Arcas de Babel: Adriana Lisboa e Mariana Ianelli traduzem José Lezama Lima
Adriana Lisboa e Mariana Ianelli traduzem José Lezama Lima (Fotos: Divulgação e La Primera Palabra)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Para esta quarta Arca, duas autoras consagradas de prosa e poesia – Adriana Lisboa e Mariana Ianelli – traduzem em conjunto poemas de José Lezama Lima (1910-1976), poeta, romancista e ensaísta cubano que foi um dos mais importantes e influentes escritores latinoamericanos. Principal expoente do neobarroco americano (termo cunhado por Severo Sarduy), é autor do romance Paraíso e dos poemários Muerte de Narciso, Enemigo rumor e Fragmentos a su imán, entre outros livros.
Adriana Lisboa publicou, entre outros livros, os romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo (um dos livros do ano do jornal inglês The Independent), Todos os santos e os poemas de Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas) e Deriva. Traduziu ao português a poesia de Margaret Atwood, ensaios de Maurice Blanchot e romances de Emily Brontë, Cormac McCarthy e Anne Tyler, entre outros autores.
Mariana Ianelli tem dez livros de poesia publicados – Manuscrito do fogo (2019), o mais recente, uma antologia de 20 anos de poesia. Menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas com o livro Treva alvorada (2011). Foi quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti em poesia. É autora de dois livros de crônicas e dois infantis. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem. É curadora da página Poesia Brasileira do jornal Rascunho. Leia abaixo a apresentação e a tradução das poetas.
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A ideia de selecionar e traduzir quarenta poemas de Lezama Lima, entre as mais de mil páginas de sua poesia completa, surgiu em 2017. O que primeiro nos motivou foi a enorme admiração que temos pelo escritor e por sua obra, bem como o desejo de ver sua poesia publicada em livro no Brasil – ainda que numa seleta. Nossa intenção foi criar uma antologia afetiva, incluindo alguns poemas importantes e representativos e outros que nos tocaram de modo mais pessoal. Assim, nossa seleção reúne poemas que trazem os elementos mais recorrentes do repertório simbólico do autor e poemas da admiração e da amizade, dedicados a pessoas de seu convívio íntimo, intelectual e literário: familiares e escritores.
De modo geral, não trabalhamos juntas – ou seja, os poemas não foram traduzidos a quatro mãos. Cada poema foi escolhido por uma de nós e traduzido, e em seguida revisado em conjunto. O espanhol e o português são línguas irmãs e dialogam muito bem, mas talvez o principal desafio tenha sido manter vivo e visível o “sistema poético do mundo” lezamiano, seu pensar a poesia como uma espécie de ascese. Afora pontuais soluções, nosso gesto buscou ser sempre o mais discreto, valorizando uma invisibilidade que permita às imagens trafegar para a nossa língua sem prejuízo de sua inerente complexidade, das ambiguidades e repetições características das construções poéticas do autor.
Essa poesia transcendente, barroca, complexa, recheada de imagens, símbolos e alusões está longe de ser um mero exercício formal, mas sim uma verdadeira cosmovisão. Assim sendo, é preciso tocar a poesia de Lezama Lima com imenso respeito e reverência, tratando de encontrar no português do Brasil o espelho capaz de manter o mistério e a sombra daquilo que ele escreveu, sem iluminar o que não pede para ser iluminado e, ao mesmo tempo, sem ofuscar o brilho daquilo que resplandece.
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[A ESTRELA]
I
A estrela
está se molhando no rio, ponta por ponta;
vão se juntando suas pontas, vão se fundindo seus ouros.
Em sua fundura
a sombra que se dilui, na esponja submarina,
tem um retraído clamor.
Água e outono,
claridade inútil que mancha o céu;
a oração da água, a árvore sem broto.
A transparência
apurada da brisa escondida – ouro de três luas –
vai, sobre fiéis janelas, deslizada.
A folha
vai escapando no tecido do vento;
fastidiosamente o sol boceja uma folha.
Estrela, água, outono e folha:
meditação,
unção serena.
O INAUDÍVEL
É inaudível,
não poderemos saber se as folhas
se acumulam e ressoam ao empoleirar-se
a espreitadora lagartixa sobre a folha.
Nos roça a fronte
e acreditamos que é um lenço
que está tapando nossos olhos.
O ouro caminhava
depois até a folha
e a folha ia até a casa
vazia do outono, onde o inaudível
se abraçava ao invisível
num silencioso gesto de júbilo.
O inaudível
gostava do voo das folhas,
repousava entre a árvore imóvel
e o rio de móvel memória.
Enquanto o inaudível conquistava
seu reino, a casa oscilava,
mas seu interior permanecia intocável.
De repente, uma faísca
se uniu ao inaudível
e começou a arder escondido
debaixo do som facetado do espelho.
A casa recuperou sua imobilidade
e começou de novo a navegar.
PALAVRAS MAIS DISTANTES
A manhã transpira uma palavra,
acabrunhada desaparece,
zanzando dobra a esquina.
Entra silenciosa na taverna,
ainda ali os cantores metafísicos de Purcell,
o eco do sino a adelgaça.
Poriam a mão sobre seu ombro,
ajuntariam outras palavras ao ouvido.
Jogará a não mais
com as areias que lustram.
Está alegre porque veio
vê-la sua nova cara, adormece
no fumacento rodar das moedas.
Desaparece como um esquilo,
na meia-noite da outra esquina
recém-apagada.
INIMIGOS
Entremeados o furor e o delírio,
vão romper sua escura clara de ovo,
nem uma antiga edição nem uma pele nova,
nem as flechas para um aprendido martírio.
Uma antiga flecha se destrói, a ponta
se inimiza com a fantasmagórica couraça,
a parábola dos extremos reúne
e o insone continuou trabalhando a fiada.
Aqui há dois irreconciliáveis, armados de bronze duro,
o braço se petrifica, o braço mais maduro
pende como os pesos do relógio da torre.
O furor e o delírio, cada um vai buscar seu cavalo.
Tem que dividi-lo a pontada do raio
e uni-lo o trovão que os apague
ESPERAR A AUSÊNCIA
Estar na noite
esperando uma visita
ou não esperando nada
e ver como a poltrona lentamente
vai avançando até se afastar da lâmpada.
Sentir-se mais aderido à madeira
enquanto o movimento da poltrona
vai inquietando os ossos escondidos
como se quiséssemos que não fossem vistos
por aqueles que vão chegar.
Os cigarros vão substituindo
os olhos dos que não vão chegar.
Colocamos o lenço
sobre o cinzeiro para que não se veja
o fundo de seu cristal,
os dentes de suas bordas,
as cores que imitam os dedos
sacudindo a ausência e a presença
nas entranhas que vão ser sopradas.
A visita ou o nada
cobertos pelo lenço
como o chegar da chuva
para ouvidos distantes,
saltam do cinzeiro,
preparando a eternidade
de suas pegadas ou se organizam
inclinando-se sobre um monte de folhas
que crepitam sobre o vaso
da avó,
fugindo do cinzeiro.
UMA BATALHA CHINESA
Separados pela colina ondulante,
dois exércitos mascarados
lançam intermináveis aleluias de combate.
O chefe, em sua tenda de campanha,
interpreta as ancestrais fúrias de seu povo.
O outro, reparando na linha do rio,
vê sua sombra em outro corpo, desconhecendo-se.
As músicas crescendo com o sangue
precipitam a marcha para a morte.
Os dois exércitos, como envoltos pelas nuvens,
adormecem apagando as contendas temporais.
Os dois chefes ficaram como que petrificados.
Depois contam as sombras que fugiram do corpo,
contam os corpos que fugiram pelo rio.
Um dos exércitos logrou manter
unida sua sombra com seu corpo,
seu corpo com a fugacidade do rio.
O outro foi vencido por um imenso deserto sonolento.
Seu chefe rende sua espada com orgulho.
***
[LA ESTRELLA]
I
La estrella
se está mojando en el río, punta por punta;
se van juntando sus puntas, se van fundiendo sus oros.
En su hondor
la sombra que se diluye, en la esponja submarina,
tiene un recojido clamor.
Agua y otoño,
claridad inútil que mancha el cielo;
la plegaria del agua, el árbol sin retoño.
La transparencia
apurada de la brisa escondida – oro de tres lunas –
va, sobre fieles ventanas, deslizada.
La hoja
se va escapando en el pañuelo del viento;
fastidiosamente el sol bosteza una hoja.
Estrella, agua, otoño y hoja;
meditación,
unción serena.
LO INAUDIBLE
Es inaudible,
no podremos saber si las hojas
se acumulan y suenan al encaramarse
la mirona lagartija sobre la hoja.
Nos roza la frente
y creemos que es un pañuelo
que nos está tapando los ojos.
El oro caminaba
después hacia la hoja
y la hoja iba hacia la casa
vacía del otoño, donde lo inaudible
se abrazaba con lo invisible
en un silencioso gesto de júbilo.
Lo inaudible
gustaba del vuelo de las hojas,
reposaba entre el árbol inmóvil
y el río de móvil memoria.
Mientras lo inaudible lograba
su reino, la casa oscilaba,
pero su interior permanecía intocable.
De pronto, una chispa
se unió a lo inaudible
y comenzó a arder escondido
debajo del sonido facetado del espejo.
La casa recuperó su movilidad
y comenzó de nuevo a navegar.
PALABRAS MÁS LEJANAS
La mañana suda una palabra,
apesadumbrada desaparece,
correteando dobla la esquina.
Entra silenciosa en la taberna,
todavía allí los cantantes metafísicos de Purcell,
el eco de la campana la adelgaza.
Pondrían la mano sobre su hombro,
añadirían otras palabras al oído.
Jugará a perderse
con las arenas que bruñen.
Está alegre porque ha venido
a verle su nueva cara, se adormece
en el ahumado rodar de las monedas.
Desaparece como una ardilla,
en la medianoche de la otra esquina
recién apagada.
ENEMIGOS
Entremezclados el furor y el dellirio,
van a romper su oscura clara de huevo,
ni uma antigua edición ni una piel nueva,
ni las flechas para un aprendido martirio.
Se destruye una antigua flecha, la punta
se enemista con la fantasmagórica coraza,
la parábola de los extremos junta
y el insomne siguió trabajando la hilaza.
Aquí hay dos irreconciliables, armados de bronce duro,
el brazo se petrifica, el brazo más maduro
pende como las pesas del reloj de la torre.
El furor y el delirio, cada uno va buscar su cababllo.
Tiene que dividirlo la agujeta del rayo
y unirlo el trueno que los borre.
ESPERAR LA AUSENCIA
Estar en la noche
esperando una visita,
o no esperando nada
y ver cómo el sillón lentamente
va avanzando hasta alejarse de la lámpara.
Sentirse más aderido a la madera
mientras el movimiento del sillón
va inquietando los huesos escondidos,
como si quisiéramos que no fueran vistos
por aquellos que van a llegar.
Los cigarros van reemplazando
los ojos de los que no van a llegar.
Colocamos el pañuelo
sobre el cenizero para que no se vea
el fondo de su cristal,
los dientes de sus bordes,
los colores que imitan los dedos
sacudiendo la ausencia y la presencia
en las entrañas que van a ser sopladas.
La visita o nada
cubiertas por el pañuelo,
como el llegar de la lluvia
para oídos lejanos,
saltan del cenicero,
preparando la eternidade
de sus pisadas o se organizan
inclinándose sobre un montón de hojas
que chisporrotean sobre el jarrón
de la abuela,
huyendo del cenicero.
UNA BATALLA CHINA
Separados por la colina ondulante,
dos ejércitos enmascarados
lanzan interminables aleluyas de combate.
El jefe, en su tienda de campaña,
interpreta las ancestrales furias de su pueblo.
El otro, fijándose en la línea del río,
ve su sombra en otro cuerpo, desconociéndose.
Las músicas creciendo con la sangre
precipitan la marcha hacia la muerte.
Los dos ejércitos, como envueltos por las nubes,
se adormecen borrando los escarceos temporales.
Los dos jefes se han quedado como petrificados.
Después cuentan las sombras que huyeron del cuerpo,
cuentan los cuerpos que huyeron por el río.
Uno de los ejércitos logró mantener
unida su sombra con su cuerpo,
su cuerpo con la fugacidad del río.
El otro fue vencido por un inmenso desierto somnoliento.
Su jefe rinde su espada con orgullo.