofia pela Usp e máster em Psicanálise pela Universidade Paris 8