Arcas de Babel: Leila Danziger traduz Rebecca Horn
Leila Danziger: Trabalho de Rebecca Horn reflete tanto uma camada de adoecimento individual quanto coletivo (Fotos: Divulgação)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Hoje a poeta, artista plástica e professora Leila Danziger traduz do alemão poemas inéditos de Rebecca Horn, que além de poeta também é uma importante artista plástica. Os textos dialogam com trabalhos artísticos da própria autora alemã, por isso essa edição das Arcas de Babel inclui também imagens selecionadas por Leila Danziger, que assina ainda o texto de apresentação.
Leila Danziger é professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem graduação em Artes pelo Institut d’Arts Visuels d’Orléans, França (1989) e doutorado em História pela PUC-Rio (2003), com estágio de pesquisa na Universidade de Oldenburg, Alemanha. Realizou pós-doutorado na Bezalel Academy of Arts and Design Jerusalem, Israel (2011). Entre suas exposições individuais recentes estão Navio de emigrantes, na Caixa Cultural de São Paulo (2019) e de Brasília (2018), e Ao sul do futuro, no Museu Lasar Segall, São Paulo (2018). Em poesia, publicou Três ensaios de fala, (2012), Ano Novo (2016) e C’est loin Bagdad [fotogramas] (coleção Megamini, 2018), todos pela editora carioca 7Letras. Seu livro mais recente – Cinelândia – deverá sair também pela editora 7Letras.
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“Eu sempre escrevo um texto antes de começar um trabalho”, diz Rebecca Horn, artista alemã, nascida em 1944, que nas últimas cinco décadas desenvolve performances, instalações, desenhos, filmes e maquinários fascinantes, que parecem habitar os espaços desertados pelos humanos.
Uma das raras artistas mulheres de sua geração a alcançar efetiva repercussão internacional, seus poemas podem ser instruções para performances, ou breve textos em prosa que integram e expandem o campo magnético de suas obras, como Les délices des évêques (“As delícias dos bispos”), em que o título em francês no poema em alemão nomeia uma espécie de cena de tortura. A medida de tudo que a artista realiza é o corpo humano: incompleto, ameaçado, vulnerável ao extremo, doente em certos momentos, mutante, belo.
Nas informações biográficas sobre a artista, é recorrente encontrarmos o fato de que ela sofreu uma séria intoxicação com produtos químicos, ao manipular alguns produtos em seu processo de trabalho, o que fez com que precisasse passar vários meses internada entre um hospital e uma clínica de recuperação. Ela conta que começou a escrever justamente nesse isolamento, em fins de 1969, e que encheu as paredes de seu quarto de convalescente com anotações e desenhos que se movimentavam quando abria a janela.
Não me parece exagero pensar que em seu trabalho se inscreve tanto uma camada de experiência de seu adoecimento individual quanto uma camada do adoecimento coletivo. A artista cresceu numa Alemanha devastada pelos crimes do nacional-socialismo, e, como muitos de sua geração, fez face a essa herança, como na vasta instalação Concerto para Buchenwald (1999), realizada em dois lugares diferentes da cidade de Weimar, associada a Goethe, mas também ao campo de concentração de Buchenwald. Impossível não perceber no piano suspenso que aparece originalmente nesse seu trabalho em Buchewald, um diálogo com os pianos silenciados pelo feltro de Joseph Beuys (1921 – 1986), artista-xamã que aspirava curar a Alemanha adoecida do pós-guerra. Se os pianos de Beuys são abafados pelo feltro, e parecem definitivamente emudecidos, o piano de Rebecca Horn se abre em intervalos regulares, com um estrondo atordoante, ao ejetar suas teclas com violência. Em Concerto para Buchenwald, Rebecca cria um cemitério de instrumentos musicais. Podemos pensar que todas essas obras fazem alusão à corrupção da música e da cultura pelo nacional socialismo, entre tantas outras camadas de sentido possíveis.
A proximidade da artista com a poesia aparece não apenas em sua extensa produção poética, reunida pela editora Hatje Cantz, em 2014, mas também nos poemas que lhe são dedicados por Jacques Roubaud (53 poèmes pour Rebecca Horn, 1997). Estes, por sua vez, foram acolhidos pela artista na forma de uma instalação multimídia, intitulada Luz aprisionada na barriga da baleia (2002). Nessa obra totalmente imersiva, exposta pela primeira em 2002 no Palais de Tokyo, em Paris, e apresentada no CCBB do Rio de Janeiro em 2010, as frases se movimentam no espaço expositivo, refletidas numa piscina de líquido escuro e dissolvidas em complexos jogos de luz e sombras.
Rebecca Horn participou quatro vezes da Documenta de Kassel, uma das mais prestigiadas exposições de arte contemporânea do mundo. Entre as várias premiações que recebeu, está o Prêmio Imperial, concedido pelo Japão. E ela foi a primeira mulher a ser contemplada, em 2017, com o Prêmio Wilhelm-Lehmbruck, dado até então unicamente a escultores homens (Joseph Beuys, Richard Serra, Eduardo Chilida, entre outros).
Uma versão com pequenas variações do poema O banho em espiral foi publicado na página Risco, do jornal O Globo, em 23/09/ 2010, a convite de Carlito Azevedo. Os outros dois aqui presentes foram traduzidos a partir do convite de Patrícia Lavelle. Acho que a tradução para mim é simplesmente uma prática da amizade.
Os três poemas traduzidos integram o catálogo Rebecca Horn, publicado pelo Institut für Auslandsbeziehungen (IFA, Stuttgart, 1999). – Leila Danziger
Berlim (10.11.1974 – 28. 1. 1975) – Exercícios em nove partes – Dormir debaixo d’água e ver coisas que se passam ao longe
Tocar com as duas mãos, ao mesmo tempo, paredes opostas
Piscar
Plumas dançam sobre os ombros
Reunir pernas infiéis
Dois peixes rememoram uma dança
Espaços se tocam no espelho
Despir a pele entre as folhas úmidas da língua
Cortar o cabelo com duas tesouras ao mesmo tempo
Quando uma mulher e seu amado se deitam, se olham, e ela com suas pernas abraça as pernas do homem – de longe, por uma janela aberta – é o oásis.
O banho em espiral
No hemisfério sul de nossa terra
existe um tipo relativamente comum de pássaro migratório
Eles se reproduzem com tanta rapidez
que apenas um truque da natureza nos livra de um pesadelo
A cada ano, em bando,
eles escurecem o céu da África Ocidental
onde se reúnem para seu passeio sobre o Atlântico
Apenas um décimo alcança a costa da América do Sul
noventa por cento cai exausto sobre o Atlântico
Suspeita-se que no meio do oceano,
exatamente ali,
onde segundo os geólogos
há milhões de anos
a África se separou da América do Sul,
esses pássaros começam a girar em círculos
Procuram sua terra onde ela não existe mais
Seu instinto – sobrecarregado por milhões de anos – os conduz à morte
Apenas os mais insensíveis alcançam o continente.
(1979)
Les délices des evêques
Duas flâmulas de fumaça dançam com solenidade no espaço.
Levitam atrás de dois binóculos e observam
entre espaço e catedral o processo das mortes mecânicas
em repetição infinita.
Uma cadeira de reza balança na sala
até encontrar sua contraparte, presa na parede.
Antenas de proteção lentamente se abrem.
A vítima está preparada para receber seu carrasco.
Aguarda e deixa vir a penetração fatal.
Essa abertura voluntária da aura do círculo interior
enfraquece tanto o adversário
que seu balançar vira farsa.
A chicotada sinuosa perturba o ritmo da ação.
No alto, coaxa suave um violino.
[1997]
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Berlin (10.11.1974 – 28. 1. 1975) – Übungen in neun Stücken – Unter dem Wasser schlafen und Dinge sehen, die sich in weiter ferne abspielen
Mit beiden Händen die Wände berühren
Blinzeln
Federn tanzen auf den Schultern
Die untreuen Beine festhalten
Zwei Fischchen die sich an einen Tanz erinnern
Räume berühren sich beim Spiegeln
Zwischen den feuchten Zungenblättern die Haut abstreifen
Mit zwei Scheren gleichzeitig die Haare schneiden
Wenn die Frau und ihr Geliebter auf der Seite liegen, sich ansehn, und sie mit ihren Beinen die Beine des Mannes umschlingt – bei weit geöffnetem Fenster – ist es die OASE.
Das Spiralbad
In der südlichen Hemisphäre unserer Erde
existiert eine verhältnismäßig gewöhnliche Art von Wandervögeln
Sie vermehren sich so schnell
dass nur eine Finte der Natur
uns vor einem Albtraum bewahren kann
Jedes Jahr verdunkeln sie in Scharen
den Himmel von Westafrika
wo sies ich zu ihrem Wanderflug über den Atlantik sammeln
Nur ein Zehntel erreicht die Küste Südamerikas
neunzig Prozent fallen erschöpft in den Atlantik
Man vermutet, dass in der Mitte des Ozeans
genau dort, wo nach Ansicht der Geologen
vor Millionen von Jahren
Afrika sich von Südamerika gelöst hat,
diese Vögel zu kreisen beginnen
Sie suchen ihr Land da
wo es nicht mehr existiert
Ihr seit Millionen von Jahren übertragener Instinkt
fürht sie erschöpft in den Tod
Nur die Unsensibelsten erreichen den Kontinent.
[1979]
Les délices des evêques
Zwei Rauchfahnen tänzeln würdevoll durch den Raum.
Schweben hinter die beiden Ferngläser und beobachten
zwischen Raum und Dom den Prozess mechanischen Tötens,
in endloser Wiederholung.
Ein Betstuhl schwingt weit in den Raum, um sein Gegenüber,
in die Wand gerammt, zu treffen.
Langsam öffnen sich die Metallfühler des Schutzes.
Das Opfer ist bereit, den Täter zu empfangen.
Wartend lässt es die tödliche Penetration zu.
Dieses freiwillige Öffnen der Aura des inneren Kreises
schwächt den Gegner so sehr, dass sein Schaukeln danach zur Farce wird.
Das peitschende Schlangenseil stört den Rhythmus der Tat.
Hoch oben krächzt leise eine Violine.
[1997]
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