Estante Cult | Mito e sonho entre os Yanomami

Estante Cult | Mito e sonho entre os Yanomami
(Foto: Carsten ten Brink)

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O leitor interessado em ampliar seus conhecimentos a respeito da cultura indígena latino-americana e, em razão disso, desenvolver uma visão essencialmente crítica que não somente solape o senso comum como também ultrapasse aquele nível de entendimento ilustrado, e bastante limitado, que o chamado homem médio costuma demonstrar diante das questões difíceis começa a ter à sua disposição uma série de obras que, concebidas pelos signos do rigor conceitual e da resistência aos modos tirânicos do capitalismo, precisam urgentemente sair das prateleiras das livrarias e adentrar as salas de aula, invadir as conversas dos bem-pensantes, pautar o jornalismo político e irrigar as mais diferentes experiências artísticas e culturais.

Depois dos dois livros lançados por David Kopenawa e Bruce Albert – a adaptação para teatro de A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, a cargo de José Celso Martinez Corrêa, promete ser um dos grandes espetáculos teatrais do ano – e da trilogia escrita por Ailton Krenak, o mercado editorial brasileiro tem publicado importantes títulos nascidos no ambiente acadêmico, mas dispostos a estabelecer uma interlocução com públicos mais amplos. É o caso, por exemplo, de Além da psicologia: concepções mesoamericanas da subjetividade (Editora Perspectiva), de David Pavón-Cuéllar, já resenhado pela Cult, e agora também de O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami (Ubu Editora), da antropóloga paulistana Hanna Limulja.

A autora – que trabalha com os Yanomami desde 2008 e integra há três anos a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, coletivo de pesquisadores e aliados que luta pela garantia dos direitos territoriais, culturais e políticos desses povos – transcreve mais de cem relatos de sonhos, colhidos na comunidade Pya ú, região do rio Toototopi, perto da fronteira de Roraima com a Venezuela, promovendo uma densa reflexão acerca da relação entre a atividade onírica e as interdições e prescrições culturais transmitidas de geração em geração entre povos tradicionais, já que para eles os sonhos não desempenham a mesma função daquela exercida entre os homens brancos. O interesse da antropóloga não recai sobre o “significado” dos sonhos, isto é, na interpretação que os Yanomami fazem deles. Antes, o que ela passa a investigar é o que eles podem fazer com seus sonhos, do ponto de vista da pragmática.

No primeiro capítulo, “A gesta de Kopenawa”, Limulja recupera inúmeras passagens de A queda do céu, livro no qual Davi Kopenawa evoca suas experiências oníricas para contar sua trajetória como xamã e líder político yanomami. Não há na vida yanomami âmbito em que os sonhos não desempenhem papel preponderante, assevera a autora. No capítulo seguinte, “A origem da noite e o desabrochar das flores do sonho”, ela recupera o mito que narra como a grande noite se espalhou por todos os lados, procurando compreender o que acontece com a pessoa yanomami no momento do sonho:

Quando uma pessoa yanomami sonha, o corpo, pei siki, permanece na rede, enquanto o pei utupë, uma espécie de imagem vital, se desprende e pode viajar por lugares que o sonhador percorreu durante o dia ou por locais distantes e desconhecidos. […] Tudo o que ocorre no sonho é considerado como algo que aconteceu ou que poderá acontecer. E, a depender do conteúdo onírico, isso pode afetar a vida de quem sonhou ou mesmo de toda a comunidade.

O terceiro capítulo – “Os sonhos yanomami” – organiza uma tipologia onírica. Há os sonhos cotidianos, os sonhos dos caçadores, os sonhos com Tëpërësiki (o ser que vive no fundo das águas e é associado a uma grande cobra), os sonhos com os ausentes e os sonhos com os mortos. O capítulo se encerra com uma bela reflexão a respeito da relação entre o sonho, a saudade e o fim do dia. Nele Luigi, o xamã mais velho da comunidade Pya ú, declara em um fim de tarde para a antropóloga que, no dia em que o sol estiver naquela mesma posição e ela já não estiver entre eles, ele sentirá saudades dela. Durante o dia, envolvido pelos inúmeros afazeres, os Yanomami não sentem falta dos outros. É com a aproximação da noite que o utupë, a imagem do outro dentro da pessoa yanomami, passa a se manifestar mais livremente, entrando em contato com todos os seres ao seu redor. E surge então a saudade.

No quarto capítulo, “Réquiem para um sonho”, a autora fala da ligação dos sonhos com a morte, descrevendo com muita vivacidade e riqueza de detalhes sua participação em uma festa Reahu, o ritual de celebração que os vivos, ligados por laços de parentesco e afinidade, fazem para se aproximar do céu dos mortos:

O sonho é a terceira margem do rio, é a boa distância que separa vivos e mortos. Distância essa que não pode ser ultrapassada, sob penalidade máxima de se encontrar de maneira irremediável na outra margem que é a morte. Assim, os sonhos com os mortos não podem ser recorrentes, pois, despertando o sentimento de nostalgia nos vivos, eles os conduziriam a um caminho sem volta. E, se há algo que os mortos ensinam muito bem, é que saudade é coisa que mata.

Por fim, no quinto capítulo, “O mito reencontrado: do sonho ao mito e vice-versa”, Limulja defende a ideia de que o sonho e o mito estão muito próximos no pensamento yanomami, sendo submetidos a metodologias de análise semelhantes, que operam sob a mesma lógica.

Ao final da leitura de O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami, o leitor haverá de estar mais próximo desses povos que detêm uma cultura fascinante e uma forma de conhecer o mundo tão diferente da nossa e aos quais devotamos uma indiferença a ser recriminada, porque verdadeiramente criminosa.

Será possível sonharmos com as figurações do devir-índio, já que, como Eduardo Viveiros de Castro nos assevera, “a indianidade é um projeto de futuro, não de uma memória do passado”? Amedrontados pelo pesadelo em que se transformou a vida social nos grandes centros urbanos Brasil afora, em que os velhos ideais da pólis grega estão cada vez mais claudicantes, senão caducos, o que teríamos a aprender com a vida onírica dos Yanomami, para quem a política, conforme aparece em A queda do céu, são palavras que eles escutam no tempo dos sonhos e as quais preferem, uma vez que são deles mesmo?

Há muitos modos de fazer girar a economia e de exercer a política que não envolvam o extermínio daqueles que vieram antes de nós. Basta sonharmos coletivamente com isso e darmos vazão ao que os povos originários têm de sobra: o exercício da imaginação solidária, coletiva e agregadora.


ESTANTE CULT | NOTAS
Paulo Henrique Pompermaier

Esperada reedição da compilação de narrativas curtas de Virginia Woolf, esgotada no mercado editorial brasileiro desde o fechamento da Cosac Naify, que a publicou em 2005. Reúne 46 histórias da autora inglesa, incluindo esquetes e cenas curtas, divididas por seu período de escrita, que abrangem desde seu primeiro conto, “Phyllis e Rosamond”, de 1906, até “O lugar da aguada”, finalizado algumas semanas antes de sua morte, em 28 de março de 1941. A nova edição, com notas suplementares, conta ainda um prefácio inédito do tradutor e poeta Leonardo Fróes. No texto de abertura, ele chama atenção para o caráter experimental de alguns textos de Woolf e o hibridismo de gêneros que caracterizou seus romances, citando contos que, durante a vida da autora, foram lidos e publicados como ensaios. Também se destaca o breve percurso que o poeta traça da perspectiva feminista da autora, com narrativas breves que criticam a hipocrisia social e incursionam na vida de ilustres mulheres desconhecidas de séculos passados, levando, para a ficção, um pouco dos pressupostos do ensaio Um teto todo seu, no qual Woolf imagina a existência de uma irmã de Shakespeare, ainda mais genial do que o poeta, esquecida pela história por ser mulher.

Reunião de poemas, contos, crônicas e canções de sete escritoras negras que integram o coletivo Flores de Baobá: Benedita Lopes, Catita, Claudia Walleska, Esmeralda Ribeiro, Joice Aziza, Mari Vieira e Samira Calais. A partir do conceito de escrevivência, da escritora mineira Conceição Evaristo, podemos ler as obras enfeixadas em Das raízes à colheita: diferentes retratos de mulheres plurais e suas mais diversas experiências, ancoradas no empoderamento pela escrita literária. Nesse sentido, seus textos falam não apenas sobre as violências implicadas pelo racismo e pela desigualdade que estruturam a sociedade brasileira, mas também sobre a fecunda cultura negra em sua articulação com as memórias ancestrais e as vivências contemporâneas. Primeiro livro do coletivo Flores de Baobá, a obra conta ainda com ilustrações da artista May Solimar e explora a riqueza da experiência cultural preta em nossa sociedade para além de uma ideia estandardizada de “literatura de autoria negra” engajada na denúncia realista do preconceito.

A partir de conversas com o narrador indígena Francisco Baniwa, ou Matsaape, sua filha, a antropóloga Francy Baniwa, escreveu Umbigo do mundo para preservar e espalhar a cosmogonia de seu povo Baniwa, que vive no Noroeste Amazônico. Passando por entidades, animais, plantas, lugares e acontecimentos de sua memória ancestral, Francy compõe uma espécie de antropologia indígena, que mistura as vozes do narrador, das personagens e sua própria perspectiva etnográfica. “O ciclo de vinganças entre eenonai e hekoapinai, os cantos e benzimentos, as ações e transformações de Ñapirikoli, Amaro, Kowai, Kaali e Dzooli, tudo isso compõe o quadro de uma verdadeira epopeia amazônica, pela voz dos Baniwa ou Medzeniakonai”, escreve o antropólogo Idjahure Kadiwel sobre a obra de Francy Baniwa. Para ele, esses fatores fazem com que o livro seja uma espécie de “proclamação, desde o Alto Rio Negro, de que o centro do mundo se encontra mesmo na Amazônia, ou ainda, de que o centro está em toda parte, de todo modo, de que os formigueiros urbanos não são a exclusiva morada dos acontecimentos que atravessam a vida humana e mais que humana”. Conta ainda com 70 pinturas de Frank Baniwa, irmão da autora.

A repetição traz duas novelas que, deslocando o registro documental e histórico para a ficção, tensionam as heranças coloniais e refletem sobre a presença afrodiaspórica e indígena no Brasil a partir de dois personagens em um impasse com a verdade. Na primeira história, “O mentiroso”, acompanhamos o indígena Totanauá, o primeiro de seu povo que aprendeu a ler, e seus dilemas sobre a função das letras em peles de papel (como Davi Kopenawa denomina os livros e o universo da escrita branca em A queda do céu) para sua aldeia em uma Amazônia fictícia. A segunda novela, “A dívida”, ambienta-se em uma metrópole desolada por uma doença contagiosa e acompanha M., personagem às voltas com os relatos de sonhos que escutou em um hospital e com as “mulheres-fantasmas” que o visitam durante a noite em seu apartamento. As narrativas sonhadas e as aparições noturnas parecem falar de uma terra assolada pelas crueldades de seu passado, como a cobrar-lhe “a dívida”. Professor de antropologia da USP, Pedro Cesarino parte de documentos verídicos para estruturar as duas narrativas. No primeiro caso, de um relato de Morán Zumaeta Bastín, professor e chefe do povo Yine, sobre a experiência de leitura em sua tribo peruana na década de 1950, e de passagens sobre a mitologia da comunidade desana, que habita o noroeste da Amazônia, publicadas em Antes o mundo não existia, considerado o primeiro livro escrito por indígenas no Brasil. Já “A dívida” recupera estudos sobre o tráfico de escravizados em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, e sobre um sítio arqueológico em uma ilha da mesma região.


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